
O espaço fantasmagórico de ‘A Grande Viagem da Sua Vida’
Kogonada captura um romance que transforma traumas em cura, mostrando que abrir as portas da mente é também se abrir para amar
Por Hyader Epaminondas
À primeira vista, o material de divulgação de A Grande Viagem da Sua Vida sugeria mais um romance de autodescobrimento revestido de nostalgia, evocando as comédias românticas dos anos 2000. Porém, o diretor sul-coreano Kogonada recusa o caminho do conforto e da repetição, ao nos conduzir a uma exploração cinematográfica que transcende as expectativas do gênero, para dar lugar a uma sessão de terapia.
Sua obra se desenvolve em um espaço limítrofe entre a estranheza surreal de Salvador Dalí e a engenhosidade narrativa de Charlie Kaufman, ilustrando um filme em que o absurdo não é só visual, mas também estrutural, no modo como a história é contada para habitar aconchegantemente o território do inconsciente e transformar a própria ação em performance estética. Tudo isso enquanto distrai a atenção com diálogos ácidos, tão absurdos quanto assertivos, entre os personagens que visualmente se perdem em meio à imensidão dos cenários abertos e coloridos.
A partir dessa escolha estética, o que parecia uma simples jornada afetiva se converte em investigação psicanalítica, na qual amar significa, sobretudo, atravessar os próprios labirintos internos, e a mente dos personagens se torna espaço narrativo, misturando fantasia e realidade de forma fluida, em que as ações externas refletem nos conflitos internos. O veículo simbólico que sustenta essa narrativa é um carro velho guiado por um GPS, elemento que, ao mesmo tempo em que orienta os protagonistas por uma estrada fantasmagórica, se revela como uma metáfora da mente que busca rotas para enfrentar seus próprios fantasmas.
A maneira como os personagens interagem com o carro, gesticulando, reagindo aos comandos da máquina ou trocando olhares silenciosos, transforma cada movimento em uma verdadeira performance da introspecção. Por mais que os diálogos preencham o espaço, é no silêncio constrangedor e natural dos primeiros encontros que eles se encontram no meio do caminho, como se cada pausa falasse mais do que qualquer fala.
A química de Margot Robbie funciona como catalisador, irradiando energia e vivacidade, enquanto Colin Farrell imprime ao ar uma melancolia contida, articulada em frases carregadas de angústia, mas sempre com o desejo contido de tentar mais uma vez. Nos intervalos de descanso, quando os personagens entregam o controle à voz mecânica do GPS, emerge uma crítica sutil ao nosso mundo hiperconectado, onde a tecnologia promete caminhos claros, mas raramente oferece destinos reais.
Nesse contraste entre a máquina que dita direções e o coração que hesita em segui-las, Kogonada constrói uma reflexão sobre o amor como desvio necessário, impossível de ser reduzido a coordenadas digitais, e enfatiza a estética do gesto humano frente à rigidez do dispositivo mecânico.
O filme transforma o carro em cápsula da mente, onde cada comando mecânico lembra que, no mundo hiperconectado, seguimos mapas prontos enquanto esquecemos de percorrer os nossos próprios labirintos internos. Amar é desligar o piloto automático e confiar na direção incerta do coração, em uma coreografia sutil de olhares, toques e pausas performáticas que tornam visível o invisível do afeto.
Abrir Portas, Abrir Corações: Amor e Memória em Viagem
O dispositivo mais marcante desse percurso são as portas. Em mãos menos inventivas, poderiam se reduzir a símbolos óbvios de passagem ou mudança. Aqui, no entanto, elas assumem função terapêutica. Cada porta aberta performa uma pergunta perante os protagonistas, correspondendo a um encontro direto com uma memória, um trauma ou um fragmento da mente recalcado pelo tempo.
O gesto de abrir é também o gesto de encarar, de se expor ao que antes permanecia oculto, transformando-se em ação estética que se comunica sem palavras. Mesmo quando os personagens hesitam ou tentam desistir, o simples ato de atravessá-las já se configura como um fragmento de cura, um movimento delicado, porém intenso, que revela a coragem de enfrentar o próprio inconsciente.
Há uma sensibilidade ardida na maneira como Kogonada enquadra esses instantes, tentando capturar a aura de um fragmento de realidade. Os traumas não surgem como feridas espetacularizadas, mas como memórias que retornam para ser revisitadas com delicadeza. O confronto com esses fantasmas não é encarado como punição, mas como uma oportunidade de acolhimento, permitindo que os personagens integrem essas experiências à sua trajetória emocional.
Ao invés do amor instantâneo ou da atração idealizada, vemos um processo em que os protagonistas se abrem primeiro para si mesmos antes de se abrirem um para o outro. Cada porta revela que só há encontro verdadeiro quando existe coragem de enfrentar as próprias fragilidades. O vínculo amoroso floresce da vulnerabilidade compartilhada, não da máscara da perfeição e da estética do corpo em presença, da performance de cada hesitação, cada passo cuidadoso, cada respiração medida.
Ao mesmo tempo, Kogonada evita transformar esse percurso em lição explícita. A máxima tantas vezes repetida de que, para amar o outro, é preciso amar a si mesmo, não é enunciada, mas vivida em imagens e nas performances da dupla protagonista. O surrealismo aqui é veículo de elaboração, e o diretor traduz o labirinto interno em imagens de desejo, medo e estranhamento que, paradoxalmente, aproximam dos dilemas apresentados. Todos reconhecemos, em alguma medida, as portas que mantemos fechadas dentro de nós, e nos gestos performáticos dos personagens vemos espelhadas nossas próprias hesitações.
E nessa transição para uma investigação filosófica do gesto amoroso, Kogonada não recorre ao clichê da repetição de encontros fortuitos ou de declarações passionais. Em vez disso, expõe um processo que humaniza o romance, tornando visível a construção delicada da intimidade e da vulnerabilidade entre os protagonistas, numa coreografia de vulnerabilidade e presença estética, o que é sintetizado com perfeição na personagem de Robbie.
A jornada que o título anuncia não é apenas geográfica ou narrativa, mas psíquica. Trata-se da viagem para dentro, onde só é possível avançar porque alguém está ao lado, disposto a atravessar junto, compartilhando a performance de um sentimento em construção.
A Grande Viagem da Sua Vida oferece um ótimo romance original, um tanto quanto intelectual, no sentido de só funcionar se você se permitir a possibilidade de abrir a porta para o filme, capaz de unir a leveza do amor e o peso da memória em um só movimento, tornando cada fragmento do momento e cada plano parte de uma experiência completa sobre o ato de amar.