Transpirando ancestralidade e identidade cultural, o 3º Encontro de Jongos do Vale do Café ocorreu no último sábado (27) na cidade de Pinheiral, no interior do Rio de Janeiro, reunindo cerca de 400 lideranças quilombolas de 18 comunidades tradicionais do estado e de São Paulo. Em comemoração ao Dia Estadual do Jongo no dia anterior, o evento contou com diversas apresentações artísticas, um cortejo afro religioso, mesas de diálogo com autoridades e mestres representantes das comunidades da região, além de uma feijoada para os participantes e barracas de artesanato.

Marcada pelas grandes fazendas de café, a região tem um forte histórico de escravidão e resistência cultural. Cinco comunidades centenárias, que pertencem ao Circuito Afro do Vale do Café, estavam à frente das atividades, que também contaram com o apoio dos governos federal, estadual, municipal e outros parceiros. O jongo, considerado o pai do samba carioca, é reconhecido desde 2005 pelo Instituto de Patrimônio Histórico Nacional (Iphan) como patrimônio imaterial do Brasil, e foi nessa região que essa tradição, riqueza de ritmo e cultura ancestrais nasceram nos tempos das senzalas. Em 2023, para contribuir na salvaguarda do jongo, essas comunidades lançaram o elogiado álbum “Jongo do Vale do Café”, que registrou dezenas de pontos de jongo centenários e que está disponível nas plataformas digitais.

Principal matriarca e anfitriã do jongo de Pinheiral e umas das principais lideranças do jongo no Brasil, Maria de Fátima da Silveira, de 68 anos, conhecida como Mestra Fatinha do Jongo, atua há mais de quarenta anos na preservação da história, tradição, religião e memória da dança na região. Atualmente, é a presidenta da Associação de Comunidades de Jongo e Caxambu do estado do Rio de Janeiro e já participou de diversos espaços de pesquisa e promoção do gênero, como na Comissão Nacional de Mestres e Griôs e no Conselho de Cultura do Estado do Rio, dentre outros. Na mesa com a presença de outras lideranças locais, ela ressaltou a importância do orgulho jongueiro para manter a tradição viva e a amizade entre as comunidades.

Foto: Marcelo Costa Braga

O movimento que originou os encontros, segundo ela, ajudou no reconhecimento do jongo como patrimônio imaterial e começou no noroeste do Estado. Ao longo dos anos, outras comunidades fluminenses e paulistas foram se aproximando, ao ponto de ficar inviável um evento de tamanha proporção por conta da falta de apoio. Hoje, aos poucos, o encontro volta a ocorrer em Pinheiral e é muito importante para recobrar esse protagonismo, explicou.

“Tivemos a figura do Mestre Cabiúna, Mãe Zeferina, Tia Mazé, Mestre Darcy no Rio, que foi o nosso líder, Mãe Tetê do Quilombo São José, da Tia Maria do Jongo e do saudoso líder Toninho Canecão, que brigaram muito para que os jongueiros fossem respeitados. Nossa luta vem de muito longe. O jongo nasceu aqui nas senzalas do Vale do Café e em Pinheiral nunca esteve adormecido. A gente traz a tradição desde os negros escravizados. Temos muito orgulho de representar a nossa cultura Brasil afora, e falarmos nós mesmos sobre as nossas coisas. É importante que a gente se empodere disso, porque ser jongueiro é vivência. Isso é passado de geração em geração via oral, a gente não aprende nos livros. Temos que ter orgulho de carregar isso e honrar a memória dos nossos ancestrais”, defendeu Mestra Fatinha.

Parque temático em Pinheiral

Há uma expectativa grande das organizações jongueiras sobre a possibilidade de, no IV Encontro de Jongo do Vale do Café, no próximo ano, ser lançado o Parque Temático da história do negro e sua contribuição no Vale do Café. O projeto foi aprovado no novo edital do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) para transformar as ruínas da antiga Fazenda São José dos Pinheiros, local histórico onde foram realizados os encontros de jongo e onde foram escravizados mais de 3 mil negros. A previsão é construir no local um museu, uma escola, um centro de visitação, uma biblioteca e um restaurante étnico focados no jongo e que serão geridos pelas próprias lideranças negras locais.

Com a volta do governo Lula e a chegada da nova ministra da Cultura, Margareth Menezes, muitos recursos via projetos e editais, sobretudo da Lei Aldir Blanc (nº 14.017/2020), têm dado esperanças à comunidade jongueira. Durante a mesa de abertura, que contou com a presença do prefeito de Pinheiral e representantes do governo estadual e municipal, o superintendente do Iphan no Rio, Paulo Vidal, lembrou que, no próximo encontro, será comemorado os 20 anos de reconhecimento do jongo como patrimônio imaterial. Ele explicou que já foram viabilizados recursos para o PAC Seleções, e o Parque temático de Pinheiral foi uma das 7 propostas selecionadas entre as 80 apresentadas no estado.

“Com o desenvolvimento dos projetos, eles estarão praticamente selecionados para a próxima etapa, que é de conseguir os recursos para implementá-los. Vemos com muita satisfação esse projeto. É muito importante que todos acompanhem esse processo no próximo ano, e quem sabe comemorar a sua efetivação. É um sonho que começa a ganhar outros níveis para conseguir um lugar para se perenizar”, explicou Vidal.

O Jongo de Pinheiral passou a ser organizado institucionalmente a partir do final da década de 1980 e está à frente deste projeto com o objetivo de preservar a dança do jongo e ampliar a escola, o museu e a biblioteca local. O movimento se mantém articulado com outras entidades da região e em diálogo permanente com os governos em busca de apoio e projetos para a preservação do seu trabalho ancestral.

O representante regional do Ministério da Cultura no Rio, Eduardo Nascimento, destacou a retomada de políticas públicas na área da cultura com recursos e agentes locais do governo para auxiliar na capacitação, comunicação e articulação dos líderes comunitários. Ele alertou sobre a importância da comunidade jongueira estar atenta aos editais, sobretudo da Lei Aldir Blanc, que têm 20% para comunidades quilombolas e tradicionais e outros 20% para ações afirmativas.

“O agente cultural tem que se empoderar e se apropriar nos municípios. A política Cultura Viva também apoia projetos de bases comunitárias para mestres e mestras da cultura popular levando recursos para a ponta a quem mais precisa. Temos que aquilombar e fazermos da cultura um grande instrumento de transformação social que esse país merece”, disse Nascimento.

Mestres e mestras do Jongo do Sul Fluminense

Cerca de onze mestres e mestras participaram de uma mesa para trazer depoimentos sobre suas experiências com o jongo nas suas comunidades. Eles representaram mais de 15 comunidades tradicionais em cinco cidades do Rio e de São Paulo. Na ocasião, falaram da importância da transmissão dos saberes dentro das famílias e das dificuldades que foram enfrentadas para chegar até hoje nos eventos, onde eles têm poder de voz, e para acessar projetos e recursos para os seus territórios.

Destacando a importância dessa rede de jongo e do fortalecimento dos territórios, Mestre Gil do Jongo de Piquete (SP) destacou a importância de se edificar as bandeiras nos municípios e aprender a ocupar os lugares de forma empoderada. “É importante que os jongueiros estejam junto das canetas de decisões e ações dos governos, deixando de ser coadjuvantes e assumindo os seus protagonismos”, disse.

“Não queremos o lugar de ninguém, só o nosso. A Lei nº 3 do código de postura da época dizia que ficava proibida a dança do jongo e do caxambu, e os negros eram considerados pessoas de má vida, porque em 1890 o negro não tinha casa, nem tinha nada. Piquete se emancipou depois da abolição e da república, mesmo com os negros sem nada saindo da senzala. Esse momento de lamentação já passou e agora precisamos ser protagonistas, o nosso tempo é agora e sem demora”, alertou.

“A gente não está só aqui no terreiro de vocês, estamos andando o Brasil todo para levar o jongo. Temos uma história linda, de luta e guerra, sobrevivência, e se engana muito quem chega numa roda nossa e acha que estamos só dançando. Jongo não é uma dancinha de preto, é uma vivência e foi a primeira luta social do povo preto”, afirmou Mestre Jefinho do Jongo, quilombola de Guaratinguetá (SP).

Do mais antigo e tradicional jongo de São Paulo, Mestra Lúcia de Guaratinguetá destacou a importância da família na resistência cultural da dança. “Venho de uma família de jongueiros de mais de cem anos, e nasci ali no meio participando, dançando e cantando, aprendendo e ensinando. Todas as crianças da minha família dançam e tocam tambor. Estamos sempre lutando, fazendo nossa festa no mês de junho em homenagem a Santo Antônio. Minha cidade é bem preconceituosa, na primeira apresentação na praça todo mundo virou as costas e foi embora. Mas nada disso adiantou e vamos continuar”, falou.

Renovação Geracional

Muitos mestres e anciãos estavam presentes no encontro, mas a participação expressiva de jovens e crianças também marcou as apresentações. Os saberes e práticas continuam sendo transmitidos pela oralidade, de forma a manter as tradições e renovar os fundamentos do jongo na região. Essa é uma preocupação crescente, pois nos últimos anos muitos mais velhos faleceram e não estão mais presentes nos encontros e celebrações.

Foto: Marcelo Costa Braga

Na maioria das vezes essa perpetuação dos valores do jongo ocorre por meio das famílias, que há séculos vêm praticando os fundamentos dessa cultura. É o caso do bebê Dérik, de 3 anos, que estava no encontro e já é a sétima geração da família dos jongueiros de Pinheiral. A realização de oficinas e demais atividades para atrair os jovens também ajuda nessa manutenção geracional. A renovação de lideranças também é perceptível neste contexto, com homens e mulheres com cerca de 25 anos engajados e com poder de voz na dinâmica das atividades.

Iniciado aos 14 anos com grandes mestres na década de 1980, José Geraldo da Costa, Geraldinho Jongo, coordena um coletivo chamado Jongo di Volta, em Volta Redonda, com mais de trinta participantes. Para ele, é fundamental repassar os fundamentos às novas gerações. “Esse repasse de conhecimento e pedagogia são muito importantes, mas tem que ser feito com muita responsabilidade. Tem que saber o que está reportando e de que forma, e na medida que vai tendo crescimento você vai aumentando e incentivando. No meu grupo vai da minha neta de dois anos à matriarca Dona Elza, que tem 95. É uma grande responsabilidade dessa arte do conhecimento, de aprender e aprender a ensinar”, destacou.

Perspectivas do Jongo de Pinheiral

A expectativa é que no ano que vem, no próximo Encontro de Jongos, seja lançada a pedra fundamental da obra do “Parque temático da história do negro no Vale do Café”, que será a ponta de lança do Circuito Afro do Vale do Café.

“O Parque e o Circuito vão reconhecer e divulgar a contribuição fundamental dos negros do Vale do Café e seus ancestrais dos tempos dos cafezais na construção do país e da cultura nacional”, conta Marcos André, coordenador do projeto.

Foto: Marcelo Costa Braga

“Vai inserir as comunidades centenárias de quilombo da região nas rotas de turismo, aquecendo toda a economia local, gerando trabalho e sustentabilidade para a população negra e para milhares de moradores de diversas cadeias produtivas da região através do turismo étnico e da cultura afro. Uma reparação histórica com mais de 130 anos de atraso”, concluiu.