Por Alexandre Cunha

Breve exercício de memória: quantas comédias românticas você já assistiu com protagonistas pretos? Destas, quantas produções eram brasileiras? Identificar pioneirismo em O Dia que te Conheci (2023) talvez soe exagerado para alguns, mas o prodigioso filme de André Novais Oliveira é, de fato, um marco para a filmografia nacional contemporânea. Em seus concisos 71 minutos, a nova produção da Filmes de Plástico – que chega aos cinemas do país nesta quinta-feira (26) – alcança magistralmente aquela região de identificação imediata do público com os personagens em tela. A experiência coletiva da sala de cinema, sem dúvidas, engrandece a obra.

Apesar da duração sucinta, o filme de André sutilmente nos orienta, desde o longo plano inicial estático (ao som de Solto, canção de Djonga), sobre a importância de viver o tempo das coisas, sem pressa. O roteiro acompanha um dia na vida de Zeca (Renato Novaes), bibliotecário que está com dificuldade de acordar cedo para chegar, a tempo, na escola onde trabalha. Em meio aos perrengues da vida do assalariado que precisa tomar um ônibus para, uma hora e meia depois, chegar ao trampo, Zeca conhece Luísa (Grace Passô). Após acontencimento fundamental à narrativa (irei omitir para evitar spoilers a quem ainda não assistiu ao filme), os dois decidem tomar uma cerveja no centro de Belo Horizonte e ali nasce uma conexão fulminante. 

São muitos os detalhes que compõem a singularidade O Dia que te Conheci. Não se deixe enganar pela simplicidade de filme independente; há riqueza nas minudências narrativas; por exemplo, na composição das cenas no apartamento que Zeca divide com o amigo. A direção de arte erige um local repleto de referências lindas, como o adesivo do quadro Okê Oxóssi, de Abdias Nascimento, na porta da geladeira. Até mesmo o fato – aparentemente banal – de Zeca vestir uma camiseta do time do Fortaleza é uma sutil representação do nordeste e ajuda a constituir a imagem do protagonista. 

Numa alusão clara às convenções do cinema hollywoodiano, André Novais contrapõe à realidade de pouco glamour dos personagens uma trilha sonora baseada em músicas clássicas, que facilmente nos remete a tradicionais filmes de aventura e romance. Essa estratégia narrativa do cineasta, além de ressaltar certa cinefilia por parte do realizador, é uma tática perfeita para estabelecer a identidade do filme enquanto obra que discute quais histórias são legitimadas – e quais são invisibilizadas – no cinema ocidental clássico. Em uma definição rasa e provavelmente rude, mas que auxilia a compreender a valentia da obra, poderíamos dizer que O Dia que te Conheci é uma comédia romântica preta e periférica, o que a torna exemplar raríssimo na produção cinematográfica brasileira. 

É justa a comparação com a Trilogia Before, de Richard Linklater, já que há semelhanças narrativas entre a obra brasileira e os filmes protagonizados por Julie Delpy e Ethan Hawke. Os planos nos quais a câmera acompanha o casal, sem cortes, caminhando pelas ruas da cidade; cenas em transportes, cujos diálogos são a força motriz; a própria ideia da cidade enquanto personagem narrativo; todos estes elementos estão presentes no filme de André Novais. Adoro, particularmente, a sequência do ônibus em O Dia que te Conheci; é comovente como o cineasta esquadrinha aquele retrato da população pobre brasileira, que depende do transporte público precário para chegar aos seus compromissos. Com o toque de humor característico do filme, a cena provoca, simultaneamente, enternecimento e desconsolo. 

Ao trazer a discussão sobre saúde mental e uso de antidepressivos para o cerne da obra, o diretor acerta, mais uma vez, no estabelecimento de um vínculo com o real (e com a própria realidade de tantos de nós, espectadores). As conversas sobre os medicamentos e as crises emocionais são construídas com leveza e naturalidade; e aqui enalteço as excepcionais atuações de Grace Passô e Renato Novaes. Tecendo uma das personagens mais diferentes da sua carreira, Grace é irrepreensível ao compor Luísa, mulher determinada, intensa, cuja força é contrabalanceada por uma vulnerabilidade sentimental tocante. Já Renato Novaes está ótimo como Zeca: timing cômico perfeito, o ator também demonstra capacidade dramática em cenas que assim o exigem. 

Divertido e delicadamente profundo, O Dia que te Conheci é mais uma prova da aptidão artística de André Novais Oliveira, cineasta fundamental no cenário brasileiro. Em um plano final onde a razão de aspecto muda para um formato “mais cinema”, o diretor parece nos relembrar que sua história, longe da ostentação das grandes produções, é digna de estar passando nas salas de cinema do país. Mais do que digna, é cinema da melhor qualidade. Um filme fascinante e imperdível.