O risco de novas queimadas criminosas sob a mesma política agrária: o fim do governo Bolsonaro e a ameaça do agronegócio
Articulação Agro é Fogo apresenta análise, a partir dos dados do Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno, da Comissão Pastoral da Terra, sobre a relação das queimadas criminosas e os conflitos no campo, explicitada no governo Bolsonaro
Por Gustavo Serafim
Publicado originalmente no Le Diplomatique Brasil
O Governo Federal pode ter mudado, mas o agronegócio, que deu suporte ao bolsonarismo, continua o mesmo. Chega o período de estiagem e volta à tona uma ameaça que se intensificou sob a responsabilidade do ex-governo de Jair Bolsonaro (PL) e que deixou cicatrizes profundas: o uso criminoso do fogo como arma sistemática para expropriar territórios de trabalhadores e trabalhadoras do campo, de comunidades tradicionais e de povos originários.
Se hoje Bolsonaro está inelegível, o atual governo de Lula anuncia investimentos recordes no agronegócio: o novo Plano Safra veio junto a declarações do presidente de que o programa fará o agronegócio “perceber que não há nenhuma objeção a eles”. E complementou: “nunca tive problemas com o agronegócio. Governei oito anos e eles sabem tudo o que fizemos por eles”. O livre trânsito do setor no Estado e o apoio dado a ele de forma quase hegemônica significam a possibilidade de novas tragédias socioambientais. Como já apontado por pesquisadoras, pesquisadores e comunidades tradicionais no Dossiê Agro é Fogo, sem uma política governamental séria contra a predação socioambiental do agronegócio, não é possível conversar sobre democracia e direitos fundamentais para o campo e a cidade.
O ataque aos territórios continua, enquanto a política institucional tem se organizado para criminalizar a luta e impedir a garantia de direitos territoriais por meio da CPI do MST, de reformas ministeriais e da aprovação do Marco Temporal na Câmara dos Deputados. Episódios de terror se repetem: por exemplo, no acampamento Terra Prometida, em Theobroma (RO), que foi invadido por pistoleiros em maio de 2023, depois de já ter as casas incendiadas em 2022 durante uma tentativa de expulsão.
Se o uso do fogo como arma pelo agronegócio é uma prática histórica, no período em que Bolsonaro esteve no poder, de 2019 a 2022, ela ganhou um reforço: mais do que apenas sucatear órgãos importantes para os territórios e para a reforma agrária, como a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o Estado os transformou em causadores e apoiadores diretos das violências cometidas pelos capitalistas do campo.
Para ajudar a compreender esse processo, este texto apresenta os dados de Conflitos no Campo envolvendo o uso do fogo de 2019 até 2022, sistematizados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) por meio do Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno (CEDOC – CPT) e analisados a partir das formulações da Articulação Agro é Fogo acerca da relação entre o agronegócio, as queimadas criminosas e os conflitos no campo.
Época de seca e o aval político que isenta o agronegócio
Foi em agosto do primeiro ano de Bolsonaro no poder que ocorreu o “Dia do Fogo”, quando diversos fazendeiros e grileiros, incentivados pelos discursos do presidente, atacaram de forma coordenada assentamentos e comunidades tradicionais, em especial o Projeto de Desenvolvimento Sustentável Terra Nossa, em Novo Progresso (PA).
Esse marco não ocorreu neste mês à toa: entre 2019 e 2022, os meses de agosto totalizaram 152 ocorrências de conflitos envolvendo o fogo ou 26% de todas as violências registradas nesses quatro anos. Com algumas variações, o período entre julho e setembro é sempre o mais intenso, concentrando 64% dos conflitos envolvendo o fogo.
Os capitalistas do campo aproveitam a seca para incendiar os territórios quando o fogo se alastra mais facilmente. Assim, responsabilizam os próprios sujeitos das comunidades, ocultando as ações criminosas do agronegócio. O próprio Bolsonaro repetiu em discursos em 2020 – ano em que ocorreram as queimadas criminosas no Pantanal – que os culpados seriam indígenas, quilombolas e aliados, desresponsabilizando o agronegócio. Assim, é importante ficar alerta no período que agora se inicia e entender como o fogo é utilizado como arma.
Violências que afetam famílias
Entre 2019 e 2022, houve um crescimento de 90% no número de conflitos envolvendo o uso do fogo, com um total de 120.889 famílias afetadas. Apesar de 2019 ser o ano em que a cobertura midiática foi maior, devido ao vazamento de conversas de fazendeiros planejando o Dia do Fogo, o ano com maior quantidade de famílias impactadas se deu em 2021, com 39.569 famílias afetadas pelas chamas. As queimadas criminosas chamaram muita atenção da população, mas o impacto na vida das comunidades ganhou pouca visibilidade.
A relação entre o uso do fogo e o aumento da intensidade das violências durante o Governo Bolsonaro fica explícita quando verificamos que, dos 79 territórios em que houve assassinatos nos conflitos no campo, entre 2019 e 2022, 23 deles (29%) foram alvos de queimadas criminosas ou incêndios em algum momento desse período.
Apesar do aumento contínuo no número de conflitos, o número de famílias atingidas manteve-se relativamente estável durante os quatro anos, com exceção do pico em 2021. Isso significa que pelo menos a mesma quantidade de famílias foi atacada por uma quantidade maior de incêndios ou queimadas criminosas causadas pelos capitalistas do campo. Ou seja, famílias de trabalhadores e trabalhadoras do campo, de comunidades tradicionais e de povos originários sofreram quase o dobro de violências: o conflito ficou pior e mais intenso.
Houve territórios que sequer tiveram trégua: pelo menos sete foram vítimas de conflitos envolvendo o fogo em todos os quatro anos de Governo Bolsonaro. Outras 17 comunidades enfrentaram 77 conflitos desse tipo, com pelo menos quatro ocorrências em cada uma. Estão aqui casos como o da Gleba Tauá (TO), em que grileiros utilizaram o fogo como arma pelo menos sete vezes, de forma associada a outras violências, como pistolagem, invasão e destruição de pertences.
Isso não significa que a situação é menos grave quando uma comunidade sofre apenas uma ocorrência de violência, pois as queimadas criminosas e os incêndios podem se alastrar por dias ou ter consequências que perduram, inclusive na saúde da população. Foi o que ocorreu na Terra Indígena Araribóia (MA), dos povos Guajajara, Awa Guajá e Awa livres, em 2015, onde os incêndios destruíram 45% da área, e na Terra Indígena Tadarimana (MT), do povo Bororo, em 2017, que teve 60% do território queimado. Ou quando pistoleiros invadiram os territórios e queimaram casas de uso coletivo, que são utilizadas por toda a comunidade e das quais a sua reprodução social depende, como na destruição de uma escola na Terra Indígena Xakriabá (MG), em 2021, e na queima de casas de farinha, com ameaças de morte e terror nas comunidades camponesas do Território Jaqueira (MA), em 2019, por empresas do agronegócio.
“A nossa floresta é tudo para nós, é nossa essência de vida. O ataque pra tirar a gente do nosso lugar é pra destruir nosso planeta, vai contra a vida. Eles querem acabar com o lugar da gente pra colocar capim e criar gado. A gente precisa reverter essa destruição no nosso lugar”, afirma um morador do Território Jaqueira que prefere não se identificar.
Em todos esses casos, a reprodução da vida cotidiana desses sujeitos foi severamente prejudicada pelos incêndios, mesmo localizados em uma única ocorrência: ficaram sem seu espaço de produção coletiva, sem os locais de cuidado de suas crianças e sem a floresta, campos e savanas de que dependem seus modos de vida. A pressão pela sua expulsão tornou-se cada vez maior.
“Dentro de casa com a porta fechada, com os panos na porta, a gente se sentia sufocado, aquela falta de ar enorme. E esses aí duravam mais ou menos de quarenta minutos a uma hora até essa cinza passar. Aí de repente, abria, parava, a gente voltava a respirar um pouco melhor. Aí passou umas seis, sete vezes essa mesma situação: quando a gente menos esperava, saía um temporal e esse temporal vinha acompanhado disso, das cinzas. Tem muita gente aqui com problema respiratório, teve gente que desmaiou, eu mesma estou com problema, até hoje tenho uma coceira no corpo, outras pessoas também têm, não sei o que pode ser. E já a gente tem que fazer exames pra saber e teve gente que ficou ruim, várias pessoas desmaiaram devido à fumaça, à cinza”, conta, no artigo do Dossiê Agro é Fogo, dona Leonida Aires, da Comunidade Barra de São Lourenço (MS), sobre as queimadas criminosas no Pantanal.
As diversas ocorrências indicam que os capitalistas do campo fazem uso do fogo como arma de diferentes maneiras. Em um primeiro caso, causam queimadas criminosas ou incêndios florestais nos limites dos territórios, retirando os vestígios de seus crimes. Em um segundo, não escondem seus jagunços e pistoleiros, e agem de forma ainda mais brutal, violenta e explícita, por meio de invasões, pistolagens, ameaças de expulsão e incêndios de roças, pertences, casas ou casas de reza. Em 52% dos casos de incêndios ou queimadas criminosas houve pelo menos mais uma outra violência registrada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT). Onde há uso criminoso do fogo, há um contexto ainda mais terrível de conflito.
Cerrado é o mais atingido
Entre os estados que mais tiveram famílias afetadas por incêndios no governo Bolsonaro, Mato Grosso se destaca com 33.717 famílias (28%), seguido de Pará, Acre, Mato Grosso do Sul e Roraima. Essa ordem se alterou ao longo desses quatro anos e esse pódio de horror também incluiu outras unidades da federação, como Tocantins, Maranhão, Acre e Bahia.
Entre os estados com mais ocorrências, o Mato Grosso continua o campeão, com 138 conflitos envolvendo o fogo, seguido de Maranhão, Mato Grosso do Sul, Pará e Tocantins. Juntos, eles somam mais da metade dos conflitos desse tipo.
Quando observamos a distribuição geográfica dos incêndios entre os conflitos, identificamos que nesse período essas violências predominaram no Cerrado, com 39% das ocorrências, seguido da Amazônia, com 28%. Todavia, se somarmos as áreas de Cerrado com suas zonas de transição, nelas estão quase 56% de todos os conflitos desse tipo.
O ano de 2022 merece destaque como o ano de maior concentração dessas violências no Cerrado e suas zonas de transição, com quase 64% dos conflitos envolvendo fogo. Essa incidência não é coincidência: é nessa região onde estão localizadas justamente algumas das principais fronteiras de expansão agrícola e, por conseguinte, de conflitos e de expropriação das comunidades de seus territórios.
Entre os grandes projetos administrativos de desenvolvimento, o MATOPIBA, que engloba o Maranhão, o Tocantins, o Piauí e a Bahia, localiza-se em áreas de Cerrado e transições. Os municípios que compõem essa região totalizam 24% de todos os conflitos por terra envolvendo fogo entre 2019 e 2022. O próprio MATOPIBA corresponde a 39% dessas violências no Cerrado.
Quem sofre e quem causa a violência?
Os sujeitos mais afetados pelos conflitos envolvendo fogo são os indígenas, com 39% das ocorrências, seguidos de posseiros e posseiras, assentados e assentadas, e sem-terras. Contudo, esse padrão não se manteve ao longo dos quatro anos de governo Bolsonaro. Em 2022, há um destaque importante para posseiros e posseiras como principais alvos de queimadas, em 30% dos conflitos. Boa parte desses casos se deve aos incêndios florestais que afetaram pelo menos 36 comunidades do Parque Estadual do Mirador, no Maranhão, onde as empresas que gerenciam a unidade de conservação fingem não existir sujeitos que tradicionalmente cuidam, protegem e trabalham naquele território.
Quando observamos os perpetradores dos conflitos, entre 2019 e 2022, 32% dos conflitos envolvendo fogo foram causados por fazendeiros, seguidos de grileiros (15%) e madeireiros (6%). Como, em muitos casos, as investigações não são levadas adiante, em 36% dos conflitos envolvendo o fogo não foi possível identificar os causadores.
Apesar disso, a totalidade dos dados permite compreender que as queimadas criminosas e os incêndios não são meros acidentes, como o discurso da mídia hegemônica tenta fazer parecer ao sugerir que bastaria tornar “sustentáveis” as queimadas, educando fazendeiros “bonzinhos” ou construindo brigadas privadas de combate às chamas. Simulam a ideia de que é necessário um esforço policlassista de combate ao fogo, como se os incêndios florestais ocorressem por um descuido comum de latifundiários e grandes empreendimentos, de um lado, e de comunidades tradicionais, indígenas e trabalhadores e trabalhadoras do campo, de outro.
No entanto, as classes distintas não são igualmente impactadas pelo fogo e se distinguem enquanto vítimas e causadoras. O que os dados da CPT alertam é que o uso criminoso do fogo é mais um dentre os tantos métodos pelos quais grileiros, fazendeiros, madeireiros e mineradoras tentam se apropriar dos territórios de vida – algo que a frieza dos dados de “focos de calor” quantificados em satélite não dá conta de nos mostrar. .
Ação e omissão do Estado na devastação socioambiental
Como aponta o Dossiê Agro é Fogo, o Estado tem grande parcela de responsabilidade quando se trata de devastação socioambiental. Apesar de os governos aparecerem apenas em sexto lugar entre os causadores, eles estão largamente presentes entre os apoiadores dos causadores dos conflitos, seja por meio de autorizações legais e administrativas, de inação, de discursos favoráveis ou de boicote ativo do Estado e dos órgão ambientais, tão comuns ao Governo Bolsonaro. Entre 2019 e 2022, o Estado apoiou 147 dessas violências, o que corresponde a 25% ou um quarto do total de conflitos.
Aqui são considerados atores diversos, como Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Fundação Nacional do Índio (Funai), Polícias Militares ou mesmo o próprio Governo Federal de forma direta. Nesse sentido, o principal apoio dado pelo Estado brasileiro foi aos fazendeiros, concentrando 67% dos casos, seguidos por grileiros, com 12%. A maioria dos apoios ocorreu em 2019 e 2020, nas queimadas criminosas atreladas ao Dia do Fogo, assim como nos incêndios no Pantanal e no Cerrado mato-grossenses.
Como exemplos deste suporte estão a escolta explícita de jagunços por Policiais Militares que queimaram pertences no Acampamento Marielle Franco (MA), durante uma ameaça de despejo solicitada pela Viena Siderúrgica; a falta de pessoal do Incra e do Ibama para fiscalizar e impedir a ação de grileiros em área de reserva ambiental do Assentamento 12 de Outubro (MT), até o envolvimento ativo da Funai em arrendamentos dentro da Terra Indígena Marãiwatsédé (MT), que incendiaram o território.
Como aponta o secretário adjunto do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Luis Ventura Fernandez, trata-se do Estado como agressor direto nos conflitos, mas também como retaguarda dos capitalistas do campo, conivente e regulador em favor da acumulação de terras e capital. Se essa situação sempre existiu, ela se acentuou como política de Estado no Governo Bolsonaro, tomando a forma mais acabada nesses exemplos e em políticas como o Programa Titula Brasil, de titulação de lotes individuais em assentamentos, e o Projeto “Independência Indígena”, de avanço do agronegócio sobre terras indígenas, assim como na militarização e no desmonte de órgãos responsáveis pela reforma agrária, pela demarcação de territórios e pela proteção socioambiental.
Quando as queimadas criminosas atingem grandes proporções, logo as cenas de terror, vivenciadas pelas comunidades no campo, como as chuvas de cinzas sufocantes que atingiram a Comunidade Barra de São Lourenço (MS) no Pantanal em 2020, viram notícia na cidade, pois os céus são tomados por uma penumbra de fumaça que vem do Cerrado, do Pantanal ou da Amazônia. A política brasileira também sofre com uma penumbra que aterroriza e não foi derrubada com os ventos de um novo governo: o agronegócio.
Nos últimos anos, o agronegócio se apoderou ainda mais do Estado e continua tentando dobrá-lo a seu favor. Mais do que um simples corte de gastos em políticas socioambientais e de reforma agrária, e da flexibilização da legislação demarcatória, os órgãos de proteção socioambientais foram reformulados explicitamente para inviabilizar seus objetivos originais. Agora inelegível por abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação durante o processo eleitoral, Bolsonaro se foi do poder, mas se o agro-hidro-minero-negócio, como projeto estatal, não for enfrentado, aquilo que o bolsonarismo representou tentará voltar. Enquanto o setor tiver apoio e poder, a estiagem continuará sendo aproveitada para queimar territórios inteiros, casas e roças de sustento das famílias em favor da acumulação de terras e de capital.