Por Igor Fonseca

Em 2024, o Emmy decidiu fazer história. Pela primeira vez em 76 anos de premiação, uma série em língua não-inglesa lidera as indicações. O drama Shōgun (Xógum: A Gloriosa Saga do Japão) concorre a 25 categorias, já tendo vencido 14 prêmios técnicos – entregues no Creative Arts Emmy no último final de semana – e ainda tem chances de levar mais oito na cerimônia principal, que acontece neste domingo, 15 de setembro. A série é ambientada no Japão feudalista do século XVII, possui um elenco majoritariamente oriundo da cena cinematográfica de lá, e tem a maioria dos seus diálogos falados em japonês.

Entretanto, para que a premiação se permitisse escrever um novo capítulo em sua trajetória, velhas linhas divisórias precisavam ser traçadas. Afinal, Shōgun se trata de uma produção estadunidense, viabilizada pelo canal de televisão FX, e conta com nomes como Michael De Luca (responsável por lançar as carreiras de David Fincher e Paul Thomas Anderson quando comandava a New Line Cinema) entre os produtores executivos. Então, até que ponto podemos afirmar que o Emmy está aberto a narrativas fora do eixo ocidental?

A primeira vez em que uma série internacional marcou presença nas categorias principais foi em 2022, quando Round 6 (Netflix) esteve indicado à Melhor Série de Drama, cuja vitória naquele ano foi para Succession (HBO). Além disso, obteve seis vitórias inéditas, incluindo categorias como Melhor Ator e Melhor Direção em Série de Drama. Há um cenário que possibilitou a abertura das fronteiras entre Round 6 e o Emmy, e possivelmente pavimentou o caminho para o favoritismo de Shōgun na disputa de 2024. Não há como negar que a distopia sul-coreana foi beneficiada por uma onda cultural, colocada em marcha pela Coreia do Sul há pelo menos 3 décadas, e que levou boas porções do mundo a navegarem pelas produções musicais e audiovisuais do país.

Também é preciso levar em consideração que o Emmy possui mais de uma modalidade. A que estamos nos referindo aqui atende pelo nome Primetime Emmy, derivado do conceito de “horário nobre” – a programação da noite. Existe outra premiação, intitulada Emmy Internacional, que é voltada a toda e qualquer produção realizada fora dos Estados Unidos. A Rede Globo, aliás, já chegou a ser premiada em diversas edições, nas categorias de jornalismo, novelas e séries/minisséries. Essas produções ficam limitadas a um reconhecimento menor, sem o mesmo peso do prêmio original, em uma situação similar a do Grammy Latino, voltado para produções musicais da América Latina.

O cenário descrito até aqui ganha mais peso ao considerarmos a existência da dita Era de Ouro da Televisão, termo empregado para falar do boom de séries e minisséries que revolucionaram a forma de se produzir e interagir com conteúdo televisivo. Iniciada nos anos 2000 e marcada por títulos como The Sopranos, Sex and the City, Lost e Game of Thrones, essa Era possui suas próprias limitações bem demarcadas. Ignora obras calcadas no melodrama (embora várias séries que definem o período possuam características dele), e se fecha no cinturão de produções em língua inglesa. Países com ricas culturas televisivas e evoluções técnicas e narrativas notórias ocorridas no mesmo período, a exemplo do Brasil, do México e do próprio Japão, são amplamente ignorados nessa cartografia, seja em listas de críticos ou nas premiações.

Isso nunca impediu a indústria estadunidense de surrupiar narrativas estrangeiras, e colocá-las dentro de seu circuito. Sabemos de quem estamos falando, eles não conseguem se conter. Homeland (Showtime) e Euphoria (HBO), duas estrelas cadentes da Era de Ouro, baseiam suas premissas em séries israelenses. Vale mencionar Ugly Betty (ABC), completamente deslocada do ovacionado contexto de que estamos falando, que adapta o fenômeno colombiano Yo soy Betty, la fea (RCN). 

Minha intenção não é sonhar com uma realidade alternativa na qual Adriana Esteves tivesse levado o Emmy por Avenida Brasil, ou que Os Outros (Globoplay) tivesse tirado a vaga de The Crown (Netflix) esse ano, ainda que as duas timelines me agradem. O ponto é levantar provocações: Quem exporta as narrativas seriadas de prestígio? Quem determina os critérios de qualidade? Até que ponto é possível mentes criativas fora do eixo dominante, em um idioma que não seja o inglês, triunfarem ou sequer serem notadas por essa premiação? 

É altamente provável que Shōgun faça a rapa enquanto escreve seu nome na história. E é mais provável ainda que ela levante um muro, para continuar a segregação cultural. Nos resta decidir se vale a pena brigar por esses espaços, ou virar as costas para construirmos os nossos.