‘O Livro de Clarence’: quando o evangelho é negro e subversivo
“A Paixão de Cristo” e “Tales from the Hood” se encontram e dão vida a uma narrativa surpreendente, que reimagina histórias clássicas a partir de uma perspectiva inédita
Por Hyader Epaminondas
“O Livro de Clarence” surge como uma resposta audaciosa à tradicional representação branca nas produções bíblicas. O filme reimagina a narrativa sagrada a partir de uma perspectiva radicalmente nova, ao criar um “décimo terceiro apóstolo” em Clarence, interpretado por Lakeith Stanfield, um homem trambiqueiro, desacreditado e sem perspectivas, e oferece uma leitura satírica, mas profundamente simbólica, da crucificação de Cristo.
Sob a direção de Jeymes Samuel, também conhecido como The Bullitts, o cineasta que desconstruiu o faroeste com a fúria estilizada em “Vingança e Castigo” retorna nesta nova empreitada com um evangelho visual insurgente, reinventando as narrativas sagradas com a mesma ousadia estética e simbólica. The Bullitts não apenas revisita o mito: ele o reescreve com tintas vibrantes, sotaque contemporâneo e alma subversiva.
A comédia é utilizada com parcimônia e inteligência, não para diluir a carga dramática, mas para desarmar o espectador e torná-lo receptivo à densidade crítica que pulsa sob a superfície. O filme reverbera uma voz potente de empoderamento negro, não apenas por seu elenco estrelado e diverso, mas pela reconstrução estética e simbólica de uma Jerusalém vibrante, plural e inusitada. Há aqui uma espécie de blaxploitation bíblico, um hibridismo que funde o sagrado ao profano, o passado mítico ao presente contestador.
Clarence, com sua jornada de autoconhecimento e ascensão moral, encarna mais do que o arquétipo do anti-herói: ele representa a tensão entre fé e performatividade religiosa. Seus diálogos confrontam de forma cortante a hipocrisia institucionalizada, denunciando a distância entre o discurso moral e a prática cotidiana. Não se trata apenas de seguir dogmas, mas de questioná-los. O filme, assim, propõe uma espiritualidade emancipada, onde a iluminação se conquista pelo afeto, pelo altruísmo e pela coragem de existir fora do script.
A força simbólica de “O Livro de Clarence” está em sua estrutura quase alegórica: ao buscar ser reconhecido como messias por oportunismo, Clarence acaba descobrindo uma forma muito mais verdadeira de redenção, não pelo milagre divino, mas pela ação humana. A narrativa subverte o arquétipo do “escolhido” e entrega, em seu lugar, a ideia de que cada indivíduo pode escolher ser íntegro, mesmo diante da rejeição e da dúvida.
Entre o sagrado e o surreal: a estética como denúncia
Visualmente, o filme é um espetáculo à parte. Remete ao sofrimento gráfico de “A Paixão de Cristo” e ao terror urbano estilizado de “Tales from the Hood”, numa fusão de gêneros que ressignifica códigos visuais consagrados. A influência do filme dirigido por Rusty Cundieff é particularmente notável na maneira como “O Livro de Clarence” transforma o absurdo em denúncia. Lançado em 1995, “Tales from the Hood” é uma antologia de terror que combina horror sobrenatural com críticas diretas ao racismo, à violência policial e às desigualdades sociais enfrentadas pela população negra nos Estados Unidos.
Assim como o clássico de Cundieff, o filme de The Bullitts utiliza o surreal como ferramenta de crítica social, inserindo elementos fantásticos não para evadir o real, mas para confrontá-lo com ainda mais potência. Essa escolha estilística ecoa o uso simbólico da violência e da sátira como formas de expor o trauma racial, transformando a alegoria em uma espécie de catarse coletiva para a audiência negra.
Os enquadramentos ousados, a fotografia saturada e os efeitos práticos conferem um ar retrô e ao mesmo tempo inovador, criando uma ponte entre passado e presente. Clarence caminha entre o sagrado e o simbólico, entre o teatro das escrituras e o drama das ruas, e é nessa interseção que o filme encontra seu pulso.
The Bullitts não apenas homenageia o blaxploitation, ele o reinventa, incorporando-o a uma linguagem que conversa com os mitos cristãos sem submeter-se a eles. A trilha sonora embalada por jazz e blues não apenas reforça a atmosfera, mas evoca diretamente o espírito do movimento, um cinema dos anos 1970 que ousou centralizar a experiência negra com vigor, estilo e consciência social.
Em tempos em que a representatividade negra ainda é frequentemente cerceada ou tokenizada, “O Livro de Clarence” se afirma como obra urgente. Sua provocação não está apenas na inversão de papéis, mas na recusa de narrativas estáticas. É um convite para imaginar um novo cânone, um onde corpos negros existem não como coadjuvantes da história universal, mas como agentes transformadores dela.
A produção de The Bullitts não é apenas uma releitura da Bíblia, é um manifesto visual, espiritual e político contra o racismo estrutural e a exclusão histórica. Ao final, “O Livro de Clarence” não quer apenas que acreditemos em milagres. Ele quer que entendamos que o maior milagre talvez seja a escolha consciente de ser verdadeiro em um mundo moldado pela conveniência. É cinema como ferramenta de reescrita. Como instrumento de fé crítica. Como chama que incendeia o imaginário coletivo.



