O problema não é entrar — é invadir: As fronteiras da convivência segundo lideranças indígenas na COP30
A discussão não é sobre fechar portas. É sobre como entrar, quando entrar, e se deve entrar.
Por Ana Carolina Muccari e Catu Fernandes, para a Cobertura Colaborativa NINJA COP30
Quando o mundo entra na aldeia — e quando não deveria entrar
A COP30 abriu espaço para discussões climáticas, políticas e econômicas.
Mas, paralelamente, abriu também um espaço de tensão silenciosa: a presença massiva de não indígenas em ambientes sagrados, rituais, casas de reza e espaços culturais de povos originários.
Em meio a esta circulação intensa, três mulheres — Chirley Pankará, Concita Sompré e Atatacaluya Walapiti — trouxeram à tona um debate que raramente ganha centralidade: Até onde vai o intercâmbio, e onde começa a invasão?
A discussão não é sobre fechar portas. É sobre como entrar, quando entrar, e se deve entrar.
A antropóloga Mônica Dias ajuda a entender esse conflito ao lembrar que a relação entre indígenas e não indígenas nunca foi de igualdade: foi construída sobre políticas de aldeamento, apagamento linguístico, dispersão forçada e controle simbólico. Ou seja: cada passo dado por um não indígena hoje carrega um passado que não pode ser ignorado.
“Somos nós que decidimos quem entra” — o alerta de Concita Sompré
Concita Sompré, liderança Tupinambá e co-fundadora da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA), afirma que territórios indígenas não estão isolados. São cortados por estradas, cercados por fazendas e próximos de cidades. O contato com não indígenas é cotidiano.
O desafio é garantir autonomia para decidir quem entra, como entra e sob quais condições.
Concita explica que sua comunidade fica a 12 quilômetros da cidade, então a organização da sociedade não indígena influencia seus costumes: “Quando têm estradas em um território, entra o capital, e as coisas começam a mudar. Somos nós que escolhemos quem entra, como entra e como acolhemos”, ressalta.
Segundo a liderança, um território já demarcado têm suas fronteiras, com a população crescendo. Isso representa a necessidade de expansão, gestão e monitoramento do território, para uma terra finita. Uma dessas ferramentas é o Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA), que organiza a dinâmica do território a partir da própria administração indígena.
A antropóloga Mônica Dias amplia essa leitura: o Estado brasileiro historicamente tentou regular a vida indígena — impondo escolas, religiões, autoridades, sistemas jurídicos e formas de organização interna. O resultado desse passado é que muitos não indígenas hoje acreditam que podem: observar rituais, participar de cerimônias, filmar práticas espirituais, entrar em espaços de cura e circular sem compreender protocolos.
Esse comportamento não surge do nada — mas sim através de séculos de colonialidade incorporada.
Aprender não é consumir — a fronteira ética segundo Chirley Pankará
Chirley Pankará ressalta a diferença entre intercâmbio legítimo e apropriação cultural. Ela distingue quem chega para aprender práticas de cuidado da terra, de quem busca “consumir” cultura, copiando rituais, medicinas, cantos e grafismos.“Você pode aprender a plantar árvores, limpar rios, comer sem veneno, como nós fazemos. Mas não pode reproduzir nossa cultura para benefício próprio,” afirma. E ainda ressalta que a adaptação é nos moldes indígenas, pois cada povo tem uma concepção diferente e autonomia para gerir seu território, bem como entender os benefícios da influência externa para sua aldeia.
Neste processo, a antropóloga Mônica Dias explica que copiar grafismos, medicinas, rituais ou símbolos não é “admiração”. É uma extração simbólica — uma forma atualizada de colonialismo. Segundo a pesquisadora, o uso cultural sem autorização desloca o sentido espiritual, rompe a lógica ritualística, transforma o sagrado em produto, cria distorções internas dentro das aldeias e reforça desigualdades históricas.
A apropriação cultural não é “troca”: é despossessão.
A Casa de Rezo na COP: o sagrado em risco — e a cura em movimento
Atatacaluya Walapiti vivenciou a tensão entre abrir um espaço sagrado para o mundo e proteger esse espaço. A Casa de Rezo acolheu pessoas desconectadas espiritualmente, mas também enfrentou desrespeitos: tentativas de gravar, entradas em horários proibidos, deboches e invasão do sagrado.
“A casa tem uma regra gigante. Não é qualquer pessoa que pode entrar”. E ainda ressalta que os conhecimentos que trouxeram é um pouco do que aprendem na aldeia: “Trouxemos só uma pontinha. Não se aprende só olhando. Há dietas duras desde jovem”, afirmou.
As três mulheres afirmam que salvaguardar os saberes ancestrais é proteger o território e o espírito, afinal, saberes indígenas não são conteúdos replicáveis; são modos de vida enraizados em território, disciplina, dieta espiritual e práticas interligadas. O contato com essas culturas, bem como a captação de fotografias ou imitações de rituais, exigem muito respeito.
A antropóloga Mônica Dias reforça que essas regras não são invenções recentes. Elas fazem parte do que ela configura protocolos cosmopolíticos — formas de organização espiritual e social que regulam quem pode entrar, quando, com que corpo, com que intenção e com qual preparo energético.
Ela lembra que, muitas vezes, o que vira “problema da aldeia” (intrigas, conflitos, desequilíbrios) não nasce na aldeia, mas é levado por não indígenas através de drogas, bebidas, interpretações distorcidas, expectativas de consumo espiritual, desejos de protagonismo e necessidade de validação pessoal.
O colonialismo não age apenas como invasão física — ele age também como contaminação simbólica.
Conclusão: convivência é possível — desde que guiada pelo sagrado
As quatro vozes convergem: autonomia indígena é fundamento. Políticas públicas devem oferecer estrutura sem ditar costumes. A presença de não indígenas só é legítima quando não invade o sagrado e não compete com a organização comunitária.
Interação não é problema; o problema é transformar cultura em espetáculo e espiritualidade em produto. O não indígena pode entrar no território, mas deve entrar descalço de ego, humildade de alma e guiado por quem o guarda.



