Por Hyader Epaminondas

Em “No Other Choice”, Park Chan-wook volta a usar o cinema como um bisturi para dissecar as entranhas da sociedade nessa adaptação do livro “O Corte”, de Donald E. Westlake. Em uma sociedade capitalista, nosso valor é frequentemente medido pela capacidade de produzir e nossa identidade se confunde com nossas ocupações, a ponto de o nome da empresa pesar mais que o nosso próprio. Mas o que acontece quando esse mesmo sistema decide que uma máquina pode realizar nosso trabalho por metade do custo? Nos reinventamos ou apenas definhamos com o tempo?

O diretor transforma a crise do mercado de trabalho, com altas taxas de desemprego, precarização do trabalho e dificuldades em acessar vagas de emprego, em uma anatomia moral: o que resta de um homem quando o sistema retira dele o direito de existir com dignidade? Essa pergunta não é apenas o motor narrativo do filme, mas também o ponto de partida para um comentário sobre o esgotamento de qualquer noção de ética em meio à sobrevivência social.

Aqui acompanhamos um pai de família que tem tudo que precisa e vive dias tranquilos, até ser surpreendido pela notícia de sua demissão. A partir daí, ele tenta reconstruir a própria vida, entrevista após entrevista, até que surge em sua mente uma ideia ousada e perigosa: criar a vaga perfeita para si mesmo e eliminar todos os outros candidatos que estejam no caminho.

Cada teste, entrevista e decisão pesa sobre o personagem como uma prova de resistência psicológica, e o drama nasce do conflito entre a necessidade de sobreviver profissionalmente e a alienação imposta pelo sistema. Apesar da gravidade da situação, o filme consegue equilibrar a tensão com um tom quase cômico-pantomímico, apostando na comédia de gestos e em situações absurdas. Explora de forma inteligente as contradições da sociedade moderna, sem perder o ritmo intenso.

Chan-wook molda o mundo de “No Other Choice” com uma estética da miserabilidade que não busca piedade, mas exposição. O ambiente é impessoal, desgastado, quase clínico, e isso amplifica a sensação de que a decadência não é um acidente, e sim uma estrutura, o que fica ainda mais óbvio após a abertura supersaturada da família feliz.

A câmera não observa o estado de miserabilidade como cenário, ela o transforma em sintoma ao dissecar a precariedade da empregabilidade em tempos de automação e do uso excessivo de inteligência artificial para substituir a força de trabalho humano. É o retrato de uma sociedade que normaliza o colapso moral e a brutalidade cotidiana como extensão natural do capitalismo.

“Eu não tenho outra escolha.”

Lee Byung-hun atua como se carregasse o peso do sistema nas costas. Seu personagem, Man-soo, se transforma em um avatar do desespero absoluto: um pai de família que, ao perder sua única forma de sustento, se dá três meses para se reconstruir profissionalmente.

Se em “Round 6” ele representava um símbolo inabalável em meio ao desespero coletivo provocado pelo colapso econômico e pelo fracasso da responsabilidade civil diante das casas de apostas, aqui sua figura se mostra o avesso: um homem esvaziado, que internalizou a lógica da competição a ponto de transformá-la em método.

Byung-hun faz do silêncio, do olhar e da casa onde nasceu seu território, o lugar onde o personagem se dissolve, moldado pela necessidade e preso a um arame invisível que entorta a moral e chama isso de progresso. É nesse estado de quase combustão que o ator atinge o auge da performance, não como explosão, mas como erosão lenta, antes mesmo de colocar em prática seu plano perfeito para conquistar a vaga de emprego.

A forma como a cena é construída, com um vaso de água escorrendo pelo rosto de Byung-hun como se fosse um esquete de comédia sobre nervosismo, é simplesmente fenomenal, equilibrando o drama da situação com um humor inteligente.

Os assassinatos no filme, mais do que ações desesperadas, funcionam como rituais de apagamento simbólico. Não é apenas a eliminação de concorrentes, é o gesto de um sujeito tentando se reinserir em um mundo que já o expulsou. Chan-wook faz disso um jogo perverso de identidade: quanto mais o protagonista tenta provar seu valor, mais ele se reencontra como indivíduo enquanto começa a compreender a vida de suas vítimas.

É um comentário direto sobre o corpo produtivo transformado em mercadoria e sobre como, no capitalismo tardio, o sujeito mata o outro como tentativa falha de não morrer socialmente. Sua família, apesar de secundária à trama principal, também possui arcos em paralelo tão importantes quanto. Cada integrante tem uma história para contar e divide o protagonismo de Byung-hun.

Com Son Ye-jin se destacando como a esposa Mi-ri, definitivamente a personagem mais forte do filme, que não apenas humaniza as ações de Man-soo, mas percebe antes dele mesmo sua fragilidade. Com atitudes firmes, sempre mergulhando de cabeça para resolver os problemas, ela repara as fraturas da família e sustenta a tensão emocional da narrativa, mostrando uma força silenciosa, porém vibrante, que equilibra o drama do marido.

O suspense que Chan-wook cria não nasce da expectativa do próximo crime, mas da constatação de que o mal não precisa mais de justificativa. Tudo é parte de uma engrenagem maior, onde o medo e a culpa são apenas ruídos de um sistema que se alimenta do desespero. O diretor não busca redenção nem punição, busca o desconforto ao mostrar de forma visceral uma luta que todo mundo, ao redor do planeta, passa escondido.

Basta uma demissão para que o mundo pareça desmoronar sob nossos pés. Chan-wook insere momentos de justaposição para tornar visível essa instabilidade emocional: ao mostrar simultaneamente o que dois personagens estão pensando, ele cria uma rede de conexões invisíveis entre eles, revelando não apenas suas angústias individuais, mas também como suas experiências se refletem e se amplificam mutuamente.

“No Other Choice” é um filme sobre um homem que se torna monstro não por desvio moral, mas por coerência sistêmica. Ele justifica o título diversas vezes enquanto sussurra alto: não ter outra escolha. Park Chan-wook encontra aqui um equilíbrio raro entre o grotesco e o realista, criando um retrato frio e hipnótico da ruína social. É um cinema que não oferece catarse, apenas o espelho de uma sociedade em que o horror já se tornou rotina.