Por que o consumo de leite de vaca é incentivado em nome da saúde humana?
O leite, de acordo com vários estudos, não esteve nos hábitos alimentares dos nossos ancestrais, especialmente, na população negra.
Por Luciana Rios, com colaboração de Eliana Argolo e União Vegana de Ativismo
A alta do preço dos alimentos retirou o acesso das famílias brasileiras a vários itens da cesta básica. Apesar do veganismo ter na sua luta essencialmente a libertação animal, isso não deve se dar às custas do sofrimento e da pobreza da população. Não há o que comemorar com a dificuldade das pessoas comprarem itens de origem animal como carnes e leite.
Mas será que o leite é um item essencial na cesta básica? De acordo com vários estudos, o leite não esteve nos hábitos alimentares dos nossos ancestrais, especialmente, na população negra. Esse hábito é derivado da colonização europeia nos países dos continentes americano e africano. Conforme o artigo MST e Veganismo Popular, de Sandra Guimarães, a criação do gado foi introduzida no Brasil como forma de expansão territorial, dando origem aos latifúndios da forma que conhecemos hoje.
Na engrenagem capitalista, a lógica do consumo do leite seguiu manipulando as populações. Em uma palestra da campanha Think Different, em 1995, o norte-americano Steve Jobs esclareceu como a indústria do leite convenceu as pessoas a acreditar que, mesmo sendo um alimento tão desnecessário, fosse imprescindível de ser consumido, por fins meramente lucrativos, através de campanhas estratégicas de marketing.
De acordo com o médico pesquisador, Dr. Milton Mills, entre 70% e 75% da população negra afro-americana é intolerante à lactose, enquanto na população caucasiana é de 33% a 35%. “Beber leite de vaca por seus nutrientes é como inalar fumaça de cigarro pelo oxigênio que ele contém”, afirma Dr. Mills, que também participou do documentário What The Health. O médico compara inclusive o leite de vaca à metanfetamina – dizendo que “as pessoas podem até apreciá-lo, mas ele carrega uma série de problemas de saúde”. Isso ocorre porque as dietas tradicionais de povos de diferentes partes da África é baseada predominantemente numa dieta à base de plantas, alimentos integrais, vegetais pobres em gordura, sem leite e quantidade reduzida de produtos de origem animal. Fazer uma recomendação médica sem considerar isso, para Mills, é racismo institucional e só favorece a indústria do leite.
Outro profissional especialista em saúde da população negra, Dr. Fleury Jhonson, destacou que pesquisadores do Departamento de Genética da Universidade Federal do Paraná (UFPR) analisaram a presença do alelo responsável pela persistência da lactase, enzima essencial para a digestão de laticínios, nas populações negras e quilombolas das Américas. A pesquisa comprovou que a lactase está normalmente presente apenas na infância porque é nessa fase, a de amamentação, que consumimos leite. Depois, ela para de ser produzida. Essa condição vem sendo modificada pela seleção natural devido ao hábito de consumir leite, mas essas mutações acontecem de forma diferente entre grupos de pessoas negras e brancas.
Os resultados dessa pesquisa ainda confirmaram que a frequência da lactase na população negra é bem mais baixa e que as dietas baseadas em diretrizes, políticas de saúde e dados europeus precisam ser reconsideradas. “Ter uma dieta rica em laticínios não deveria ser o padrão nas populações de nosso continente. Os guias alimentares precisam ser reformulados conforme as características das populações latino-americanas, principalmente em países de maioria negra ou indigena”, afirma Dr. Jhonson. A pesquisa, cujos resultados foram publicados na revista científica Frontiers in Genetics, chegou a essa conclusão ao avaliar 25 populações de 12 países latino-americanos, com ênfase em negros e quilombolas.
Apesar disso, historicamente diversas populações tiveram suas culturas alimentares cooptadas. No que se refere a laticínios, podemos citar a vinculação da tapioca indígena ao queijo coalho, a reviravolta do conceito do chocolate ancestral dos povos africanos e ameríndios com o acréscimo do leite de Heinrich Nestlé ou até a mudança cultural brusca, promovida pelo mesmo conglomerado nos doces brasileiros, antes conhecidos pela grande influência de coco, frutas diversas e regionalidade, passando a centrar-se essencialmente na utilização de leite condensado. Vale a pena ler o artigo do O Joio e O Trigo intitulado Como a Nestlé se apropriou das receitas brasileiras (ou de como viramos o país do leite condensado).
O apelo das empresas produtoras de leite frequentemente associam o seu consumo à absorção de cálcio. Todavia, o cálcio não é um alimento e sim um nutriente que pode ser encontrado em diversas plantas, inclusive, no gergelim que, em comparação ao leite de vaca, tem maior concentração de cálcio e biodisponibilidade, ou seja, é melhor absorvido pelo organismo. No mais, se há legítima preocupação com os índices de deficiência da Vitamina D ou B12, a solução não reside na ingestão de lácteos, ou não haveria, mesmo com seu consumo, os níveis alarmantes de deficiência constatados na população dessas vitaminas.
Diante disso, qual a necessidade de seguir com esse padrão alimentar que adoece e explora perversamente os animais? As vacas, como todo mamífero, só produzem leite após a gestação. Por isso, elas reiteradamente são inseminadas artificialmente pela indústria. Para o negócio funcionar elas devem ser separadas de seus filhotes e ordenhadas por horas, todos os dias, o que leva à inflamação nas tetas, fortes dores e produção de secreção purulenta. Não à toa, a própria legislação brasileira admite atualmente o limite de até 500 mil células somáticas (pus) por mililitros de leite.
Há tanta inflamação na indústria leiteira que essas fêmeas acabam recebendo muitos medicamentos e antibióticos. Aliado a isso, estudos comprovam a presença de outros contaminantes como consequência da aplicação direta de praguicidas e agrotóxicos tanto diretamente nos animais quanto nos alimentos que eles ingerem (pastagens, forragens e rações), que serão consumidos indiretamente pelo ser humano. Nesse ciclo de exploração, uma vaca que viveria entre 18 e 25 anos, não passa dos 6 pelo esgotamento físico e emocional. Os filhotes, se forem fêmeas, seguem no mesmo ciclo e, se, machos, serão direcionados ao abate.
Com tantos riscos sanitários e uma grande dificuldade do poder público em exercer a devida fiscalização, a pasteurização do leite se tornou obrigatória no Brasil, em 1952, quando foi aprovado o Regulamento de Inspeção Industrial e Sanitária de Produtos de Origem Animal. Apesar de evitar doenças comuns transmitidas pelo leite como febre tifóide, difteria, escarlatina, tuberculose e antraz, são destruídos no mesmo processo grande parte dos nutrientes que estariam disponíveis, necessitando de um “melhoramento” artificial. Se observarmos a composição, junto com nutrientes adicionados, vão conservantes, estabilizantes, corantes e aromas artificiais, de forma que um alimento que em ambiente e temperatura natural estragaria em poucas horas, dura meses nas prateleiras dos supermercados. .
O único leite essencial para humanos é o materno, assim como o é com todos os mamíferos. Nenhum outro animal segue bebendo leite após o desmame. Os vegetais estão cheios de cálcio e nutrientes. O leite da vaca é nutricionalmente perfeito para o bezerro, assim como acontece com todas as espécies. O consumo por humanos é balizado por uma demanda do capital e meras conveniências.
Vale ressaltar que o leite, na esteira dos demais produtos oriundos da pecuária, possui grande impacto ambiental, pelo confinamento de animais, pelo desmatamento e pela exploração desenfreada da biodiversidade e da saúde humana. Tratando-se de recursos hídricos, por exemplo, são necessários em média 1020 litros de água para produzir 1 litro de leite e 5060 litros de água para 1kg de queijo. Ademais, há grande poluição do solo, devido aos dejetos potencializados pelos químicos utilizados, demanda substancial de recursos para nutrir e desenvolver os animais, desde boas quantidades de ração de soja e milho, a suplementações (incluindo a Vitamina B12), impacto nas mudanças climáticas e geração de focos de zoonoses, inclusive com potencial pandêmico.
E quais seriam as alternativas? São muitos os leites vegetais à base de plantas e sementes, de baixo custo financeiro e ambiental, inclusive de grande influência cultural, como é o caso do leite de coco, historicamente chamado de ‘leite’ muito antes de qualquer gourmetização e amplamente utilizado nas culinárias regionais. Contudo, tal qual o leite de coco, são inúmeras as possibilidades que podem ser facilmente preparadas em casa, atendendo a diferentes tipos de paladar e finalidade, seja para consumo em bebidas ou preparação de receitas, a exemplo do leite de amendoim, de aveia, de arroz, de semente de girassol, de semente de melão, de inhame e, a depender da região, de licuri e até mesmo das castanhas de caju. Desfrutemos da imensa biodiversidade brasileira e seus riquíssimos potenciais.