‘O Beijo da Mulher Aranha’, do escapismo à anistia política
Clássico de 1985 traz temas como sexualidade e repressão política em seu roteiro
Por Ben Hur Nogueira
Babenco é um daqueles cineastas cujo o repertório é invejável. Ele vai desde personagens complexos em situações ensurdecedoras, como foi o caso de “Carandiru” e “Lúcio Flávio”, até personagens lidando com demônios pessoais em uma sociedade que os reprimem, como é o caso de “Pixote, a lei do mais fraco”.
Babenco é sumariamente lembrado não apenas pelo uso massivo da qualificada montagem nos seus filmes e muito menos por grandes atores que provocam um realismo cinematográfico imensurável, mas pelo singelo escapismo de suas obras, onde personagens constantemente se veem lidando com dilemas morais e pessoais através de um escapismo introspectivo, como se nós, da audiência, entrássemos na cabeça dos personagens e tivéssemos uma sensação de liberdade em meio ao caos, em meio a repressão, em meio a dor, em meio ao tudo. Babenco sabia como trazer o escapismo em longos planos, que forneciam para a audiência que acompanhava o filme desde o início uma breve miragem em meio à dor humana. O maior exemplo disso é seu trabalho “O beijo da mulher aranha”, lançado em 1985 com um grande elenco, formado por nomes como Milton Gonçalves, William Hurt, Sonia Braga e Raul Julia, que juntos trouxeram um marco do cinema pós ditadura no Brasil.
A sinopse se concerne uma cela de prisão. Não é nítido onde a estória se passa, apesar de aparecer algumas bandeiras brasileiras ao redor, o filme tenta escapar de trazer o Brasil como o palco principal da estória, e quiçá seja esta razão do filme não ser falado em português, mas em inglês, como se o filme tentasse universalizar o ambiente repressor da ditadura na América do Sul.
Três personagens compõem uma cela da prisão, o primeiro é Valentim, um arquétipo do guerrilheiro latino, um homem barbudo e com uma masculinidade vulnerável cuja a ideologia vem sempre em primeiro lugar antes mesmo da razão. O segundo é Molina, um personagem sensível, homossexual declarado, nitidamente apaixonado por cinema, e cuja as motivações são sempre emocionais, algo que é inerentemente similar ao comportamento de Valentim. Por último, a personagem Marta, que se passa inteiramente na cabeça de Valentim, um amor passado que ele trocou pela guerrilha contra a ditadura, consequentemente, a perca de Marta provocou nele uma espécie de fantasia pessoal, onde tudo que concerne à vida fora da prisão o traz reminiscências dela.
Valentim e Molina dividem uma cela de prisão por razões diferentes. Valentim é preso por sua guerrilha contra ditadura militar, enquanto Molina é preso por corrupção de menor. Devido sua ideologia política, Valentim é constantemente torturado por agentes do governo numa tentativa de delatar seus companheiros, e para o aliviar da dor das torturas sofridas por seu amigo, Molina reconta, cena por cena, seu filme favorito numa tentativa de fazê-lo esquecer da repressão daquele tempo.
No começo é nítido que Valentim é homofóbico e constantemente tenta minimizar qualquer tentativa de ajuda de Molina, contudo, conforme o filme avança, ambos passam a ser mais próximos, sendo claro para a audiência que Molina passa a ter sentimentos românticos construídos gradualmente por Valentim, algo que o diretor traz com maestria, já que Valentim, através dos filmes narrados por Molina, relembra sensivelmente de sua amada Marta que havia sido trocada pela guerrilha progressista, fazendo este constantemente a imaginar como se ela fosse uma das personagens que Molina se refere, como se este fosse o escapismo principal do filme: um desejo de liberdade causado pelo mundo que Valentim abandonou e que apesar das consequências, ele raramente demonstra de maneira física o seu real arrependimento de abandonar a mulher que sempre amou para lutar contra a ditadura, apenas de maneira imaginária, onde somente apenas ele e a audiência sentem a saudade que ele sente de sua rotina fora da prisão.
Ademais, a personagem de Sônia Braga aparece como um desejo humano do personagem Valentim, algo que não é mais tocável, mas algo que é sentido sensivelmente pelas memórias deste, que usa a imagem dela como uma musa tanto cinematográfica quanto pessoal. Uma cena em que fica claro o desejo e até mesmo uma certa obsessão de Valentim por Marta é uma cena que Babenco utiliza com maestria o trabalho de iluminação e da direção de fotografia, onde a câmera lentamente avança sobre o rosto de Valentim enquanto Molina o conta de um filme sobre uma mulher habitante de uma ilha deserta que aparenta ter as características físicas de uma mulher-aranha (literalmente) e que Marta, seu amor fora da prisão, passa a incorporar tal personagem, que eventualmente vem a beija-lo em tal fantasia, em um advento reminiscente do beijo que ocorre no filme norte-americano “A um passo da eternidade”, onde ambos personagens principais se beijam deitados em uma praia deserta.
Conforme o filme chega em seu clímax, Babenco traz uma reviravolta genial em seu roteiro, a que Molina na verdade trabalha para os agentes que constantemente torturam Valentim, e através de um acordo não-legal, fornecem para Molina uma redução na pena conforme ele traga mais detalhes sobre Valentim, algo que ele reluta profundamente, já que ele já se encontra apaixonado pelo seu companheiro de cela. Do momento que sabemos disso, o filme passa a trabalhar mais sobre a persona Molina, que deste momento em diante torna-se um ser errôneo, um ser humano que apesar de amar Valentim, topou coagi-lo em suas costas para receber um privilégio de obter a liberdade que talvez seu companheiro possa não ver mais. Devido a isso, os militares passam a assediar Molina para mais informações sobre o passado de Molina, contudo, Molina passa a mentir para os militares pedindo até comidas especiais que na verdade são dadas à Valentim por Molina, como um ato de afeto, um ato de alguém que realmente ama.
Após receber uma liberdade por parte dos militares que notaram que Molina já estava ligado emocionalmente à Valentim, Molina pede uma noite de amor ao seu companheiro de cela, que apesar de resistir no começo, provê para seu companheiro de cela o afeto que este sempre compartilhou com ele, e no dia seguinte, prestes à saída de Molina, Valentim o beija, como uma retribuição por tudo que Molina fez por ele. Mas antes de sair, Valentim o pede um favor que aparenta ser oportunista, entregar uma carta à um de seus camaradas, algo que é feito de maneira impulsiva, já que um passo em falso culminaria à morte imediatista de Molina, contudo Molina aceita, e sai do presídio.
A saída de Molina do presídio é uma das cenas mais lindas do filme, onde através de um movimento de câmera da cidade de São Paulo como pano de fundo, vemos Molina retornando à naturalidade de outrora, ao mundo que ele pertence, à comunidade que o abraça do jeito que ele é, como se ele vivesse em um estado conformista. Contudo, o filme deixa claro que apesar de ter uma natureza conformista, a paixão e respeito de Molina à Valentim faz ele tomar uma decisão que pode acarretar à sua vida. Daí, o filme traz dois paradoxos, os militares que vimos anteriormente no presídio perseguindo Molina e Molina tentando achar o paradeiro dos camaradas de Valentim, o que sadicamente resulta na eventual e trágica morte de Molina, que é despejado pelos militares em um aterro sanitário, como se sua vida fosse pífia.
A cena final traz, contudo, uma herança de Molina deixada a Valentim, que após receber morfina de um médico que o tratava, tem um breve advento sobre Marta, que o leva para fora do presídio e para a ilha que vimos anteriormente na cena da mulher aranha, não sabendo se Valentim ainda se encontra vivo ou não.
“O beijo da mulher aranha” traz temas como sexualidade e repressão política em seu roteiro, o que mais se destaca é como os personagens lidam com seus problemas através de um escapismo sensível, como se tudo que vivessem fosse apenas um sonho trágico cujo seu acordar fosse algo esperançoso, e se tratando de um país que lidava com a ditadura, me parece que Babenco lida com toda tragédia e tortura como se fosse um pesadelo que logo seria ocupado por um desejo afável de democracia e voz popular. “O beijo da mulher aranha” é certamente um marco do cinema LGBTQI+ brasileiro e um advento sensível em meio ao caos, feito pelo seu realizador.
O filme está disponível no Globoplay. Assista ao trailer: