O Legado de Olga e Prestes: uma conversa com Anita Leocádia sobre resistência e história
Entrevista revisita Olga Benário, a luta comunista e a construção histórica que apagou Luiz Carlos Prestes.
Por Kaio Phelipe
Conversamos com a historiadora Anita Leocádia Prestes, uma das principais pesquisadoras da história do comunismo no Brasil. Anita fala sobre Os trabalhos e os dias do Kim, único texto deixado por sua mãe, Olga Benário, lançado recentemente por iniciativa de Silvio Tendler e da Editora À Margem.
Na entrevista, ela narra sua formação política, revisita a trajetória de Olga e explica como a figura de Luiz Carlos Prestes foi sistematicamente silenciada e distorcida pela historiografia dominante.
Sobre o que é o livro Os trabalhos e os dias do Kim?
Esse texto, que se saiba, é o único deixado por Olga Benário Prestes, minha mãe. Ela o escreveu ao chegar a Moscou. Depois de Olga e seus camaradas da juventude comunista de Berlim libertarem Otto Braun — seu namorado na época —, ambos precisaram deixar a Alemanha, onde sofriam intensa perseguição. Com a cabeça a prêmio, foram para Moscou, onde pediram a Olga que relatasse as lutas travadas em Berlim. Assim surgiu esse texto, uma espécie de relatório sobre a atuação dos jovens comunistas na cidade durante os anos 1920, um período de grande agitação e enfrentamento ao avanço do fascismo, que culminaria na vitória de Hitler em 1933. Era ainda a República de Weimar, e esses jovens combatiam grupos fascistas nas ruas.
O texto só havia sido publicado em russo. Acreditamos que Olga o tenha escrito originalmente em alemão — afinal, era 1928 e ela ainda não dominava o russo. Porém, o original em alemão nunca foi encontrado. Eu tinha acesso apenas à versão russa. No ano passado, meu livro sobre Olga foi publicado na Alemanha — obra baseada na documentação da Gestapo, lançada no Brasil pela Boitempo em 2017. A mesma editora alemã se interessou em publicar Os trabalhos e os dias do Kim. Silvio Tendler também quis traduzir e editar o texto e me procurou — éramos amigos de longa data. Ele disse que estava criando uma editora e gostaria que esse fosse o primeiro título. Eu autorizei, claro. O livro ficou pronto recentemente. Houve uma noite de autógrafos no Rio de Janeiro, mas, infelizmente, Silvio faleceu antes de participar.

Quando começou sua parceria de trabalho com Silvio Tendler?
Colaborei com uma peça que ele produziu há dois anos, baseada nas cartas trocadas entre meu pai, Luiz Carlos Prestes, e Olga, enquanto estavam presos — meu pai no Brasil e Olga na Alemanha. Depois que publiquei meu livro sobre Olga, Silvio se interessou pelo tema. Ele era amigo antigo da família, também de meu pai, e propôs fazer a peça. Contribuí com a pesquisa, fornecendo informações. Mas Os trabalhos e os dias do Kim foi a primeira obra que publiquei diretamente com ele.
Quando surgiu seu interesse pela luta comunista e quando você se tornou militante?
Fui educada em uma família comunista. Fui salva pela minha avó paterna, Leocádia Prestes, que liderou uma grande campanha internacional pela libertação de Prestes, dos presos políticos no Brasil e também da minha mãe. Quando nasci, conseguiu, graças a essa mobilização, me resgatar da Gestapo. Costumo dizer que sou filha da solidariedade internacional — sem essa campanha, ela não teria conseguido me trazer da Alemanha nazista.
Fui criada por minha avó e por minha tia Lygia, já que meus pais estavam presos. Vivemos no México, que acolhia perseguidos políticos do mundo inteiro. Ali cresci em uma família comunista. Meu pai me escrevia da prisão e, quando aprendi a ler e escrever, passei a responder. Quando eu tinha oito anos, viemos para o Brasil — minha tia e eu, pois minha avó falecera quando eu tinha seis. Conheci meu pai em 1945, quando ele foi libertado junto a outros presos políticos.
O comunismo foi um caminho natural para mim. Aos quatorze anos, porém, meu pai e o Partido Comunista — do qual ele era secretário-geral — decidiram que eu deveria ir para Moscou, devido à forte perseguição política no Brasil durante a Guerra Fria. Isso foi em 1950. Minha tia e eu fomos para lá porque havia grande temor de que algo me acontecesse. Fiz todo o ensino secundário em Moscou e pedi para ingressar na Juventude Comunista Soviética, já que não poderia entrar no PCB vivendo lá.
Em 1957, com a relativa abertura do governo Kubitschek, voltamos ao Brasil. Eu tinha vinte anos. Foi então que finalmente ingressei no Partido Comunista e me tornei militante do PCB.

Por que a juventude de hoje conhece tão pouco sobre a história de Luiz Carlos Prestes?
Há uma campanha declarada das classes dominantes para caluniar e falsificar a história de Prestes. Isso ocorre tanto pela difusão de mentiras quanto pelo silenciamento — que também é uma forma de combate. A burguesia brasileira nunca perdoou o fato de ele não ter se tornado um instrumento das oligarquias oposicionistas em 1930, lideradas por Getúlio Vargas.
Na época, Prestes era a liderança de maior prestígio no país, mais conhecido que o próprio Vargas, como mostrava a imprensa. Mas recusou participar do movimento de 1930 porque defendia reformas radicais e não havia respaldo popular suficiente. Ele sabia que, se aceitasse o poder que lhe ofereciam, se tornaria um representante dos interesses da burguesia, o que não estava disposto a fazer. A ruptura foi um escândalo — um líder daquele tamanho recusar o poder e tornar-se comunista era inadmissível para as elites. Mesmo antigos companheiros da Coluna Prestes passaram a repudiá-lo.
A falsificação histórica é prática comum das classes dominantes no mundo inteiro. Prestes se tornou um de seus principais inimigos no Brasil. No ano que vem, vou publicar pela Boitempo um livro sobre como sua figura é distorcida pela historiografia e pela memorialística. Não analisei a imprensa porque seria trabalho demais; seria outra pesquisa. Prestes é caluniado inclusive por setores que se dizem de esquerda, mas que reproduzem, consciente ou não, a ideologia burguesa. Às vezes, os ataques são sutis — é preciso estar atento.
Há intelectuais competentes a serviço dos interesses dominantes, e não interessa a essas elites que Prestes seja conhecido pela juventude. Eu e outros historiadores progressistas trabalhamos para registrar a verdade para quem quiser conhecê-la. Tenho diversas obras sobre a trajetória dos comunistas no Brasil e sobre a atuação de Prestes.
Quem foi Olga Benário?
Olga foi uma militante que morreu heroicamente — uma mártir do movimento comunista. Tornou-se mundialmente conhecida por ser esposa de Prestes, que já era famoso como o “Cavaleiro da Esperança”. Mas é importante lembrar que milhões de pessoas foram assassinadas de forma semelhante; Olga não foi a única. Às vezes se fala dela como se tivesse sofrido algo excepcional, quando, na verdade, milhões de crianças, mulheres e homens foram vítimas do nazismo. Foi um horror — que hoje se repete na Palestina, onde o povo palestino vive um genocídio semelhante.
Nos arquivos brasileiros, há inúmeras cartas e telegramas pressionando o governo Vargas para não torturar Prestes, para libertá-lo e para proteger Olga. Isso contribuiu para que ambos não fossem torturados fisicamente no Brasil, ao contrário de muitos presos políticos. Prestes ficou isolado, em condições precárias, mas não sofreu tortura física. Ele mesmo dizia que a tortura que sofreu foi a extradição de Olga — uma violência psicológica terrível, pois todos sabiam que ela seria enviada para morrer. Olga foi uma militante dedicada e heroica, como tantos outros.
Como analisa os recentes pedidos, por parte da direita, para que o Brasil volte à ditadura militar?
Isso se deve, entre outras coisas, à enorme desinformação. Formaram-se duas gerações politicamente frágeis, sem formação e sem participação política. Mais de quarenta anos se passaram desde o fim da ditadura, e muitos não têm noção do que ela foi.
A ditadura brasileira teve características particulares em relação a outros países. A repressão aqui foi muito seletiva, diferente da Argentina ou do Chile. Vivi esse período — só fui para o exílio em 1973 — e lembro que a maior parte das pessoas não tinha consciência plena do que acontecia. A repressão atingia quem fosse identificado e localizado pelos órgãos de segurança, e isso era muita gente, mas não nas proporções de nossos vizinhos. O movimento popular no Brasil também não atingira o nível de mobilização existente nesses países, o que reduziu a necessidade de repressão em massa.
Na Argentina, estima-se que trinta mil pessoas tenham sido assassinadas ou desaparecidas. No Brasil, foram centenas — ainda assim, um número brutal. Mas boa parte da população, devido à censura rígida, não sabia o que se passava. Muitos nem reconheciam que viviam sob ditadura; quem dizia isso era perseguido. Os meios de comunicação eram limitados e clandestinos.
Quando eu dava aula na UFRJ, há cerca de dez anos, muitos estudantes — e suas famílias — não sabiam que o país vivera uma ditadura de 21 anos. Isso revela o grau de desconhecimento. Era uma repressão seletiva e invisibilizada, e muita gente não percebia o que acontecia nos porões do regime.



