Por Tácio Santos

Na primeira parte desta série de matérias especiais sobre o que ciência do esporte já produziu em relação ao ciclo menstrual de atletas de futebol, tratamos do que acontece com o desempenho físico das jogadoras. Mas como os estudos que avaliam o desempenho físico costumam ser baseados em testes e exames que analisam apenas parâmetros biológicos, não conseguimos saber como se sente quem está sob avaliação naquele momento.

Por isso, é possível que alguns estudos não tenham encontrado diferenças no desempenho físico em fases distintas do ciclo menstrual, mas que para manter esse mesmo desempenho, a atleta sinta mais dificuldade em uma das ocasiões. Além, obviamente, de haver questões referentes ao ciclo menstrual que não afetam o desempenho físico notadamente, mas influenciam outras dimensões da vida.

Assim, esta segunda parte busca demonstrar a o que as próprias jogadoras relatam sobre questões menstruais.

Entrevistas

Um interessante estudo publicado recentemente abordou este tema por meio de entrevistas. Pesquisadores ouviram atletas de futebol e treinadores homens de um mesmo time para analisar possíveis barreiras na comunicação. Tanto as atletas como os treinadores afirmaram haver uma relação próxima entre as partes. Contudo, falar sobre o ciclo menstrual foi percebido como um assunto mais restrito que outros também relacionados ao desempenho esportivo e à saúde.

Segundo a análise feita pelos autores da pesquisa, há uma barreira interpessoal baseada em falsas suposições, tanto das atletas, como dos treinadores. As jogadoras assumem que os treinadores não têm interesse em saber sobre seu ciclo menstrual, ou que serão vistas como incapazes se assumirem seus sintomas menstruais, e por isso, escondem o que acontece com elas a esse respeito. Por outro lado, os treinadores interpretam o silêncio delas como ausência de vontade ou necessidade de compartilhar tal tipo de informação. De tal modo, nenhum dos grupos tem a iniciativa de abordar a questão.

Trechos das falas destas atletas demonstram como isso se dá para elas:

“Você não sente que eles (homens) se importam. Pensamos que eles não estão interessados e deixamos para lá.”

“Eu tive mais treinadores homens, e eles não falam nada sobre isso. Assim, fica um pouco desconfortável dizer que tenho que ir ao banheiro, ou que não preciso realmente ir ao banheiro, que só preciso trocar o tampão. Você não gostaria de dizer isso ao seu treinador se ele é um homem.”

“Quando eu jogava em outro time, também tínhamos um treinador homem. Certa vez, eu vomitei, no próximo treino ele me perguntou o que havia acontecido, e eu apenas falei que devia ter comido alguma coisa que me fez mal, pois não queria dizer que o motivo era a fase do meu ciclo menstrual.”

“Se você está com muita dor ou muito desconforto, acho difícil dizer a um treinador, penso que ele acha estranho. Você sente que ele não vai te respeitar.”

Foto: Getty Images

Trechos das falas dos treinadores também mostram sua forma de ver o que acontece:

“Tenho uma irmã gêmea, tenho uma esposa… Eu sei que não podemos forçá-las. Não podemos fazê-las vir até nós e avisar quando estiverem no período menstrual. Penso que elas têm que se sentir confortáveis para poder fazer isso sem que digamos para fazerem.”

“Acho que seria mais fácil para elas falar com uma treinadora mulher. Nós também temos uma preparadora física mulher, e isso é importante… Tentamos gerir a questão tendo funcionárias mulheres e priorizar o ciclo menstrual.”

“Se elas querem nos relatar sobre o ciclo menstrual, podem fazer por app. Vai para a nossa preparadora física, que é mulher. Provavelmente, nós conseguimos registrar o ciclo menstrual de cada jogadora. Dá bastante trabalho, mas se elas quiserem, podem fazê-lo.”

O estudo também tratou do nível de conhecimento dos dois grupos sobre como o ciclo menstrual afeta o desempenho esportivo e a saúde. Sobre este ponto, foi identificada uma barreira intrapessoal em ambas as partes, no sentido de não haver conhecimento suficiente sobre o que lhes tange quanto ao ciclo menstrual. Enquanto algumas atletas não foram capazes de reconhecer que apresentavam alterações sintomáticas em seu ciclo, os treinadores não pareceram hábeis a considerar aspectos menstruais na programação do treinamento.

Atletas:

“Eu quase não tenho problemas, mas também, eu raramente menstruo, então me incomodo muito pouco em comparação às outras. Como me incomodo tão pouco, não tive necessidade de falar sobre isso.”

“Eu tenho muita sorte de não ter sentido dor. Sinto ocasionalmente dor no estômago ou na lombar, mas não tem sido um problema. Tenho medo de sangrar, principalmente durante o treino ou alguma atividade assim. Não penso muito nisso. Só quando minhas costas doem, que fico um pouco mais rígida depois dos treinos. […] Felizmente temos calções pretos, temos calções alternativos brancos, mas depois penso mais sobre isso.”

Treinadores:

“Para mim, como homem, a barreira deve ser quebrada para que possamos obter o máximo de conhecimento, compreensão e apreciação de como trabalhar considerando o ciclo menstrual da melhor maneira possível. Meu conhecimento não é suficiente, pois precisamos ter mais conversas”

“Acho que uma das dificuldades do futebol é que somos um time com 27 jogadoras, todas individuais. De alguma forma, tentamos registrar o ciclo menstrual, mas em um time é difícil levar o ciclo menstrual em conta no treinamento.”

Cabe mencionar que no caso do time estudado, o clube havia organizado previamente um dia de seminários para treinadores e atletas sobre treinamento, nutrição e prevenção de lesões, tudo relacionado ao ciclo menstrual.

Foto: Divulgação / FIFA

Questionários

Outros estudos obtiveram informações por parte das atletas de futebol através de questionários anônimos. Nesse formato, e quando a definição do que é uma alteração do ciclo menstrual é informada ao fazer a pergunta – diferente de como aconteceu na pesquisa das entrevistas citadas anteriormente – cerca de 20% das atletas relatam que estão ou já estiveram em amenorreia (ausência de menstruação por três meses ou mais).

Por outro lado, apenas algo como um terço delas tratou esta alteração. Entre mulheres que foram atletas de futebol, mas que não competem mais, também cerca de 20% relata já ter deixado de menstruar por três meses ou mais, e 40% diz ter menstruado menos ou não ter menstruado quando houve aumento do treinamento.

Ainda com base em estudos feitos por questionário, durante a menstruação, mais de 50% das atletas de futebol têm cólicas, falta de apetite, e perda da qualidade do sono; e mais de 40% têm enxaqueca, alterações de humor e irritabilidade. As alterações de humor, segundo elas, começam na semana pré-menstruação, quando também relatam dor nas mamas. O prejuízo ao desempenho é percebido como pior durante a menstruação que no período pré-menstrual, sendo que aproximadamente 90% sente tal prejuízo na forma de perda da potência e maior fadiga.

Do ponto de vista psicológico, mais de dois terços das atletas de futebol relatam perda de confiança, de foco, e pior reação às críticas. Ainda na dimensão psicológica, há o efeito da tensão pré-menstrual, que quando acontece, se dá entre a ovulação e a menstruação. Embora a ocorrência da tensão pré-menstrual não seja maior nas jogadoras que na população em geral (6 em cada 10 mulheres), as futebolistas com esse quadro se sentem mais tensas antes das partidas durante a fase folicular, e mais deprimidas pré-jogo na fase lútea, em comparação às companheiras de time sem tensão pré-menstrual.

Propostas

Algumas das informações apresentadas neste texto sugerem que seja mais adequado times de futebol feminino serem treinados por mulheres. Mas, pelo menos atualmente, profissionais do sexo masculino são maioria nas comissões técnicas. Então, no atual estágio das coisas, estes homens devem fazer algo frente aos relatos que a ciência do esporte registra sobre o ciclo menstrual das jogadoras? Se sim, o que eles devem fazer?

Via de regra, quem começa a trabalhar como treinador de futebol no Brasil, se formou em Educação Física, ou em alguns casos, ao menos cursou uma formação específica ministrada pela CBF. Posto isso, cabe uma analogia à orientação feita a quando nos tornamos motorista. O entendimento é que a responsabilidade de se portar adequadamente nas vias recai sobre quem conduz o veículo, pois teve uma formação para tal, ao passo que pedestres, não receberam, necessariamente, instrução sobre as leis de trânsito. Guardadas as devidas proporções, os treinadores de futebol estudaram sobre treinamento esportivo e saúde, enquanto as jogadoras, não necessariamente.

Portanto, faz sentido atribuir aos treinadores a responsabilidade de encontrar formas adequadas de resolução ou manejo das questões menstruais. Claramente, o que fazer pode variar imensamente de caso a caso, e inclui não apenas o treinamento esportivo propriamente dito, mas diversas outras áreas que permeiam as atletas de futebol. Por isso, em diversos aspectos, não será o treinador que irá atuar diretamente, mas cabe a ele agir para que quem atuará chegue às jogadoras.

Leia também:

https://midianinja.org/news/o-ciclo-menstrual-no-futebol-feminino-parte-1-desempenho-fisico

Texto produzido em cobertura colaborativa da NINJA Esporte Clube