Por Hyader Epaminondas

Nesta nova adaptação animada de Devil May Cry, produzida por Adi Shankar para a Netflix, a história revisita o universo da clássica franquia da Capcom, centrada nos conflitos dos descendentes do demônio Sparda e nas implicações desse embate para o frágil equilíbrio entre o mundo humano e o mundo demoníaco.

Criado por Hideki Kamiya e desenvolvido por Hideaki Itsuno, o caçador de demônios Dante foi concebido como uma figura trágica, de traços quase shakespearianos, sempre ocultando sua complexidade emocional sob uma superfície de sarcasmo, destemor e estilo inconfundível. Nos jogos, sua trajetória prescinde de aprofundamentos introspectivos, sendo sustentada por uma estética exuberante, personagens coadjuvantes densamente caracterizados e tramas marcadas por um forte simbolismo visual.

A série, no entanto, adota uma abordagem ousada ao apresentar uma versão ainda mais jovem e crua de Dante do que aquela vista em Devil May Cry 3: Dante’s Awakening. Essa encarnação do personagem, ainda em formação e completamente inexperiente, é conduzida por um arco de autodescoberta que revela, gradualmente, camadas ocultas sob a fachada estilizada e irônica que tradicionalmente o define.

Embora mantenha a essência da persona confiante dos games, a animação expande suas fronteiras emocionais, conduzindo-o por dilemas éticos e conflitos internos que ultrapassam o habitual confronto com criaturas demoníacas. É uma reinterpretação que humaniza sem descaracterizar e que, justamente por isso, amplia o potencial simbólico da franquia.

Nesse universo híbrido entre o humano e o sobrenatural, Dante cede momentaneamente o protagonismo a duas figuras que aprofundam o argumento da narrativa: Lady, veterana da franquia, e o enigmático Coelho. Ambos operam como antagonistas circunstanciais, mas também como espelhos simbólicos do próprio Dante — personagens atravessados por passados trágicos e motivações particulares que, ao serem revelados, expandem de maneira significativa o escopo emocional e temático da série.

Narrativas paralelas e a construção da alteridade

O ponto culminante da temporada se manifesta no episódio seis, uma verdadeira dissertação audiovisual sobre a potência da multiplicidade narrativa. Com uma abordagem que beira o folclórico, esse capítulo representa um ponto de inflexão estética, no qual forma e conteúdo se entrelaçam por meio de dualidades simbólicas para reconstruir, em paralelo, as origens de Coelho e Lady.

Inspirado visualmente na lógica onírica de Alice no País das Maravilhas, o episódio abdica completamente dos diálogos, ancorando-se na atmosfera etérea da trilha instrumental “Afterlife”. A escolha por essa linguagem sensorial eleva a narrativa a um patamar reflexivo, transformando-a em uma meditação silenciosa sobre memória, trauma e ruptura.

A oposição simbólica entre o mundo humano — árido, hostil e hiper-realista — e o universo demoníaco — onírico, gelidamente colorido e marcado pela liberdade estética — funciona como metáfora visual para os sistemas de exclusão que moldam nossa percepção do que é “normal” e do que deve ser combatido. É nesse embate de percepções que a obra se aproxima da teoria de Bauman, especialmente nos livros Medo Líquido e Estranhos à Nossa Porta, onde o sociólogo investiga como a figura do “outro” é construída para alimentar um senso artificial de identidade coletiva. O “estrangeiro”, o “inimigo” e, aqui, o “demonizado” tornam-se projeções simbólicas de um medo social cultivado pelas instituições.

Lady representa de forma contundente essa lógica: uma jovem moldada pela doutrinação, treinada para odiar aquilo que lhe foi apresentado como ameaça. Sua jornada como criança-soldado evidencia os mecanismos de manipulação que a série denuncia, revelando gradualmente a falência moral das narrativas que sustentavam sua fé.

O que está em jogo não é a presença do mal como força metafísica, mas a forma como o medo é utilizado para justificar a violência e para rotular subjetividades indesejadas como perigosas ou inumanas. A demonização, nesse contexto, transcende o literal e atua como dispositivo político de exclusão e silenciamento.

Demônios podem chorar

Mesmo os coadjuvantes, com pouco tempo em cena, recebem momentos icônicos e potentes. Um exemplo notável ocorre no desfecho do episódio cinco, quando uma única imagem encerra um ciclo dramático com força simbólica comovente.

Embora a animação não dialogue diretamente com o cânone dos jogos, ela se estabelece como um complemento valioso — uma narrativa expandida, situada em um novo universo repleto de camadas e intertextualidade. As referências visuais a outras franquias da Capcom não funcionam como simples fanservice, mas como parte da construção de um universo coeso, onde cultura pop, filosofia e emoção coexistem em harmonia.

Esse esforço criativo, no entanto, esbarra em uma trilha sonora irregular — ora subaproveitada, ora excessivamente intrusiva — que compromete, em certos momentos, a coesão estética da obra.

O desfecho da temporada é ousado, introduzindo um evento de impacto que reformula toda a expectativa e encaminha a série para uma possível segunda temporada repleta de desdobramentos imprevisíveis. Nesse processo, a animação se transforma também em alegoria das guerras contemporâneas, especialmente no que diz respeito à participação ocidental e estadunidense em conflitos que perpetuam a lógica da destruição do “outro” para a manutenção de um status quo ilusório.

Devil May Cry não apenas mantém o brilho da franquia, como também revela, por trás das espadas e tiros explosivos, uma crítica pontual sobre o modo como a humanidade trata seus próprios “demônios” — reais ou simbólicos.

https://www.youtube.com/watch?v=En9h4d87yTo