Imaginemos um país no qual 60 mil seres humanos são assassinados por ano. Nessa mesma nação, mais pessoas são mortas em três semanas do que os fatalmente vitimados em todos os ataques terroristas ocorridos no mundo entre janeiro e maio de 2017. Estarrecedor, né? Pior é saber que este lugar existe. Atende pelo nome de Brasil. As informações acima têm como base o recém divulgado Atlas da Violência 2017, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Segundo o estudo, 59.080 pessoas foram vítimas de homicídios no Brasil em 2015.

Esse levantamento, assim como tantos outros sobre o tema, ajuda a entender o fato da violência ser uma das principais preocupações das brasileiras e brasileiros. Pesquisa do Datafolha, realizada em agosto de 2016 na cidade do Rio de Janeiro, mostrou a segurança como o maior problema para 25% da população, atrás somente da saúde (46%).

Ocorre que o clamor por se viver em uma cidade mais segura leva, constantemente, à reivindicação por soluções que podem agravar a já calamitosa realidade.

É pertinente lembrarmos que estamos em uma era de informações instantâneas, o que favorece um ambiente de posicionamentos e respostas imediatas. Este é um dos elementos que contribui com o crescente sentimento de vingança, muitas vezes com as próprias mãos, diante da incapacidade do Estado em proteger os seus. Daí vem o brado por aumento do encarceramento, mais armamento e por ações mais rígidas das polícias, defendidas em mesas de bares, nos pontos de ônibus, nas conversas de vizinhos, no metrô e nas postagens em redes sociais. O que esse nível raso de reflexão acaba ocultando é que tais iniciativas, tomadas no calor dos acontecimentos, são o famoso “tiro que sai pela culatra” e contribuem para o recrudescimento da violência.

Tomando o Rio de Janeiro como exemplo, lembraremos que há menos de uma década foi lançado um projeto que revolucionaria a política de segurança, levando o Estado a ocupar espaços até então comandados pelo tráfico de drogas. O tão divulgado e comemorado programa, que prometia pacificar as favelas, revelou-se uma frustração, justamente por sua incapacidade em oferecer resultados concretos e duradouros. Se propôs a atender o grito popular com respostas breves. A consequência foi um conjunto de ações midiáticas e sem repercussões efetivas. Nove anos após a implantação da primeira Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), a violência piorou.

Fracassaram ao tratar o caos de forma paliativa e sem ouvir o conjunto da população, sobretudo a mais afetada. Foi como dar a um doente terminal uma aspirina. Até aliviou a dor no momento, mas não curou a doença e levou a óbito.

As contradições dessa crise de percepções e de vislumbrar resultados súbitos se revelam em vários acontecimentos. No último sábado (3), um ato pela segurança no bairro de Santa Teresa reuniu centenas de pessoas no Largo do Guimarães, conhecido cartão postal da Cidade Maravilhosa. A iniciativa da associação de moradores e amplamente divulgada levou moradores às ruas, a grande maioria vestindo roupas brancas, para protestar contra a onda de assaltos.

Santa Teresa, na região central da cidade, é um bom exemplo das brutais desigualdades presentes em quase toda Zona Sul carioca. O bairro de classe média, com grande fluxo de turistas e uma rede de comércio e serviços preparada para receber visitantes, é composto por um conglomerado de 13 favelas que o circundam. Praticamente todos os acessos à parte turística do bairro histórico combinam com as entradas das favelas que, por sinal, também constituem essa grande comunidade batizada com o nome de uma santa que viveu no século 16 e tem sua história destacada pelas práticas meditativas. Só que, lamentavelmente, nem todos estão dispostos a meditar. Querem desfechos pra ontem.

O palco montado no sábado estava a mais ou menos 15 metros de um Batalhão da Polícia Miliar. Os policiais militares, por sinal, estavam por ali garantindo a tranquilidade da manifestação. São profissionais com a mesma farda que em outros dias passam pelo comércio cobrando “arrego”, uma espécie de imposto paralelo para garantir a segurança local. Integram a mesma corporação que distribui bombas e tiros em quem se manifesta contra os desmontes do Estado. Os oradores que se revezavam no microfone, ao lado de crianças que seguravam cartazes pedindo a paz, falavam dos furtos e roubos que os aterrorizam e cobravam providências, sobretudo o aumento do efetivo policial.

O ato foi bem-intencionado, assim como os anseios por segurança das pessoas que dele participaram. Porém, o obstáculo é a solução reduzida para uma crise complexa. Por quê será que os moradores das 13 favelas não estavam ali para dar seu testemunho e falarem sobre como a violência os atinge?

Ou a tão reivindicada paz deve ser um privilégio de quem tem melhor poder aquisitivo?

Arrisco dizer que não foram ao ato por visões sobre segurança que esses dois mundos, embora muito próximos geograficamente, não compartilham. A desigualdade no tratamento e na aplicação das leis contribui para agravamento da violência. A Polícia Militar, tão aclamada e tão próxima do ato de sábado, é a mesma. A diferença é que aquele fuzil, cujo cano desfila para o lado de fora da janela das viaturas pela parte “rica” do bairro, entra atirando nas favelas. E não raras vezes tem como destino o corpo, a vida e o sonhos dos jovens negros que lá moram. No Brasil, homens, jovens, negros e com baixa escolaridade são as principais vítimas dos homicídios.

Em abril deste ano, dois adolescentes de 15 e 16 anos foram mortos enquanto mexiam nos seus celulares em uma escadaria no Morro do Fallet, em Santa Teresa. Um com tiro nas costas e outro na cabeça. As famílias e os moradores afirmam que os disparos vieram da polícia. O caso ainda está em investigação. A publicação Você Matou meu Filho, da Anistia Internacional (2015), traz histórias carregadas de verdade e dor. São relatos, sobretudo de mães que tiveram seus filhos mortos pela ação da Polícia Militar, no Rio. O roteiro é quase sempre o mesmo: operações policiais com execuções extrajudiciais de jovens, majoritariamente negros, moradores das favelas. Ações que levam ao desaparecimento de muitas pessoas ou a cadáveres humanos empilhados com a justificativa oficial de “autos de resistência” ou “homicídio decorrente de intervenção policial”, o que legitimaria a atuação. Resistir a qualquer situação já não é justificativa para matar. O quadro só piora pelos relatos de que, em muitos casos, não houve resistências, mas cenas montadas para dar veracidade à versão policial. É uma conduta que mata e revolta. E não é um problema só das famílias, mas de todos nós que integramos essa mesma humanidade. Indefensáveis sob qualquer ponto de vista, até porque se matar e prender reduzisse a violência, estaríamos mais seguros com 60 mil mortos por ano e quase 700 mil presos, certo? A realidade fala por si e o ciclo violento se intensifica.

Dado esse contexto, será que o apelo dos moradores das favelas também é por aumento do efetivo policial? Creio que não.Embora todas as pessoas queiram viver – e têm esse direito – em um lugar seguro, as formas pretendidas são bastante díspares. Esse descolamento de percepção e demandas faz aumentar o abismo da exclusão e escancara o quanto vivemos em uma sociedade desigual e que busca resoluções individuais ou de pequenos grupos sociais, antes de qualquer construção coletiva.

Os apelos por mais policiamento, sem questionar as práticas da polícia, mostram o quanto se espera soluções fragmentadas para uma adversidade que é bastante complexa.

Enfrentar com coragem e seriedade a grave crise de segurança pública no Brasil exige compreendermos as várias faces da violência e como ela se manifesta nas diferentes localidades e classes sociais. Passa por um sério e dedicado pacto para a redução de homicídios, que envolva o Estado, a sociedade civil, a população, organizações e pesquisadores. Depende de um necessário debate sobre o papel das polícias, sobretudo a militar, que é formada e atua a partir de uma lógica de guerra, que escolhe e elimina seus inimigos, como se fosse um poder próprio e com leis exclusivas. E também com investigação, controle externo, perícia independente e responsabilização dos crimes cometidos pelos agentes de segurança pública. Envolve assumirmos práticas para enfrentarmos os preconceitos, sobretudo o racial, uma vez que de cada 100 pessoas que são vítimas de homicídio no Brasil, 71 são negras. E não é por coincidência.

Mas tudo isso só faz sentido, definitivamente, quando alcançarmos a compreensão e a consequente prática de que a lei é a mesma para todas as pessoas, assim como os direitos, inclusive o de viver em segurança.

Sem uma educação emancipatória e diálogos para a construção de resultados efetivos e coletivos, seguiremos caminhando rumo ao precipício. Uns de roupa branca pedindo paz. Outros fugindo dos tiros. Mas todos, como humanos que somos, em direção ao abismo.