O poder da memória em “Aftersun”
O filme explora a relação de Calum, com sua filha, Sophie, de 11 anos. Passado e futuro se misturam na narrativa.
Por Sabrina Ventresqui para cobertura colaborativa da Cine NINJA
Assim como faço na maioria das temporadas de premiação, decidi assistir aos filmes que estarão na corrida do Oscar deste ano. Eu tenho um acordo comigo mesma, que não leio sinopses ou procuro os trailers, para não estragar a minha experiência ou criar uma expectativa que talvez não seja correspondida.
Então, eu assisti Aftersun completamente sem saber o que me esperava. As únicas informações que eu tinha, era que se passava na década de 90 e protagonizado por Paul Mescal.
No longa, acompanhamos Calum (Mescal) e sua filha, Sophie, em uma viagem de férias para Turquia. Aos poucos, captamos a essência dos personagens e a relação entre eles.
Sophie é uma menina de 11 anos, interpretada brilhantemente por Frankie Corio. Alegre, apaixonada por fazer filmes caseiros em câmeras filmadoras. Ela mora em Edinburgo com a sua mãe, após a separação do casal.
No início, Sophie se sente deslocada por não se encaixar com as crianças e nem com os adolescentes, que estão com os hormônios à flor da pele e só pensam em namoro. Uma fase da vida bem diferente da que a menina está. Mas, aos poucos, ela encontra seu ritmo e passa a se sentir melhor.
Em Aftersun, temos duas versões de Sophie. Uma criança, conforme descrito brevemente acima, e uma adulta perdida nas recordações da viagem com seu pai.
Às vezes, passado e presente se entrelaçam na narrativa. É a tentativa da jovem de compreender o que acontecia com o pai. A memória daquela viagem, vai se modificando à medida que Sophie monta o quebra cabeças que é Calum.
Obviamente, por ser criança, ela ainda não tinha capacidade para entender a complexidade dos sentimentos dos adultos e as delicadas e secretas leis que regem a relação entre nós.
Em alguns momentos do longa, há cenas em que Calum aparece dançando no escuro, com feixes de luzes piscando, que parecem completamente deslocadas do restante do filme. É até difícil compreender o propósito e complexidade da cena em comparação com outros cenários presentes no longa, mas a imagem vai clareando perto dos minutos finais.
Vale ressaltar que muito tem se comentado sobre a atuação de Mescal, e confesso que o trabalho do ator faz jus às críticas. A interpretação do ator é natural. Ele consegue capturar a essência do personagem e transmitir suas emoções, suas dores pelo olhar e simplicidade.
Quando ouvimos críticas positivas sobre a atuação de algum artista, é natural e quase inevitável não pensar que envolve uma alta carga dramática, com cenas fortes ou que exigem muito preparo do artista.
Se você espera isso em Aftersun, saiba que não acontece. Há apenas UMA cena, em todo o filme onde há uma forte emoção clara. As demais são sutis, são nuances, detalhes, estão intrinsecamente ligadas à essência de Calum e de sua relação com a filha.
E é isso que torna o trabalho de Mescal tão excepcional, porque ele consegue dizer sem palavras. Transmitir o não dito, o não explorado, apenas o sentimento. Paul é, de certa forma, Calum, pelo menos nos 90 minutos de duração do filme. Assim, entende-se que uma boa atuação não precisa ser caricata, cheia de gritos ou de ações exageradas.
Quem avisa, amigo é. E eu já digo logo, que se você procura um filme cheio de reviravoltas ou com narrativa agitada e vários acontecimentos simultâneos e psicodélicos, então talvez Aftersun não seja o filme que se enquadra nessas características. Em uma definição simplista, o longa explora a relação de um pai com sua filha.
Enquanto assiste, você quase espera por um plot twist, você o sente chegando ,e, quando vem, você torce para que aquilo esteja errado, que você esteja enganado.
É ali, nos momentos finais que você entende essa relação. No futuro, Sophie está assistindo às imagens que gravou tantos anos atrás. E no passado, Calum desaparece no vazio.
É nesse momento que você consegue montar o quebra-cabeças, que é possível colocar todas as peças em ordem.
Não fica claro, mas a mensagem secreta nas entrelinhas instiga que aquela viagem foi a última vez que Sophie e Calum estiveram juntos, e que a jovem estava assistindo as gravações para tentar compreender melhor o pai ou até mesmo tentar visualizar se poderia tê-lo ajudado de alguma forma.
As cenas que antes pareciam deslocadas são um mosaico que se desenvolve com o vazio e Calum. A forma como o personagem começa o filme alegre e vai murchando a cada minuto é notável, e, então, é finalmente desvendada.
Aftersun é daqueles filmes que você assiste, sente o impacto, mas não acredita. É preciso voltar algumas cenas, perceber alguns detalhes. Contudo, quando você se dá conta de que é aquilo mesmo, é inevitável não deixar a melancolia tomar conta de si.
Para mim, esse filme é do tipo que só se assiste uma vez, porque é impossível ter o mesmo efeito se você já sabe como termina.
Faço as palavras de A.O. Scott do The New York Times, as minhas. “Sensível e devastador Aftersun vem de acolher o fato básico e universal da perda… [O filme] é sobre uma experiência na maior parte feliz… que terminam em lágrimas. As suas lágrimas.”
Direção: Charlotte Wells
Lançamento: 06 de janeiro 2023
Onde assistir: Mubi
Texto produzido em cobertura colaborativa da Cine NINJA – Especial Oscar 2023