
O Manto de Nazaré: a história bordada em fé e ouro
Documento vivo da cultura paraense, tecendo em fios e pedrarias a evolução do artesanato, da economia e da devoção popular ao longo de décadas
por Chris Zelglia
Enquanto a Berlinda é o trono e a corda é o laço, o manto é a própria skin da devoção. Todos os anos, uma nova vestimenta confeccionada com materiais preciosos cobre a pequena imagem de Nossa Senhora de Nazaré, em um dos rituais mais aguardados do Círio. Este artigo não é apenas sobre um objeto de fé; é uma análise sobre como um artefato cultural se tornou um documento material da história do povo paraense, refletindo sua identidade, sua economia e sua inabalável capacidade de se renovar.
A tradição do manto não nasceu com a pompa atual. Relatos históricos sugerem que, originalmente, a imagem era vestida com panos simples – ou sequer usava uma cobertura específica. A institucionalização do manto anual, como o conhecemos hoje, é um fenômeno do século XX, consolidado pela Basílica Santuário de Nazaré como forma de organizar e canalizar a devoção popular.
A cada edição, um tema é escolhido, muitas vezes baseado em efemérides católicas ou no contexto social do momento, e um artista ou ateliê é comissionado para dar vida à peça. Esta prática transformou o manto em uma encomenda artística de alto nível, movimentando um nicho específico da economia criativa local.
A Linguagem dos Fios: Uma Análise Simbólica e Material
Cada elemento do manto carrega uma simbologia profunda, tornando-o uma narrativa visual complexa.
O Tecido-Base: normalmente sedas, veludos e cetins, representam a dignidade e a realeza atribuídas à Santa.
Os Fios de Ouro e Prata: Simbolizam a luz, a divindade e a eternidade. O brilho sob o sol durante a procissão não é um mero efeito estético – é a representação visual da fé que ilumina a cidade.
As Pedrarias e Biojóias: A incorporação de pedras semipreciosas da Amazônia, como cristais e ônix, ou as biojóias feitas de sementes regionais, é um fenômeno recente e significativo. Ele ancora a divindade no território, criando uma ponte simbólica entre a fé universal e a riqueza material da floresta.
As Cores: O azul e o branco predominantes são tradicionalmente associados à pureza e ao céu. No entanto, mantos em tons de vermelho (representando o Espírito Santo) ou dourado puro (para jubileus) mostram como a paleta é um campo de expressão teológica.
O Manto em Números:
Os primeiros mantos confeccionados foram pela Congregação Filhas de Sant’Ana, do Colégio Gentil Bittencourt;
Pode levar de 3 a 6 meses para ficar pronto;
Envolve o trabalho de artesãos, bordadeiras e ourives;
O custo é bancado por doações de fiéis e empresas, sendo um exemplo de financiamento coletivo devocional.
O Manto como Política Cultural e Econômica
A confecção do manto é, em si, um ato de gestão cultural complexa.
A escolha do artista e do tema pode seguir critérios de editais públicos ou comissões internas da Basílica, refletindo uma política de valorização de mestres artesãos.
A encomenda injeta recursos diretamente no setor de artesanato de luxo e ourivesaria, sustentando oficinas e perpetuando saberes manuais tradicionais que, de outra forma, poderiam se perder.
O conhecimento envolvido na confecção – os pontos de bordado, a aplicação de pedrarias, a leitura simbólica – é um saber-fazer que merece ser registrado e preservado como parte do patrimônio cultural imaterial do Pará.
Proteção, Beleza e Identificação
O ato de vestir a imagem é profundamente revelador. O manto funciona como uma projeção do desejo de cuidado e proteção. Ao embelezar a figura materna por excelência, o devoto, de forma simbólica, está também se oferecendo proteção e carinho.
É um ritual de identificação: o fiel se vê naquela que é vestida e honrada. A renovação anual do manto simboliza a esperança de um recomeço – a crença de que a graça e a proteção também podem ser “renovadas” e “revestidas” a cada novo ciclo.
O manto de Nossa Senhora de Nazaré é, portanto, muito mais que um ornamento. É um manuscrito de fé, arte e sociedade. Cada fio de ouro bordado é uma prece silenciosa; cada pedra aplicada, uma promessa de um filho da Amazônia. Ele conta a história de um povo que, ano após ano, escolhe se expressar através da beleza, do trabalho minucioso e da entrega simbólica à sua Padroeira.
É a prova material de que a tradição, longe de ser estática, se reconstrói e se ressignifica continuamente, mantendo seu fio ininterrupto com o passado, enquanto tece, com precisão e devoção, os caminhos do futuro.
Fonte de pesquisa: Fundação Nazaré