O Círio de Nossa Senhora de Nazaré, maior procissão religiosa do Brasil, ocorre neste domingo com expectativa de reunir pelo menos dois milhões de pessoas nas ruas da capital do Pará, Belém — cidade que este ano também sediará a COP30. A resistência da cultura alimentar amazônica, e mais especialmente da culinária paraense, se evidencia durante toda a quinzena de programações religiosas e culturais, oficiais e extraoficiais, do Círio.
Maniçoba, pato no tucupi, arroz paraense, além de sucos e doces elaborados com frutas amazônicas como cupuaçu, bacuri e uxi, ganham destaque no cardápio do almoço do Círio — celebração familiar comparável à ceia de Natal. A tradição não se restringe aos católicos, assim como boa parte das manifestações realizadas durante a chamada “quadra nazarena”, período das festividades em homenagem à santa padroeira dos paraenses.
A pesquisadora de saberes tradicionais e cultura alimentar, produtora e ativista cultural Auda Piani, observa que o almoço do Círio mobiliza famílias de todas as classes sociais, configurando-se como uma tradição que se reinventa ao longo dos anos.
“Podemos dizer que o almoço do Círio envolve a resistência dessa cultura alimentar desde a coleta da mandioca nas roças e a pesca dos peixes e camarões, passando pelo trabalho nos mercados até os rituais de preparação dos pratos típicos, que podem levar dias — como é o caso da maniçoba —, com destaque para o protagonismo das mulheres, geralmente as responsáveis pela alimentação”, enfatiza a pesquisadora.
A oscilação na disponibilidade dos alimentos que compõem as receitas do cardápio do Círio é um dos fatores que motivam adaptações. A diminuição da oferta — e o consequente aumento de preços — de itens como o pato, utilizado no pato no tucupi, e do camarão, presente em diversas receitas da culinária amazônica, explicam a substituição pelo frango, além do uso crescente de alimentos processados, como presuntos e embutidos.
No Baixo Tocantins, uma das principais regiões que abastecem Belém com camarão, peixes e açaí, lideranças de territórios tradicionais denunciam a poluição dos rios e igarapés causada por indústrias e portos, além dos efeitos das mudanças climáticas que alteram os ciclos das águas.
“Tenho notado muitas falhas de peixes em diversidade e quantidade. Está cada vez mais difícil encontrar pescada, anujá, caratinga e tainha, principalmente de dois anos para cá. O mesmo ocorre com o camarão”, relata Lidiane Vilarino, pescadora do Território Agroextrativista Pirocaba, em Abaetetuba.
A maniçoba, um dos pratos mais representativos do almoço do Círio, é preparada com a maniva, folha moída da mandioca brava que precisa ser cozida de forma lenta e prolongada — por cerca de sete dias — para eliminar o ácido cianídrico, substância tóxica. Durante o cozimento, são acrescentados diversos tipos de carne, como carne seca, charque, linguiça, bucho de boi e chouriço. Hoje, é possível encontrar maniva pré-cozida em feiras e mercados, o que reduz o tempo de preparo.
“A técnica de preparação da maniçoba envolve conhecimentos ancestrais dos povos indígenas sobre a utilização da folha da mandioca brava, baseados em experimentação e observação. Mas também considero que essa mistura de várias carnes tem relação com o cozido português. Essas tradições foram sendo reinventadas ao longo do tempo, porque hoje em dia pouca gente tem patos ou porcos nos quintais. Aqui em casa ainda tento fazer a maniçoba como a que minha avó preparava, com porco moqueado. Não uso embutidos”, conta Auda Piani, que também é realizadora de projetos e documentários sobre cultura alimentar, entre eles Cozinhando no calor antes da chuva.
A proximidade da COP30 e o crescimento do turismo em Belém motivaram, em 2025, a abertura de vários restaurantes — alguns internacionais e a maioria especializados em comida regional. No entanto, a comida de rua servida no Ver-o-Peso e nas tradicionais barracas de tacacá alimenta boa parte dos visitantes durante a quadra nazarena. O tacacá, servido na cuia, é um caldo quente feito com tucupi (também extraído da mandioca), goma de tapioca para dar consistência, jambu e camarão seco.
A comida de rua também conecta diferentes influências culturais e ancestralidades presentes na culinária paraense. A iyalorixá Mãe Juci D’Oyá, ativista do Centro de Estudos e Defesa do Negro no Pará (Cedenpa), explica que preparar alimentos tradicionais é também um ato espiritual.
“Nesse momento do Círio de Nossa Senhora de Nazaré, cozinhar com Axé é unir o sagrado do alimento ao sagrado da fé. Cada folha, cada tempero usado carrega uma força ancestral que vem dos terreiros, das águas e das mãos das mulheres que vieram antes de mim. As tradições afrodescendentes se entrelaçam à devoção a Nossa Senhora de Nazaré porque o povo negro sempre encontrou caminhos para manter sua fé viva, mesmo quando era negado o direito de cultuar seus orixás. Nossa Senhora de Nazaré, não para todos, mas para muitos de nós, é também Oxum, senhora das águas doces, do amor e da fertilidade”, explica Mãe Juci.
Anna-Beatriz Aflalo
Além da diversidade cultural, o cardápio do Círio de Nazaré chama atenção pela onipresença da mandioca, que, assim como o açaí, é um dos pilares da segurança alimentar da população amazônica. A mandioca está na maniçoba, no tacacá, no pato, no frango e no arroz paraense preparados com tucupi, nos molhos de pimenta e nas farinhas que acompanham as várias iguarias.
O chef Thiago Castanho, pesquisador e divulgador da cultura alimentar amazônica — conhecido pela série Sabores da Floresta, exibida no Canal Futura —, inaugurou em Belém, junto com dois sócios, o bar-restaurante Puba, nome inspirado na massa de mandioca fermentada, amplamente utilizada nas culinárias nortista e nordestina. A elaboração dos pratos envolve influências internacionais, mas a mandioca e seus derivados estão presentes em praticamente todo o cardápio.
“Desde quando comecei a trabalhar na cozinha, praticamente todos os pratos têm mandioca, e aprendi com as pesquisas a valorizar o trabalho pesado envolvido em todo esse processo. Muitas vezes pagamos mais caro por ingredientes de fora, sem levar em conta todo o conhecimento e o esforço mobilizados pela senhora que produz a farinha lá no interior de Bragança, município que faz uma das melhores farinhas do estado”, explica Thiago. “Nesse mesmo contexto, temos também os conhecimentos sobre as diferentes espécies de mandioca utilizadas na produção da farinha d’água, da farinha de carimã, da farinha branca e de outras variedades. Temos uma gama de modos de produzir esse ingrediente, envolvendo diversas tecnologias dos nossos ancestrais, principalmente indígenas”, acrescenta.
Para Auda Piani, a preservação dos modos de vida amazônicos e das culturas alimentares evidenciadas no Círio de Nazaré passa pela defesa dos territórios tradicionais.
“Quem convive com os territórios sabe que eles não estão incluídos nas programações oficiais da COP30, por exemplo. Como esses territórios podem fornecer alimentação com tanta burocracia e exigências? Além disso, precisamos lidar com toda a ofensiva da indústria alimentícia, que substitui os alimentos saudáveis e atinge principalmente as famílias de baixa renda. Por isso, acredito que é necessário valorizar a cultura alimentar amazônica a partir dos territórios. Não podemos nos restringir a um marketing sobre essa arte culinária totalmente desconectado da realidade”, conclui Auda Piani.
O Círio de Nazaré foi reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil pelo Iphan em 2004 e como Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco em 2013. A programação oficial do Círio segue até 27 de outubro.
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