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‘O Aprendiz’: Desmontando o mito dourado de plástico
O “menino dourado” não é herói nem vilão, mas um produto fabricado, despido de sua grandiosidade, reduzido ao que sempre foi: um reflexo distorcido de uma ficção criada por mãos humanas
Por Hyader Epaminondas
Embora tenha passado despercebido pela temporada de premiações, garantindo indicações sem favoritismo no Globo de Ouro, Bafta e Cannes, “O Aprendiz” surge como uma surpresa nas indicações ao Oscar deste ano, com Sebastian Stan indicado de forma inesperada a Melhor Ator e Jeremy Strong concorrendo na categoria de Melhor Ator Coadjuvante, em um drama mais atual e necessário do que nunca.
Com um tom alaranjado, quase febril, o filme nos lança à figura do jovem Donald Trump, inseguro e perdido entre sombras e brilhos artificiais, como se fosse uma fita de VHS desgastada pelo tempo. Essa ambientação granulada, marcada pela decadência estética e pela busca implacável por poder, ganha ainda mais profundidade com as atuações intensas dos indicados, que brilham numa relação faustiana amplificando a tensão da narrativa para conseguir humanizar e desumanizar os protagonistas de forma balanceada.
A câmera trêmula dança em sintonia com um humor ácido, como se sua própria instabilidade refletisse o sarcasmo intrínseco da narrativa e os enquadramentos cuidadosamente desenhados evocam uma atmosfera voyeurística, como se fôssemos cúmplices silenciosos de um fragmento da verdade que deve ser abafada, um fascinante mergulho no esgoto de um passado maquiavélico dos anos 70.
Este é o Donald antes do Trump que conhecemos, moldado sob o olhar voraz de Roy Cohn, um mentor que lapida o magnata com uma firmeza paterna visceral nesta biografia não aprovada pelo atual presidente dos Estados Unidos.
A estética e a crítica de Ali Abbasi
Mas Ali Abbasi não exalta Trump. Pelo contrário, seu deboche é evidente e cuidadosamente construído. O que, em um primeiro momento, pode parecer uma celebração da figura grandiosa do “menino dourado de Nova York”, logo se revela uma desconstrução meticulosa e implacável. Por meio de uma abordagem corajosa, o diretor desmascara o mito, expondo como uma construção artificial, esculpido por mãos humanas, frágeis e imperfeitas, em um reflexo simbólico da decadência moral e estrutural de uma sociedade em ruínas.
O objetivo da cenografia é projetar uma sensação de câmeras escondidas, quase como um “The Office” sofisticado. Abbasi utiliza essa estética para expor momentos de vulnerabilidade que, ao mesmo tempo, humanizam e ridicularizam o personagem.
A estética, reproduzida nos mínimos detalhes visivelmente decadente, se torna tão palatável que reflete o luxo envelhecido de uma riqueza cercada por ácaros, emoldurada por tons amadeirados e brilhos falsos. Essa atmosfera encontra sua síntese perfeita na figura simbólica de uma abotoadura gravada com a palavra “Triunfo”. Este pequeno acessório, projetado para transmitir poder e sofisticação, serve como uma metáfora contundente da elite que Trump aspirava personificar: uma fachada dourada, mas essencialmente oca.
Como um emblema do vazio por trás do mito, ela simboliza a fragilidade das construções sociais de status e poder. Enquanto Jeremy Strong, como o mentor a ser superado, dispensa comentários com sua atuação ímpar, transmitindo um olhar impiedoso nos tribunais e caçando deliberadamente entre as camadas da alta sociedade, ele lidera a cena e se torna o catalisador para o melhor momento do filme, centralizado ao redor dessa abotoadura.
A abotoadura falsa se torna, o ponto focal da crítica de Abbasi: um ornamento que, ao invés de reforçar o mito, denuncia sua essência fabricada, com isso, a ilusão que sustenta não apenas o protagonista, mas toda a estrutura plutocrática que ele representa.
A ascensão de Trump através dos olhos de Sebastian Stan
Sebastian Stan se dissolve por completo em sua interpretação, ostentando a gravidade do vazio que o consome, um reflexo perfeito de Donald Trump. Ele incorpora todo o complexo de inferioridade latente, habitando cada nuance da “realidade” através das transições temporais com uma precisão quase sobrenatural.
Permanecendo em completa harmonia com seu objeto de estudo, desde os micro gestos faciais até a postura com um gingado cuidadosamente modulado, com falas de impacto cada vez mais frequentes e vazias de profundidade. Stan captura a essência do jovem inseguro e a evolução inevitável para o adulto caricatural com uma confiança inabalável de forma delicada que envelhece como um vinho: intenso, encorpado, e impossível de ignorar.
Agindo como uma cápsula do tempo, a trilha sonora enriquece a trama com uma camada adicional de significado criando uma dualidade que captura tanto o hedonismo superficial quanto a gravidade subjacente da narrativa ressoando com o vazio existencial da temática de ascensão ao poder.
Maria Bakalova entrega uma interpretação delicada como Ivana Trump, a primeira esposa e o alicerce para as que viriam a seguir, utilizando de forma recorrente suas expressões faciais para transmitir as complexidades de sua personagem, transformando seus olhares em uma janela para o mundo interior de Ivana.
É interessantíssimo o recorte que o diretor Ali Abbasi consegue projetar com uma ironia sutil e estratégica, ela nos guia na falsa ideia de imparcialidade através de uma enciclopédia visual que desvela as múltiplas facetas de Trump sob um holofote glamuroso: o jovem moldado sob a tutela implacável de seu mentor e o adulto que, em um gesto quase ritualístico, “assassina” simbolicamente seu criador para se transformar em uma figura divina. Divina, aqui, com “d” minúsculo, ressaltando a fragilidade plástica e artificial dessa construção sociológica.
No filme, o Trump fictício surge como uma paródia evidente, mas não menos inquietante, do Trump real: ambos são espetáculos de si mesmos, moldados para consumir e serem consumidos, como ficou evidente em seu ato de celebrar o seu segundo mandato com uma apresentação do grupo YMCA. Ainda que o posicionamento cirúrgico do diretor transpareça em cada escolha narrativa, a produção se configura como um retrato meritocrático de ascensão, seduzindo os admiradores da celebridade retratada em meio aos espelhos distorcidos da era da pós-verdade.
Texto produzido em colaboração a partir da Comunidade Cine NINJA. Seu conteúdo não expressa, necessariamente, a opinião oficial da Cine NINJA ou Mídia NINJA.