Por Hyader Epaminondas

O Ghibli Fest celebra os 40 anos do Studio Ghibli e também os 40 anos da Sato Company no Brasil com a exibição de Meu Amigo Totoro (1988), de Hayao Miyazaki, uma escolha que não poderia ser mais emblemática. Afinal, foi com este filme que o diretor consolidou sua assinatura autoral e a identidade do estúdio.

Depois de assistir ao documentário Hayao Miyazaki e a Garça, sobre a produção de O Menino e a Garça, fica evidente que o processo criativo de Miyazaki é um exercício constante de sublimação. Ele parte de experiências pessoais, muitas vezes atravessadas por memórias e angústias, e as converte em narrativas capazes de ganhar relevância social e afetiva. É essa transfiguração do íntimo que torna suas obras únicas, mesmo quando se apoiam em temas recorrentes.

Em Totoro, esse gesto criativo se revela através da doença da mãe das meninas, que ecoa a própria história do diretor. A criatura fofa que dá nome ao filme, enigmática e acolhedora, também guarda semelhanças com a maneira como o cineasta se apresenta a seus colaboradores: exigente, misterioso, mas sempre marcado por um cuidado humano artesanalmente genuíno.

À primeira vista, é um filme gostosinho, good vibes, que te acolhe em seus minutos iniciais ao apresentar duas meninas explorando campos verdes e encontrando criaturas encantadoras. Mas é justamente essa simplicidade que esconde sua força: a animação transforma o cotidiano em um espaço sensível de observação de um recorte no tempo, mostrando como a infância se constrói entre ausência, descoberta e imaginação.

Cada detalhe ganha vida: o vento que balança suavemente a grama, o cheiro úmido da terra após a chuva, o sussurro das folhas, o tilintar de pequenas coisas caindo, o ritmo lento do tempo enquanto se espera o ônibus.

Ao mergulhar na narrativa, percebe-se que o que floresce na tela é muito mais do que fantasia. É um estudo sensível sobre a infância, a ausência e a memória em um Japão marcado pela devastação do pós-guerra. Miyazaki constrói um cinema que respira entre o silêncio da perda e a inventividade da imaginação, mostrando como a criança transforma o mundo incerto em território de resistência.

As irmãs Satsuki e Mei são as lentes pelas quais vemos esse mundo. Satsuki, mais velha, carrega a responsabilidade silenciosa de cuidar da irmã e lidar com a incerteza da doença da mãe. Mei, curiosa e impulsiva, desafia o mundo com coragem exploratória, mas também sente a falta, o medo e a solidão.

A relação entre elas é o núcleo do filme: sua cumplicidade, pequenas tensões e aprendizados transformam cada cena em um estudo profundo da infância, como se a rotina mais simples, do transporte para a escola à espera de notícias da mãe, carregasse camadas de significados sobre crescimento, afeto e resiliência.

Totoro e os espíritos da floresta são extensões da percepção das meninas. A fantasia surge como resposta emocional à ausência, mas também como celebração da descoberta. O Gatobús, as árvores gigantes, as florestas misteriosas, os sons e cheiros do campo: tudo funciona como prolongamento sensorial da experiência infantil. Miyazaki não explora escapismo, ele utiliza a linguagem poética para que o fantástico amplifique a realidade, revelando os medos, a ansiedade e a alegria das protagonistas e transformando a experiência cotidiana em um território emocional palpável.

A natureza funciona como um objeto transicional, oferecendo segurança emocional e apoio psicológico para as crianças enquanto enfrentam medos e incertezas da época. No Japão do pós-guerra, marcado pela destruição e pelo luto, Totoro e os espíritos da floresta se tornam refúgios simbólicos, preservando um território seguro diante da aceleração urbana e da instabilidade familiar. Pelo imaginário, Satsuki e Mei mediam seus traumas, transformando a ansiedade em proteção.

A Imaginação como Território de Resistência

A solitude das protagonistas é reflexo de uma sociedade que ainda carregava cicatrizes, e a imaginação surge como estratégia de sobrevivência. O fantástico não substitui a realidade, mas a transforma, criando um espaço seguro onde a dor pode ser nomeada e processada sem violência.

Ao mesmo tempo, em paralelo à trama principal, Miyazaki traça uma crítica ao Japão em transformação. Em um país que se industrializava rapidamente, a infância é retratada em diálogo íntimo com a natureza, preservando tradições, memórias rurais e ritmos de vida que ameaçavam desaparecer diante da alienação urbana. As florestas de Totoro funcionam como territórios de resistência cultural: são o palco em que o imaginário infantil confronta a aceleração do progresso, protegendo a inocência e resgatando a memória coletiva.

As aventuras de Satsuki e Mei no campo são exercícios de sobrevivência emocional, convites à contemplação do silêncio, lembretes de que a imaginação pode ser o mais firme dos refúgios. Totoro não salva o Japão, nem altera o mundo adulto, mas salva a experiência da infância, preservando-a como espaço de cuidado, poesia e imaginação.

Meu Amigo Totoro é poesia crítica em movimento: cinema que nos ensina que a magia não existe para nos afastar da vida, mas para sustentar a própria vida em tempos de fragilidade.