
O inconsciente coletivo na corda: uma abordagem psicanalítica do Círio de Nazaré
Que o Círio de Nazaré atrai todos os anos milhões de pessoas de diferentes raças, credos, gêneros, classes e idades, todos já sabemos. Agora, o que leva uma multidão a se emocionar e seguir com fé e sacrifício a procissão? Aqui fazemos uma análise psicanalítica de como a mente humana se comporta em um evento tão único e emocionante
Por Chris Zelglia
O Círio de Nazaré não é apenas uma manifestação religiosa. É um fenômeno psicológico coletivo onde arquétipos ancestrais ganham forma concreta através de símbolos, gestos e rituais. A corda, elemento central da procissão, transcende sua função física para se tornar um poderoso significante no imaginário coletivo paraense. Sob a perspectiva psicanalítica, especialmente à luz das teorias de Carl Jung, o Círio revela-se como um palco onde se encena o drama entre o consciente e o inconsciente, o individual e o coletivo, o humano e o divino.
Na psicologia junguiana, a corda representa um dos arquétipos mais primordiais: o vínculo de união. Assim como o cordão umbilical conecta o feto à mãe, a corda do Círio simbolicamente une o devoto ao sagrado criando uma ligação física com o divino; o indivíduo à coletividade dissolvendo fronteiras egóicas na massa e a tradição ao presente conectando gerações através do tempo.
A corda é o fio condutor que nos leva de volta ao estado de unidade primordial, à experiência do self coletivo. O momento em que a corda é cortada para a passagem da Berlinda carrega um profundo significado psicanalítico: é a ruptura necessária que representa a separação inevitável para o crescimento; é a passagem para o sagrado no qual se cria um limiar entre o profano e o divino; é a morte e renascimento que simboliza o fim de um ciclo e início de outro e a individuação no rompimento que permite o desenvolvimento individual.
O corte não é uma quebra, mas uma transformação. Assim como o cordão umbilical deve ser cortado para o nascimento, a corda do Círio se rompe para permitir o renascimento espiritual.
Arquétipos em Movimento: Os Personagens do Drama Coletivo
O Círio atualiza arquétipos universais através de seus personagens e símbolos:
A Mãe (Nossa Senhora):
- Representa o arquétipo da Grande Mãe, simboliza acolhimento, nutrição e proteção. Encarna o aspecto divino do feminino
O Romeiro:
- Personifica o arquétipo do Peregrino. Representa a busca por significado e transcendência. É a encarnação da jornada do herói em busca do sagrado.
A Multidão:
- Manifesta o inconsciente coletivo em movimento. Representa a unidade na diversidade e simboliza a força do grupo sobre o indivíduo
- Os rituais do Círio funcionam como válvulas de escape psíquico.
- O toque na corda é a catarse física, a descarga de energia emocional reprimida. A comunhão arquetípica é a experiência de união transcendental, a regressão controlada como o retorno simbólico ao estado de fusão primária.
Promessas e Sacrifícios:
- São mecanismos de elaboração, processamento simbólico de traumas e desejos. São pactos inconscientes, negociações simbólicas com o divino. A busca de equilíbrio psíquico através do sacrifício.
A Sombra Coletiva: Os Aspectos Ocultos da Festa

Na perspectiva junguiana, todo fenômeno psíquico carrega seus opostos complementares, ou seja, onde há luz, há também sombra. O Círio, em sua grandiosidade, não escapa a esta dinâmica, manifestando aspectos menos conscientes que merecem reflexão.
As manifestações da sombra coletiva aparecem de forma sutil. Na pressão física da multidão e na disputa por espaço junto à corda, expressa-se uma agressividade contida, uma força primordial que emerge do anonimato da massa.
Na transferência total da autonomia individual para o sagrado, vislumbra-se um risco: o da dependência psicológica, onde o devoto pode abrir mão de sua capacidade de agência em favor da intervenção divina.
Na dissolução extrema do eu no coletivo, ocorre por vezes uma negação da individuação, processo fundamental de desenvolvimento pessoal que requer certo grau de separação e autoafirmação.
O Círio nos oferece um raro retrato da psique coletiva paraense, com suas luzes e sombras. Reconhecer essa complexidade é fundamental para uma compreensão integral do fenômeno.
O Círio como Sonho Coletivo
Assim como os sonhos individuais revelam conteúdos inconscientes, o Círio pode ser compreendido como um sonho coletivo que se repete anualmente:
Com elementos oníricos, podemos identificar a condensação com múltiplos significados em um só símbolo; o deslocamento com a transferência de afetos para objetos sagrados e a encenação com representação dramática de conflitos psíquicos.
O Círio é o sonho que Belém sonha junto todos os anos. Nele, projetamos nossas angústias, esperanças e desejos mais profundos.
A Corda que Nos Tece
Mais do que um objeto físico, a corda do Círio é um fio narrativo que costura a psique individual ao inconsciente coletivo. Através dela, vivenciamos ritualmente os grandes dramas humanos: a separação e a união, a individuação e a pertença, o sagrado e o profano.
O corte da corda, longe de ser uma simples interrupção, é um momento de transformação psíquica onde o coletivo experimenta simbolicamente a necessária ruptura para o crescimento. É na dança entre união e separação, entre fusão e individuação, que se constrói o complexo tecido psicológico que sustenta esta manifestação única.
O Círio, em última instância, revela-se não apenas como expressão de fé, mas como espelho da alma coletiva paraense, onde podemos observar, em escala monumental, os eternos dramas do espírito humano em sua busca por significado e transcendência.
Referências Bibliográficas:
– Jung, Carl Gustav. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo
– Neumann, Erich. A Grande Mãe
– Eliade, Mircea. O Sagrado e o Profano