Por Juliana Gomes

Em tempos de algoritmos, séries que viralizam nem sempre carregam o peso da história, mas O Eternauta é diferente. A nova produção da Netflix, protagonizada por Ricardo Darín, resgata um clássico dos quadrinhos argentinos dos anos 1950 e o transforma em um grito de memória. Por trás da ficção científica, há um legado real de sangue, censura e resistência. E talvez seja por isso que essa história ainda nos atinja como uma nevasca silenciosa — daquelas que congelam o tempo e revelam feridas mal cicatrizadas.

Baseada na obra de Héctor Germán Oesterheld e Francisco Solano López, O Eternauta narra a história de uma Buenos Aires tomada por uma neve radioativa mortal, que obriga os sobreviventes a se protegerem e resistirem contra uma ameaça invisível. Mas o que parece um enredo típico da ficção científica logo se revela como metáfora potente da realidade latino-americana: opressão velada, autoritarismo instaurado, corpos desaparecidos e lutas travadas no silêncio.

O autor da HQ não sobreviveu à ditadura argentina. Desaparecido em 1977, Oesterheld foi preso pelos militares e nunca mais foi visto. Quatro de suas filhas também desapareceram. Seus textos, porém, ficaram — e se tornaram ainda mais poderosos com o passar do tempo. Escrevendo no coração de uma época de censura e repressão, Oesterheld construiu uma obra que falava de um inimigo externo, mas que qualquer leitor atento sabia reconhecer como interno.

O nome da obra, O Eternauta, carrega mais do que ficção: remete ao viajante da eternidade, aquele que atravessa o tempo como testemunha. E, neste caso, como denúncia viva. Somos todos um pouco eternautas nesta América Latina marcada por golpes, ditaduras, repressões e apagamentos. Viajamos na memória — muitas vezes contra nossa vontade — tentando reconstruir os pedaços da verdade que o autoritarismo tentou congelar.

Assistir à série hoje é um ato que vai além do entretenimento. É um lembrete de que a arte continua sendo uma das formas mais valentes de resistência. A nevasca mortal que cobre Buenos Aires no enredo pode ser lida como símbolo das tentativas de apagar vozes dissidentes, neutralizar corpos políticos, calar famílias inteiras. Mas também é metáfora da resistência que se ergue mesmo nas condições mais adversas. Uma resistência coletiva, silenciosa, mas inquebrável.

A história de O Eternauta ecoa não só na Argentina. Ela se estende ao Brasil e a toda a América Latina, onde golpes militares silenciaram gerações e deixaram cicatrizes abertas. A série, ao emergir neste momento, em plena efervescência das discussões sobre democracia, justiça de transição e revisão histórica, nos provoca a olhar para trás e nos perguntar: o que ainda está congelado em nós?

No Brasil, o negacionismo histórico e os ataques à memória da ditadura mostram que nossa neve também não derreteu por completo. Ainda somos atravessados por silêncios forçados, por nomes que faltam, por arquivos lacrados. Ainda há eternautas entre nós — mães, pais, netos e netas que caminham carregando as ausências em seus ombros e em suas lutas.

E talvez essa seja a beleza brutal da série: ela escancara que há ficções que contam verdades mais profundas do que a própria realidade. E que há histórias que, mesmo sendo contadas no passado, são faróis para o presente. No mundo de O Eternauta, o herói não é um escolhido com superpoderes. É um homem comum, um grupo de vizinhos, uma coletividade que se ergue frente ao caos. É a metáfora perfeita para os povos latino-americanos.

Como bem disse Oesterheld: “O verdadeiro herói é o herói coletivo, o povo”. E, nesse sentido, O Eternauta continua sendo, talvez, uma das mais comoventes e revolucionárias homenagens aos que resistem.