O giro ético de Eliza Capai em ‘Incompatível com a vida’
A documentarista falou sobre seu novo filme que estreia no Festival É Tudo Verdade
Por Juliana Gusman
Em entrevista à jornalista portuguesa Ana Cristina Pereira, a documentarista Eliza Capai disse saber, apesar de seus desejos, que era cientificamente errado se referir ao seu feto como o bebê que ele ainda não era e que, tristemente, não haveria de ser. Já a escritora Annie Ernaux, ganhadora do prêmio Nobel de literatura em 2022, jamais nomeou o seu feto de outra maneira. Em O Acontecimento (Editora Fósforo, 2022), relata seu périplo em busca do abortamento, ilegal durante sua juventude na França dos anos 1960. Em Incompatível com a vida (2023) – que estreia no dia 15 de abril no Cine Marquise, em São Paulo, como parte da programação do Festival É Tudo Verdade – Capai também recorre ao procedimento após receber o diagnóstico que dá nome à sua obra. As diferenças de tratamento que essas duas mulheres concedem a essa complexa díade bebê-feto acaba sendo iluminada pela fala curta e arguta de uma das personagens do filme: “Filho é amor. Você tem que querer”.
De semelhante, as portadoras de fetos e as mães de bebês impossíveis têm as experiências de desamparo médico e legal nas suas tentativas de retomar dignidades. A interrupção da gravidez, por qualquer motivo – e não há que se julgar pertinências – enseja toda sorte de agruras: de ultimatos policiais e religiosos a raspagens a seco da parede uterina. No Brasil, a misoginia institucionalizada, agravada nos últimos quatro anos de um governo multiplamente genocida, obstrui um debate franco sobre o aborto; não por acaso, uma das nossas mais proeminentes pesquisadoras sobre o tema, Débora Diniz, foi obrigada a deixar o país depois de persistentes ameaças de morte. Não conseguimos conversar sobre o aborto como tópico legítimo à saúde coletiva, e muito menos como tópico legítimo às escolhas individuais.
Incompatível com a vida aborda essas macro-violências em tom menor, mas não porque não lhes dá a devida importância. Ele se ocupa oportunamente das questões de ordem pública, porém prefere tratá-las a partir dos seus atravessamentos na política dos afetos e nas rebeliões em quatro paredes. Não há filme sobre luto que não desbrave intimidades. Capai, num giro ético, começa pela sua.
Na verdade, o exercício de uma escrita de si começou um pouco antes do martírio. Encurralada pelo tempo oco do início dos anos pandêmicos, Capai começou a registrar aquilo que era possível “para não perder o traquejo”. Descobriu-se grávida e, logo depois de chegar a Portugal, terra natal de seu companheiro à época, João Pina, descobriu a inviabilidade dessa gravidez. De um grande azar, tirou uma pequena fortuna: por lá, poderia encurtar sofrimentos. “Eu não conseguia imaginar como seria estar naquele lugar emocional e ter que encarar a realidade brasileira em que o aborto é proibido e ilegal”. Uma documentarista feminista, aguerrida e enraivecida saberia que daquela angústia nasceria um filme. Contudo, logo entendeu que não conseguiria retratar o tormento alheio se ela própria não assumisse os riscos da representação. “Se eu não fosse capaz de virar a câmera nesse momento e me gravar, eu não teria mais o direito de fazer isso com ninguém. É muito fácil expor a dor dos outros. Agora, eu teria coragem de me expor?”. Teve. Seguiu se apoiando em tripés.
Em um trabalho cuidadoso da montagem – assinado por Daniel Grinspum – a tragédia de Eliza vai se costurando aos depoimentos de Alana, Laís, Isabela, Priscila, Shuane e Tainah. Às vezes, as imagens de umas se sobrepõem às vozes das outras, que assim vão se alinhavando em um(a) tra(u)ma comum. “Eu precisava de ajuda, precisava de espelhos”, explica a diretora, que pontua a narrativa com esses objetos alegóricos, evocadores de suas buscas por pares latentes.
Capai também mobiliza figuras de linguagem visuais para preencher lacunas. Com frequência, materializa não ditos no mar: “Acho que há uma relação óbvia da maternidade com água, pensando que é onde os fetos, quase peixinhos, crescem. Para diversas leituras, como a psicanálise e os estudos dos sonhos, a água tem muito a ver com nossos sentimentos. E entre as mulheres com as quais eu conversei no processo de pesquisa eles eram muito parecidos. Fui procurando formas de traduzir isso. Como com aquele colchão à deriva, por exemplo: você não sai da cama. O tempo que você pode passar na cama você está ali, quieta. É quase literal. Já o estar submergida começou com um sonho que eu tive, que eu entendo como meu corpo me avisando da má-formação fetal. E quem trabalha a questão do luto neonatal e pré-natal fala muito da sensação de você estar dentro de uma piscina da qual você não consegue sair. O filme mergulha nessas figurações do onírico, que trazem múltiplas leituras”. (Aqui, lembro de outras obras afluentes que tentaram concretizar afogamentos metafóricos: penso em Elena, de Petra Costa, ou em Casa, de Letícia Simões, assim como nos curtas As Miçangas, de Rafaela Camelo e Emanuel Lavor, e Infantaria, de Laís Santos Araújo, que, na seara da ficção, enfrentaram as mesmas bravas correntezas de Incompatível com a vida).
A despeito do seu aceno à performatividade poética, o documentário de Capai embala uma certa aspereza. “No processo de abortamento, existe uma crueldade de uma medicina que não sabe lidar com ele. Enquanto você está fazendo seu ultrassom e estão descobrindo que aquele bebê vai morrer, parece que o que eles estão vendo não tem nada a ver com o corpo que está ali deitado absorvendo aquelas informações. Quando eu recebi a notícia, não me olharam nos olhos. Meu corpo era a fonte de tudo que se falava e ele estava sendo renegado naquela sala. Então eu senti que deveria colocar esse corpo como protagonista”. E o faz, com crueza e sem esquivamentos.
Nesse sentido, Capai se achega de Ernaux. Se uma expele um feto e a outra expele um filho, pouco muda. As duas nos colocam diante de cenas “sem nome”. Capai trouxe ao cinema – mais do que o filme de Audrey Diwan diretamente inspirado no romance francês – a imagem do bonequinho “na ponta de um cordão avermelhado”. “Mostrar o feto é uma polêmica. Se todo mundo nessa hora virasse o olho e não conseguisse mais voltar à tela, não adiantaria nada. Mas acho que eu sempre faço filmes que têm um anseio didático. E tem uma coisa que para mim foi muito importante: ter uma enfermeira que me perguntou se eu queria ver. Minha primeira resposta foi que não. Eu queria ver ele brincando, não queria ver ele morto. E eu perguntei o que ela achava. Ela disse: ‘Você tem que fazer o que você quiser, mas em todos os casos que eu conheço em que se olhou, a recuperação foi muito melhor’. A gente tem que encarar o feto. Isso ajuda a entender o que acabou de acontecer”. Ajuda, segundo Capai, na lida com uma perda invisível: “Por que é alguém que aquele casal ama profundamente e que tem um lugar de projeção. Quando ele some, some todo um futuro junto, que ninguém mais viu”. Incompatível com a vida nos chama à responsabilidade de encarar processos e alargar compreensões.
Mas não é fácil revelar as próprias vísceras. “Essa estreia é muito diferente da estreia de outros filmes. Eu não sou apenas a diretora e é muito estranho ver meu corpo na tela, congelado no meu pior momento emocional. E eu venho de um documentário vibrante, o Espero tua (re)volta, que foi muito premiado. Esse novo filme é o oposto. É triste, solitário” – e, supõe a diretora, quase incompatível com uma vida em festivais.
“Para o público-alvo ele é um abraço, mas a gente vive em uma sociedade na qual o Lula quase perdeu as eleições ao dizer que aborto era uma questão de saúde pública”.
E não podemos desconsiderar que o longa de Capai será recepcionado e ressignificado por um circuito crítico majoritariamente masculino. “Quando o É Tudo Verdade me passou a lista das pessoas que haviam assistido ao filme para fazer críticas, só tinha homem. Eu acho, por um lado, muito importante, já que ele trata de um tema para o casal. A mulher não faz filho sozinha. Mas é claro que se para a gente é difícil lidar com o aborto, para os homens é ainda mais. Acho que o documentário mostra um pouco isso. Eles são menos preparados para lidar com momentos de abismo”. Por isso, parece lamentável a volta desse e de outros festivais ao formato exclusivamente presencial, o que limita não só o alcance de obras urgentes, como o trabalho de Capai, como inibe as discussões ensejadas por uma prática crítica – independente, militante e feminista – mais inclinada a saltar de precipícios.
Ao final de seu livro, Annie Ernaux diz: “Eliminei a única culpa que senti a respeito desse acontecimento – que ele tenha acontecido comigo e que eu não tenha feito nada dele. Como um dom recebido e desperdiçado”. Eliza Capai também entende que “a culpa é um ingrediente absolutamente desnecessário nessa receita” já bastante densa, que só existe e persiste por causa de leis e discursos brutais. E assim como Ernaux, também buscou fazer algo do seu dom insólito. Encarnou a chiffonnier sobre qual fala a pesquisadora e tradutora Isadora Pontes, que investiga narrativas sobre aborto: Capai se transforma em uma catadora e ordenadora de memórias, que junta retalhos para “restituir a imagem daquilo que foi destruído, contar a história transformada em ruínas”. Por meio do cinema, abre caminhos para que outras mulheres façam o mesmo.
Imagino que Eliza colherá novos rastros na (espero longeva) jornada de Incompatível com a vida, que nos convoca à multiplicação e à partilha. Por causa dele, por exemplo, entendi melhor por que minha mãe chorou por três dias trancada em um quarto quando sofreu um aborto espontâneo na sua primeira gravidez há mais de três décadas. Redimensionei o peso do remorso que minha avó nonagenária carrega até hoje por ter ajudado uma amiga a “se livrar de um problema”, mesmo acreditando ter feito a coisa certa. Ainda não sei o que fazer com o assassinato de uma bisavó que foi obrigada a se submeter a um aborto pelo ex-marido, que a deixou sangrando como uma porca até a morte, enquanto dois de seus filhos testemunhavam o crime pelo buraco de uma fechadura. E para além dessas heranças, tenho que lidar com meus próprios medos. Mas, como Eliza nos lembra, somos muitas, e estamos juntas.
Após a exibição de estreia, Incompatível com a vida contará com sessões nos dias 18 e 19 de abril, no Rio de Janeiro e em São Paulo. A plataforma de mobilização social Taturana já está organizando as ações de sua campanha de impacto, uma boa oportunidade de extrapolar fronteiras. Para saber mais, acompanhe perfil oficial do documentário no Instagram.