O jornalismo em ‘Guerra Civil’, segundo o cineasta Alex Garland
O mais novo drama político é um filme que, em cada enquadramento, evoca uma série de reflexões. Seu diretor domina completamente a narrativa que pretende mostrar, criando uma sensação iminente de fim do mundo sem a necessidade de explorar o contexto histórico do surgimento do conflito.
Por Hyader Epaminondas
Distribuído pela icônica A24, o mais recente drama político escrito e dirigido pelo britânico Alex Garland, “Guerra Civil”, é uma mistura envolvente de ação, suspense e terror psicológico quase que documental. Apresentando uma visão crua e desprovida de enfeites desnecessários sobre um possível futuro do nosso planeta enquanto discute sobre os efeitos da polarização, sobre o estado atual do jornalismo mundial que se distancia cada vez mais da realidade e dos interesses da população. A produção é situada no meio de uma guerra civil que assola os Estados Unidos, imerso em conflitos e genocídios sem sentido.
Embora a trama se desenrole no trajeto de carro até Washington, a história transcende fronteiras geográficas, pois poderia facilmente ser ambientada em qualquer outro país do planeta.
Embora haja uma notável homenagem ao trabalho jornalístico, Garland parece se inclinar mais em direção ao estado psicológico da personagem Lee Smith, interpretada com uma convicção paralisante por Kirsten Dunst, transmitindo uma certa descrença no poder presumido do jornalismo em investigar os fatos. Nesse contexto, Wagner Moura surge para contrabalançar todo o drama do filme, adicionando um tom de alívio cômico ao ilustrar, através de seu papel como Joel, o vício em adrenalina que um correspondente de guerra inevitavelmente é obrigado a experimentar em doses exageradas. Ele transita delicadamente entre o humor e a seriedade exigidos pelas cenas, projetando seus pensamentos mais íntimos com facilidade através de sua presença fluida principalmente por meio de suas expressões corporais e olhares cheios de tensão.
Essa interação entre os personagens de Dunst e Moura não apenas enriquece a narrativa com nuances, mas também oferece uma reflexão sobre os desafios e as contradições enfrentadas pelos jornalistas em zonas de guerra. Enquanto Dunst expressa a desilusão diante das limitações do jornalismo, Moura proporciona momentos de leveza e introspecção ao retratar as complexidades emocionais inerentes ao trabalho de um correspondente de guerra. Essa dualidade entre descrença e entrega à intensidade da profissão contribui para a profundidade temática do filme, destacando as tensões entre idealismo e realidade na busca pelo recorte jornalístico.
A terceira parte desse triângulo de ideias fica a cargo do ator Stephen Henderson, que interpreta Sammy, um jornalista experiente que não se encaixa mais no ritmo frenético das coberturas de conflitos. Apesar de suas limitações físicas, Sammy serve como uma ponte ideológica entre as discussões de Dunst e Moura. Sua importância no roteiro é retratada como representante simbólico do ideal jornalístico dos outros personagens, quase como se ele fosse o elo que mantivesse a sanidade do grupo intacta em meio às tragédias observadas.
Conforme os eventos vão se desenrolando, acompanhamos os personagens em meio ao caos e à desordem, somos confrontados com questões profundas sobre ética, poder e responsabilidade. A produção deixa explícita de forma direta o desconforto em relação ao estado atual do jornalismo, evidenciando sua tendência ao sensacionalismo e à busca pelo impacto imediato e das propagandas, como demonstrado nas coberturas da invasão ao Capitólio em 2021 e ao Congresso Nacional em 2023.
Estes eventos servem como exemplos marcantes do jornalismo contemporâneo, frequentemente guiado por narrativas que privilegiam o drama e a espetacularização em detrimento da análise profunda e imparcial dos fatos. Apesar de ser ficcional, tudo apresentado no filme não está tão distante da nossa realidade, apenas trazendo para o território americano a carnificina que o país propaga globalmente, com justificativas apoiadas pela ONU em nome da pacificação.
ATRAVÉS DAS LENTES DE UM DIRETOR
A direção de Alex Garland em “Guerra Civil” nos conduz a um cenário distópico, um breve mergulho em uma América dilacerada por uma guerra civil devido às ações de um líder fascista. Essa narrativa não apenas nos transporta para um mundo fictício, mas também ecoa como um espelho crítico do nosso próprio tempo.
À medida que testemunhamos o ressurgimento silencioso de políticas que violam direitos humanos fundamentais e aprofundam a polarização social, somos confrontados com a desumanização crescente do ser humano em diversas partes do globo. Esta produção serve não só como um alerta sobre os perigos de tais trajetórias, mas também como um chamado à reflexão sobre como a rápida e silenciosa transformação de amigos em inimigos está moldando nossa sociedade de forma cada vez mais explícita.
Essa divisão não se restringe apenas a questões políticas, ela se estende também a aspectos culturais, sociais e econômicos, como evidenciado em inúmeros conflitos bélicos ao redor do mundo. Nestes, o motivo primordial muitas vezes se resume a aniquilar o “outro”, independentemente de quem seja esse outro.
Ao dar protagonismo para uma equipe de jornalistas de guerra imersa em meio aos eventos de uma guerra civil, a produção consegue projetar seu papel de meros observadores para se tornarem participantes ativos do conflito. Ao se colocarem no epicentro da ação para registrar os acontecimentos, eles se tornam alvos, o que revela uma dinâmica intrincada entre documentar e participar.
Nesse ponto, o diretor sutilmente transmite suas ideias e críticas, camufladas nas motivações e nas ações dos personagens. Em “Guerra Civil”, seu recorte se manifesta no próprio conflito nos Estados Unidos, inicialmente dividido, onde diferentes facções lutam pelo poder e pela supremacia, cada uma com sua própria versão da verdade e justificativa para suas ações.
Essa dinâmica ecoa fortemente na nossa realidade, onde o jornalismo frequentemente se vê no epicentro de conflitos políticos e sociais. Nesse cenário, a fronteira entre o observador imparcial e o participante engajado muitas vezes se torna tênue, com o jornalismo sempre se inclinando frequentemente para o lado economicamente dominante. Essa tendência compromete a integridade da profissão, minando sua capacidade de fornecer uma cobertura verdadeiramente imparcial e representativa dos acontecimentos.
COMO UM ABUTRE: O SENSACIONALISMO E O JORNALISMO
O filme constrói gradualmente um sentimento de decepção, manifestado tanto no olhar de julgamento capturado pelas lentes da câmera de Garland quanto na hesitação dos personagens diante da intensidade do momento. Parece que os personagens começam em um ponto de ingenuidade quase idealista e, ao longo da viagem até Washington, vão se despojando da hipocrisia.
Essa mudança ocorre sutilmente, através de pequenas inserções sutis nos diálogos, onde as discussões dentro do carro se tornam cada vez mais íntimas. Essa relutância revela não apenas a complexidade moral do contexto, mas também a vulnerabilidade dos jornalistas em situações extremas, onde muitas vezes o lado humano dentro do jornalista é ignorado.
O filme nos lembra como a verdade é muitas vezes subjetiva e fragmentada, um recorte do que realmente aconteceu, sem sentido e algumas vezes frustrante. Cada facção no conflito tem sua própria narrativa e cabe aos jornalistas navegarem por essa complexidade de verdades parciais e manipulações para no fim se posicionarem da forma que seu editorial permitir.
Esse arco narrativo é encabeçado pela atriz Cailee Spaeny, uma fotojornalista em início de carreira, idealista e ávida por aprender com uma das melhores do ramo, enquanto contracena com Dunst de forma destemida. Sua jornada é como a de uma viciada do filme “Réquiem para um Sonho”, mergulhando em um ambiente estratosférico e alucinógeno que uma guerra pode trazer. Sua completa exposição a esse ambiente toxicamente viciante a transforma em uma alegoria quase como a de um abutre que circunda a carne podre, revelando a natureza voraz e oportunista do jornalismo em meio ao caos e à destruição.
É através das ações de seus personagens que Garland consegue transmitir todo o seu descontentamento com o jornalismo, de certa forma a verdade muitas vezes é sacrificada em nome do sensacionalismo e da narrativa dominante. A ideia utópica de que o jornalismo é imparcial promove uma desumanização generalizada da prática jornalística. A busca pela isenção de opiniões frequentemente transforma essa atividade em uma abordagem centrista, que tende a favorecer aqueles que possuem mais recursos financeiros.
O resultado disso é evidente na mídia tradicional, onde jornalistas são muitas vezes tratados como meros apresentadores descartáveis, facilmente substituíveis até mesmo por robôs. Basta assistir a um programa de debate nessas grandes emissoras para perceber como as questões humanas são consistentemente deixadas de lado, se não completamente esquecidas. O verdadeiro papel do jornalismo deveria ser destacar e priorizar as narrativas humanas, ao invés de ceder ao domínio dos interesses corporativos ou políticos.
“Guerra Civil” oferece uma reflexão poderosa sobre a interseção entre política, jornalismo e o papel subjetivo da verdade na sociedade contemporânea. Ao analisar criticamente essa obra em relação à situação sociopolítica atual, somos confrontados com questões profundas sobre a natureza da verdade, a objetividade jornalística e o papel dos meios de comunicação na construção da realidade coletiva, cujo único propósito deveria ser evitar mais mortes. Contudo, diante dessas reflexões, surge a dúvida: estarei sendo idealista demais como jornalista?