
‘O Agente Secreto’: um neo-noir setentista com referências de um manguebeat revolucionário
Novo filme de Kleber Mendonça Filho conecta ditadura, memória e estética manguebeat para refletir sobre as feridas do país
Por Ben Hur Nogueira
“Descobri que minha arma é o que a memória guarda dos tempos da Panair.” – Milton Nascimento
É decerto necessário, sempre quando nos referimos ao cinema de Kleber Mendonça Filho e sobretudo à new wave do cinema pernambucano, ter a dimensão do impacto do movimento cultural manguebeat (movimento cultural que revolucionou a estética nacional nos anos 1990). Um grande exemplo disso é o filme “Amarelo Manga”, onde temos uma estética que mostra todo o impacto daquela geração de novos cineastas influenciados por aquele movimento cultural.
O cinema tem essa capacidade de ter interconexões com situações culturais de seu próprio tempo. Um exemplo disso é o filme nacional “Os Deuses e os Mortos”, de Ruy Guerra, onde temos uma grande influência da música do Milton Nascimento, do álbum “Milagre dos Peixes”, num período pós-Clube da Esquina, o que demonstrou um impacto prolífico do movimento com a própria estética de Ruy.
O recente filme de Kleber é, decerto, sua obra mais ousada esteticamente. Aqui vemos uma junção de comentários políticos assertivos que lidam com a relação patrão-empregado em seu auge, ao mesmo tempo que vemos afeto, saudade, esperança, ansiedade e, claro, um poderoso impacto do manguebeat na estética que, como diria a personagem de Maria Cândido no filme, “um jeitinho mambembe, brasileiro” na fruição da direção de arte e, sobretudo, na atmosfera setentista.
Assim como “O Som ao Redor”, “Aquarius” e “Retratos Fantasmas”, “O Agente Secreto” é dividido em três capítulos. Mas, diferentemente destes três trabalhos, Kleber ousadamente brinca com a cronologia temporal na primeira etapa. Os primeiros 50 minutos têm três arcos temporais acontecendo simultaneamente, de maneira proposital, fazendo com que o telespectador entre na cabeça de Marcelo, personagem de Wagner Moura, que está exilado dentro do próprio país e precisa lidar com uma ansiedade que é apresentada na sequência inicial, onde somos introduzidos a ele num posto de gasolina cujo gerente e os policiais simplesmente ignoram o fato da existência de um corpo coberto por jornais na calçada.
Essa informação do corpo coberto por jornais no posto de gasolina pode parecer um detalhe simples do roteiro, mas Kleber usa dessa morte ignorada pelos locais, mais pra frente no terceiro capítulo, para justamente trazer um debate que ele propôs em “O Som ao Redor”, onde lida com os impactos da herança escravocrata na relação patrão-empregado.
O fato de três histórias ocorrerem simultaneamente faz com que estejamos vendo três “Brasis” diferentes dentro do filme. Mas o que os três “Brasis” têm em comum é uma saudade que todos os personagens, de certo modo, externalizam.
Marcelo sente saudade de sua família e se une a um grupo de refugiados políticos que juntos criam uma família provisória dentro de um apartamento em Recife, enquanto os personagens refugiados sentem saudade, cada um à sua maneira, de parentes, gestos familiares, paixões, entre outras coisas.
Kleber usa o apartamento como um subterfúgio narrativo. Ali é um Brasil dos brasileiros exilados dentro de seu próprio país durante a ditadura. Ali é um Brasil dos perseguidos, dos oprimidos. Todos os personagens sentem saudade de algo, e é isso que os une: a saudade dos tempos de ouro, de um país melhor, de ter esperança.
Existe uma música do Milton Nascimento, lançada no mesmo período, chamada “Saudade dos Aviões da Panair”, onde um verso deve resumir bem o sentimento deste filme: “Descobri que minha arma é o que a memória guarda dos tempos da Panair”. Ou seja, o que une os personagens é a saudade, o remorso, a dor, e, quando todos estão juntos naquele apartamento, parece que a cronologia se mantém linear para mostrar as esperanças de cada um.
O personagem de Marcelo mantém segredos que o próprio telespectador não sabe, e isso é necessário para a ansiedade da trama. Na verdade, o próprio universo do filme lida com segredos que deixam a narrativa ao léu, para que cada telespectador sinta o que foi viver nos anos de chumbo da ditadura.
O filme cria uma teia de personagens onde todos mantêm segredos que não precisam ser expostos. Cada personagem tem segredos guardados sobre um passado recente, de algo à sua maneira, e até mesmo quando inimigos políticos estão frente a frente, sem sabermos necessariamente o motivo da revolta em seus olhares, podemos presumir que algo ocorreu entre ambos.
Kleber faz um filme que mostra um país cheio de histórias de afeto entrelaçadas com uma página escusa de nosso passado, que não podemos esconder. Existem referências do cinema de Alejandro Jodorowsky, de Kurosawa e do cinema de Hitchcock, onde Kleber cria tensões particulares, principalmente no terceiro ato, homenageando o cinema dos anos 1970 e, sobretudo, os filmes neo-noir lançados naquele período (“Mean Streets”, “Chinatown”, entre outros), para tecer justamente os encontros e desencontros do filme.
Tudo o que posso dizer sobre esses encontros e desencontros é que, além de poderosos, fazem com que aquele corpo achado no posto de gasolina no começo do filme seja, decerto, até explicado.
Uma outra poderosa ferramenta que Kleber usa – e isso ele faz em todos os seus filmes – é mostrar um país que nunca esqueceu de suas heranças escravocratas. Aqui, neste filme, temos uma mãe negra que lamenta a morte de sua filha, cuja patroa deixou a criança brincando sozinha na rua, onde ela vem a falecer. Em uma cena emocionalmente forte, Kleber parece fazer uma referência ao caso de Miguel Vinícius, em 2020, que caiu do nono andar em um prédio recifense, onde a patroa da empregada justamente negou tomar conta da criança. Aqui vemos um país que nunca esqueceu da sua herança escravocrata, onde a elite tenta se blindar o tempo todo. Esse tributo mostra que, por mais que estejamos em um filme esteticamente diferente, Kleber nunca esquecerá suas raízes, trazendo comentários políticos sobre um país de origem escravocrata onde sua elite simplesmente se esconde ante seus privilégios.
“O Agente Secreto” é um impactante filme neo-noir com grandes referências cinematográficas e culturais, sobretudo do manguebeat, que representa esse momento do cinema nacional e, sobretudo, da nossa poderosa democracia. É um filme sobre saudade, afeto, esperanças e nostalgia no estilo Kleber Mendonça. Que filmaço, meus amigos.