Noites Alienígenas e a abdução da periferia de Rio Branco pelo crime organizado
O diretor Sérgio de Carvalho e produtora executiva Karla Martins contam sobre o processo de construção do primeiro longa do Acre a estrear em cinemas
Com première nacional na Mostra Competitiva do Festival de Gramado (14 de agosto), “Noites Alienígenas” é o primeiro longa do Acre a estrear em cinemas. O filme dirigido por Sérgio de Carvalho é baseado em seu livro homônimo de 2011 e adensa a subjetividade de jovens da periferia de Rio Branco (AC), frente ao fenômeno contemporâneo de convivência com o crime organizado por facções do sudeste, que tomaram comunidades em todo o país. “Noites Alienígenas” se apresenta como um realismo mágico, em que as fronteiras entre cidade e floresta são friccionadas através das relações entre as personagens vividas por Chico Diaz (Ale), Gabriel Knoxx (Rivelino), Adanilo (Paulo), Gleici Damasceno (Sandra), entre outros. A produção é da Saci Filmes e Com Domínio Filmes e distribuição da Vitrine Filmes.
Nessa entrevista, o diretor Sérgio de Carvalho e produtora executiva Karla Martins contam sobre o processo de construção dessa narrativa.
Lenine Guevara: A relevância e a representatividade da produção empreendida pela Saci Filmes, celebrada com essa participação em Gramado, reposiciona a produção audiovisual acreana e do norte do país no circuito comercial. Há muitos anos, o trabalho de vocês foi motivado por difundir a cultura acreana. Quais as referências dos povos da floresta nutriram a criação narrativa de “Noite Alienígenas”? Já haviam atuado conjuntamente aos atores indígenas, que estão no filme?
Sérgio de Carvalho: Em “Noites Alienígenas” foi proposital não identificarmos a etnia das personagens, mas tivemos atores indígenas de etnias diferentes. A atriz que faz a personagem Marta (mãe de Paulo) é Shanenawa, Arara e sua avó é Huni Kuin. O Adanilo que faz a personagem Paulo é amazonense e vem se firmando como um dos nomes do cinema da Amazônia, desde o filme “Marighella” de Wagner Moura.
A gente conversou muito sobre esse Paulo, personagem indígena que é um dependente químico. Queríamos que fosse um ator com mais experiência por conta da carga emocional e achamos importante que fosse um ator indígena, diferente dos outros personagens indígenas que não tinham experiência nenhuma em atuação para cinema ficcional.
Karla Martins: O Paulo quando vem pra cidade, é a história de quem vem da floresta, se reposiciona na periferia urbana e adoece. O personagem é indígena, mas representa os povos da floresta. A presença das pessoas nas cidades amazônicas impacta a vida da floresta e, onde tem gente convivendo organicamente com o ambiente, (indígenas, seringueiros, populações tradicionais), a floresta está de pé, saudável.
Sérgio Martins: Concordo, inclusive uma parte do livro que não tem no filme, faz referência à representatividade de outros povos da floresta, como por exemplo, o personagem coprotagonista “Rivelino”, era o filho de um seringueiro.
Lenine Guevara: No filme a relação com a cultura indígena aparece logo no primeiro momento com a cena de miração da personagem de Paulo com uma cobra. As sensações físicas são trazidas ao foco e acompanhamos sem pressa a miração do personagem. Esse momento tem a força de apresentação de uma narrativa de forma aberta, que não explica ao espectador as causas e consequências do que é mostrado de uma maneira linear, colaborando para dar ritmo à cascata de surpresas na qual a dramaturgia foi montada. Poderiam compartilhar conosco sobre a linguagem de construção fílmica e como foi a transposição narrativa do livro?
Karla Martins: Esse universo de quem vem da floresta ou vem da cidade é unido em Rio Branco pela cultura em torno da Ayahuasca. Me parece que essa apresentação do filme é um modo de dizer: estamos cidade, dentro da floresta, temos uma relação estabelecida. A presença mística, mítica e antropológica da jiboia resgata isso.
Sérgio Martins: A imagem da jiboia já estava no livro também e representa o espírito ancestral, mas como o personagem vivia na cidade e pelo envolvimento com a mãe (Marta) que se tornou religiosa, Paulo lê esse símbolo como o diabo. Então, ele se assusta também com a miração e esse chamado da ancestralidade. Uma das camadas é essa dificuldade de leitura dos símbolos.
Eu queria muito falar sobre a questão da perda da identidade da floresta e das consequências de se distanciar da sua identidade.
A escrita do livro foi quase uma catarse, uma experiência de duas semanas. Já no filme, tive o choque no aprofundamento da pesquisa e ver a quantidade de jovens que morrem dentro das facções. E se banalizou. São jovens matando jovens, descendentes de preto matando gente preta, nordestinos matando nordestinos, indígenas matando indígenas. O desafio foi entender esses poderes que manipulam os jovens pra se matar.
A chegada das facções é uma tragédia que está se aproximando das populações ribeirinhas, fazendo rota de tráfico pelos territórios indígenas, cooptando a comunidade dos povos da floresta. Já a cidade de Rio Branco apresenta esse paradoxo, de ser a Meca da psicodelia e da experiência com a Ayahuasca, trazendo gente do mundo inteiro em busca da espiritualidade e dessa medicina, e, ao mesmo tempo, tomada pela violência brutal contra a geração mais jovem que se espalha pelo estado.
Lenine Guevara: De fato, a primeira conexão que fazemos com a cena de inicial de Paulo, aludiu ao uso da Ayahuasca. O momento de descoberta de que o personagem em realidade estava sob vício de pasta coca, foi uma surpresa. Essa é apenas a primeira cena do longa e essas surpresas narrativas acontecem o tempo todo em “Noites Alienígenas”. Apresentar essas novas camadas das personagens e de suas relações foi um modo de compor a linha narrativa?
Sérgio de Carvalho: Eu tive uma consultoria no processo de montagem com o Eduardo Valente que achou muito ousado o roteiro, porque metade do filme é apresentação de personagens, (risos).
Karla Martins: No filme, diferentemente do livro, não fica clara a história da noite em que apareceram discos voadores no Acre e que saiu em notícias de jornal. Então, acaba que as noites alienígenas são as noites das vidas das pessoas, noites fora do tempo convencional cronológico e linear. O filme também está fora da narrativa que coloca a Amazônia no lugar de Iléia, de floresta. Sob esse ponto de vista, torna-se um processo de apresentação de gente. Isto é extremamente rico, se a gente pensar que estamos no momento de dizer: Tem gente na Amazônia, tem gente.
Tem vida, tem formato de viver, de estar, tem uma urbanidade. E essa urbanidade de alguma forma deu as costas para a floresta e de alguma maneira, o personagem Paulo simboliza isso.
Lenine Guevara: Bem, falamos bastante do filme através de Paulo, gostaria de saber dos co-protagonistas. O personagem Rivelino traz grande riqueza dessas camadas subjetivas, ao ser apresentado como jovem, artista, amoroso, apaixonado, revoltado, perigoso, leal e abduzido na trama pulsional, para uma facção de drogas. Poderiam compartilhar sobre como ocorreu o encontro com o ator Gabriel Knoxx e como foi a preparação do elenco?
Sergio de Carvalho: O Gabriel foi impressionante, eu o conhecia do movimento Hip Hop e uma amiga, Talita Oliveira, mandou sua foto. Quando ele fez o casting, olhei para Débora e para Karla e dissemos, não precisa mais fazer. O Gabriel apresenta a força e, ao mesmo tempo uma fragilidade necessária para viver o Rivelino, além de ser um jovem que vive a história do filme: mora na periferia e é circundado por amigos e familiares que estão dentro das facções. O Gabriel é músico e canta Trap e Rap e essa foi a sua primeira experiência como ator.
Karla Martins: O Gabriel é realmente essa força da natureza e acho que a história dele precisa ser contada, porque as facções tomaram o Acre. Tomaram tanto que hoje virou uma instituição: mais estado paralelo e menos violento em certa medida do que a milícia no sudeste, mas uma força violenta, assassina e ao mesmo tempo comunitária, dada a convivência próxima entre as facções e as comunidades em que se instalaram.
Lenine Guevara: A procura da batida perfeita. O caráter pulsional e físico está presente nas personagens e compõe o ritmo das cenas do filme. Como foi dirigir e produzir com o mestre da atuação Chico Diaz?
Sérgio de Carvalho: O Chico Diaz (Ale,) praticamente atuou com não atores. A própria Joana Gatis (Beatriz), também está começando como atriz e é muito mais conhecida na cena audiovisual como figurinista e maquiadora. Mas, principalmente com o elenco jovem, Chico Diaz foi muito generoso, e, comigo também. Tinha horas que me sentia dirigido por ele, porque é um ator que tem mais de cem filmes de experiência e um domínio de set impressionante. Principalmente nessa relação com o Gabriel. Ao mesmo tempo fiquei impressionado porque o Gabriel não se intimidou. O filme tem uma sequência de 10min e esse plano só deu certo por conta da segurança na relação entre eles.
O personagem Ale (Chico Diaz) é uma homenagem a uma geração mística que chegou no Acre na década de 70, tomou muita Ayahuasca, gosta muito de arte e está ali como esperando o disco voador, os encantados, o povo da água. Quem é acreano vai compreender. A personagem, que também é traficante, simboliza um Acre mais velho que não quer se render para esse Acre das facções, um anti-herói.
Lenine Guevara: Como está a expectativa de estreia de Noites Alienígenas em Gramado?
Sérgio de Carvalho: O filme está dentro da linha curatorial e de urgência desse ano no Festival de Gramado. As produções discutem as violências no Brasil e são reflexo desse momento de tensão, de esgarçamento das narrativas do fascismo. Ao mesmo tempo foi uma surpresa, porque para inscrever em Gramado, o filme precisa ser inédito no circuito de festivais, então tivemos que recusar a participação em alguns outros para disputar essa première. Gramado é o maior festival de cinema do Brasil, sem dizer que é melhor ou mais importante, mas o maior, então foi importante ocupar esse lugar com um filme do Acre, de baixo orçamento, viabilizado pelo antigo Ministério da Cultura, um filme de cota. “Noites Alienígenas” é resultado de uma política pública que buscou uma diversidade de produções no Brasil. A tendência daquele investimento se não tivesse o corte do momento atual, seria ter muito mais produções como “Noites Alienígenas” no norte do país.
Karla Martins: Durante muito tempo, uma parte do Brasil que se achava um pouco mais Brasil, colocou um teto para a cultura brasileira, para a arte, posicionando o mais e o menos. O menos representa um bocado de lugares, dentre eles, a Amazônia. Quando houve esse processo político brasileiro de descentralização de recursos, sob uma decisão política, e, não político-partidária, mas política de pensamento, a produção cultural na Amazônia eclode. Esse esgarçamento do tecido cultural brasileiro, que ocorre devido a investimentos do Estado, fortaleceu a grandiosidade e a diversidade de vozes a serem transmitidas.
Falar das questões da Amazônia tem que ser por quem entenda esse espaço que é peculiar, e por muito tempo, essa fala foi pautada por uma parte do Brasil. Estamos em um momento de eclosão desse monte de gente, jovens, que têm acesso à política, à tecnologia. O “Noites Alienígenas” faz parte de uma culminância desse tempo e pode funcionar como um “start” para a produção fílmica de ficção, porque a composição estética, imagética que o audiovisual, em um lugar desse possibilita, é vasta como os rios. É produto de uma política que decidiu:
“O Brasil precisa ver o Brasil, inclusive em Gramado.”
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Sérgio de Carvalho é formado em Cinema pela Universidade Estácio de Sá, no RJ. Após se formar, mudou-se para o Estado do Acre, na Amazônia brasileira, onde criou a produtora de audiovisual Saci Filmes.
Karla Martins é produtora cultural e ativista do Fora do Eixo e da Mídia NINJA.