Por Hyader Epaminondas

Lançado em 1995, a Gotham de Batman Eternamente é uma ópera visual em ebulição, um delírio barroco onde arquitetura, luz e cor colidem em um balé plástico de excesso. Colunas greco-romanas brotam entre arranha-céus impossíveis, gárgulas monumentais vigiam avenidas que fervem em neon, e cada canto parece atravessado por feixes de luz que poderiam ter saído de uma rave mitológica.

O diretor Joel Schumacher rejeita o expressionismo gótico de Tim Burton por escolha deliberada: sua Gotham é o inconsciente urbano em estado bruto, um colorido espetáculo sensorial que reflete, em cada exagero, o caos emocional e a identidade fraturada do herói. É nesse colapso estético deliberadamente incoerente que emerge o kitsch como estratégia visual: não como mau gosto, mas como uma forma de comunicar a intensidade da própria subjetividade. O cenário deixa de ser pano de fundo para se tornar um sujeito vibrante, onde a cidade pulsa como espelho do inconsciente urbano.

É nesse terreno fértil que floresce o camp, não como ironia vazia, mas como uma estética onde a artificialidade aqui não esconde, revela. Cada exagero é carregado de sentido: o brilho das armaduras, a borracha moldada ao corpo, os edifícios que desafiam a lógica gravitacional, tudo performa uma teatralidade sem culpa, quase ritualística.

Seguindo a definição de Susan Sontag, Schumacher abraça o gosto pelo estilizado, pelo desmedido, pelo melodramático, e transforma Gotham em uma drag queen arquitetônica, um palco onde identidade, desejo e trauma dançam sob holofotes coloridos. A cidade não simula uma metrópole funcional, mas encarna um estado de espírito, uma ode ao fim dos anos 90 em sua forma mais pura, vibrante e contraditória.

Os vilões da vez, Charada e Duas-Caras, são manifestações performáticas do excesso tanto em cena quanto nos bastidores. A tensão entre Jim Carrey e Tommy Lee Jones era explícita, marcada por um desconforto explícito do veterano diante do carisma avassalador do jovem astro em ascensão. Esse atrito, mais do que um conflito de egos, revela a fratura geracional e simbólica entre dois arquétipos de masculinidade: o ator veterano, sisudo, herdeiro de uma tradição dramática austera, frente ao corpo fluido, caótico e carnavalesco do novo ícone pop.

Dramáticos, estridentes e visualmente saturados, parecem emergir diretamente do pesadelo pop de Bruce Wayne. Iluminados por holofotes coloridos, eles não só refletem o caos do cenário, mas o amplificam, são forças catárticas em estado bruto, onde a ameaça se converte em espetáculo e o embate entre opostos encena, no fundo, uma batalha sobre qual masculinidade sobrevive no confronto com o herói.

Os Famosos Bat-mamilos e a estética grega

Os “bat-mamilos” não são apenas um detalhe polêmico do figurino, são parte de uma construção visual que remete diretamente às esculturas clássicas gregas, onde o corpo humano é elevado à condição de arte perfeita, símbolo de força e harmonia idealizada. O uniforme de Batman e Robin transforma os atores em verdadeiras estátuas vivas, com corpos esculpidos que parecem saídos de um templo antigo, mas revestidos por materiais modernos como borracha e látex.

A teatralidade do design com seus brilhos, texturas sintéticas e detalhes intencionalmente artificiais não tenta disfarçar sua artificialidade, mas sim abraçá-la como linguagem. O traje passa a ser um palco móvel, onde a identidade do herói é performada com uma mistura de humor, erotismo e excessos visuais. É um jogo de estilo que desafia qualquer pretensão de naturalismo, convertendo o corpo do super-herói em uma escultura viva que dança entre o sublime e o exagerado, entre o clássico e o kitsch mais divertido.

A trilha sonora de Batman Eternamente combina perfeitamente com a história como um grito sombrio vindo das entranhas de Gotham. Os metais explodem com violência quase operística, enquanto as cordas se contorcem em movimentos bruscos, como se representassem a mente fragmentada do próprio herói. Há algo de bizarro, quase carnavalesco, na forma como os timbres colidem: é um caos controlado, deliberadamente dissonante.

A energia eletrizante com um toque moderno e industrial pulsa como uma sirene de uma cidade em colapso, até que o tema principal rompe como um trovão de neon, embalando Gotham num balé frenético de luzes e sombras, onde cada nota parece coreografar os excessos visuais e emocionais do filme.

Subtexto Queer e a Autoria de Schumacher

Schumacher, assumidamente gay, imprime em sua Gotham uma camada poderosa de subversão que vai além do visual, trazendo um erotismo delicado e um camp pulsante que desconstrói o modelo clássico do herói viril e impenetrável. O Bruce Wayne de Val Kilmer não é apenas um homem dividido entre sua persona humana e a sombra do morcego, mas uma figura marcada por múltiplas masculinidades que coexistem em tensão, se sobrepondo e se desafiando.

Interpretada com uma sensualidade que dialoga diretamente com a estética exagerada e fetichista do filme, a Chase Meridian de Nicole Kidman funciona dentro do contexto queer quase como um teste de Rorschach narrativo — uma distração que flerta com a heteronormatividade, mas que, na prática, só evidencia o desejo pulsante entre masculinidades hiperperformáticas. Sua fascinação não é exatamente por Bruce ou por Batman, mas pela dualidade, pela fantasia e pela crise de identidade, refletindo a própria proposta de Schumacher, que embaralha e subverte os códigos tradicionais do gênero.

A dinâmica entre Bruce e Dick Grayson, vivido por Chris O’Donnell, vai além do convencional, desenrolando como uma coreografia quase litúrgica marcada por uma tensão emocional e sensual sutil que emerge nos gestos contidos, nos olhares furtivos e nas luzes que banham as cenas.

Essa sensualidade é acentuada por closes frequentes e prolongados das zonas erógenas do Homem-Morcego: genitais, lábios, mamilos e, sobretudo, as nádegas emolduradas pela estética emborrachada do uniforme. Transformando essas partes do corpo em elementos que flertam discretamente com a fronteira entre a objetificação e a teatralidade camp, esses detalhes visuais funcionam como uma linguagem silenciosa, reforçando a ambiguidade do relacionamento e adicionando uma camada provocativa ao jogo de poder e desejo que permeia sua interação.

Há um cinismo homoerótico que permeia essa relação, funcionando como uma ironia ácida que desmonta as rígidas convenções do desejo e da masculinidade tradicional. É importante destacar que aqui o diretor não está dizendo que essa dupla seja gay, ele está dissecando as camadas da masculinidade tóxica muito antes desse tema se tornar moda ou pauta comum.

Essa crítica se expressa também nos diálogos carregados de duplo sentido, funcionando como um jogo sutil que revela as tensões, fragilidades e contradições desse modelo masculino, expondo seus desconfortos de forma velada e provocativa, tudo isso sintetizado na emblemática frase: “Não somente um amigo, um parceiro.”

Um cavaleiro das trevas para sempre

Batman Eternamente ancora sua exuberância visual em um coração pulsante de emoções, onde dilemas íntimos, conflitos internos e a complexa busca por identidade se entrelaçam com precisão graças à direção segura de Joel Schumacher, que sabia exatamente o que queria retratar.

A cena que melhor encapsula a essência do filme acontece na Batcaverna. É ali que Bruce Wayne, como um Teseu moderno, desce ao labirinto de sua própria psique para confrontar os espectros do passado e redescobrir a centelha de sua verdadeira identidade. Assim como o herói ateniense que se voluntariou para pôr fim ao ciclo de sacrifícios de jovens impostos por Creta, Bruce também se oferece, de forma consciente, para romper o ciclo de dor, adotando Dick, que tinha acabado de ficar órfão devido ao ataque de Duas-Caras, não como um reflexo de seu próprio trauma, mas como uma chance de reconstruir, proteger e oferecer a ele um caminho que ele próprio nunca teve.

Em sua jornada, Bruce é guiado por um fio invisível, o fio de Ariadne, tecido por memórias, afetos e vínculos que resistem ao tempo, como a presença constante de Alfred e o eco do legado de seus pais. Esse rito de passagem interior, permeado por um subtexto nitidamente platônico, ganha potência na encenação teatral de Schumacher, que insere uma dimensão totêmica à figura do herói.

O gigantesco morcego prático, projetado diante de Bruce, é a materialização simbólica de um espelho sagrado no qual ele se reconhece por inteiro. Aqui, herói e totem se fundem em um só. Ao emergir do labirinto de sua própria psique, não apenas reafirma sua missão: ele escolhe ser o Batman, eternamente.

Foto: Reprodução
Foto: Reprodução
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Schumacher Cut

Trinta anos depois, a versão do diretor ressurge de forma artesanal, como um ato de resistência, um trabalho de fãs que emerge como um batsinal iluminando novamente Gotham com suas luzes de neon. Com uma introdução diferente e cenas que ficaram de fora da versão comercial, ela revela, com toda a sua intensidade, a ousadia de um cineasta que ousou romper com as convenções heteronormativas do gênero. Schumacher mergulha a narrativa em camadas exuberantes de sensualidade, ironia e pop art, expandindo os limites do que se espera de um filme de super-herói.

Rever Batman Eternamente durante a Semana do Orgulho é mais do que nostalgia: é revisitar um gesto artístico que, mesmo abafado por décadas, nunca deixou de existir. Porque a arte verdadeiramente autoral não depende do corpo para existir: ela perdura, pulsa e floresce além do orgânico. Ele resiste e existe com orgulho, para sempre.

Muito obrigado Guilherme da Loja Monstra e ao pessoal da Mansão Wayne por reacender essa memória com a potência que só o amor genuíno por uma obra é capaz de sustentar.