Por Paulo Henrique Soares para Cobertura Colaborativa da NINJA Esporte Clube

O Brasil é considerado por muitos especialistas e torcedores como o país do futebol. As 5 Copas do Mundo conquistadas pela seleção brasileira masculina fazem qualquer atleta convocado por ela se tornar instantaneamente famoso e reconhecido. Entretanto, quando se muda o gênero da seleção dentro do mesmo esporte, o país do futebol não tem toda essa reverência com suas atletas e referências.

Mesmo os excelentes resultados nos últimos anos, como duas medalhas de prata nas Olimpíadas de 2004 e 2008, um vice-campeonato na Copa do Mundo de 2007 e ter nada mais nada menos que a melhor jogadora do mundo por 6 vezes, não foi capaz de reduzir as diferenças entre os gêneros, que é situação corriqueira em quase todos os setores brasileiros.

Após derrota para os EUA, seleção feminina ficou com a medalha de prata em Pequim (Foto: Gazeta Press)

Muitos dizem que o futebol feminino não traz o retorno financeiro e a audiência que o masculino proporciona. Mas os números provam o contrário. Mais de 30 milhões de pessoas acompanharam a partida entre Brasil e França pelas oitavas de final da Copa do Mundo Feminina em 2019, segundo o Ibope.

Do futebol feminino temos grandes histórias como as de Marta, consagrada mundialmente após ser eleita 6 vezes a melhor jogadora do mundo (entre os anos de 2006 a 2010 e em 2018) ou de Formiga que estará presente em sua sétima Olimpíada. E temos outras menos conhecidas, de muita superação e adversidades.

Marta com os seis troféus de melhor do mundo. (Foto: Lucas Figueiredo/CBF)

Mais um Silva

“Era só mais um Silva que a estrela não brilha
Era um domingo de sol, ele saiu de manhã
Pra jogar seu futebol, deu uma rosa pra irmã.”

Os versos são da música Rap do Silva do Mc Bob Rum e poderiam muito bem se encaixar na história de uma das 22 atletas convocadas por Pia Sundhage, treinadora da seleção brasileira feminina de futebol, para os Jogos Olímpicos de Tóquio.

Ludmila da Silva tinha tudo para ser só mais um Silva, como milhares de brasileiros. Com uma infância cheia de obstáculos e atribulações, a menina nascida em Guarulhos, na região metropolitana de São Paulo, carrega em sua trajetória uma aquarela completa de mazelas brasileiras. Hoje, ela superou todos os obstáculos e se prepara para servir a Seleção em uma Olimpíada sendo um dos destaques da equipe.

Ludmila viveu na periferia de Guarulhos, na região metropolitana de São Paulo (Foto: Reprodução/TV Globo)

De família pobre, assim como mais de 50 milhões de brasileiros, segundo evidencia estudos do IBGE, Ludmila não teve nenhum contato com a sua mãe e ainda teve que lidar com a morte de seu pai ainda na infância. Chegou a viver em um orfanato e foi criada pela tia com seus dois irmãos legítimos e sete primos, com dificuldades financeiras.

Mulher, negra, pobre e de periferia, teve sua história cercada pela violência que levou prematuramente sua melhor amiga e sua irmã mais velha. Achou no esporte uma saída para se tornar mais que apenas um Silva, sendo esperança de medalha aos 26 anos de idade.

A corrida pela bola

Engana-se quem acha que o futebol já estava enraizado no sangue da jovem Ludmila. Um dos primeiros contatos no esporte foi na escola e, pasmem todos, no atletismo. Velocidade sempre foi um dos pontos fortes da pequena, que via no esporte uma possibilidade de modificar seu futuro.

Com destaque na modalidade, não demorou muito para que seu destino cruzasse com o esporte mais praticado no país e que mexe com o imaginário de grande parte dos mais de 200 milhões de brasileiros.

Vivendo no país do futebol e com a velocidade correndo nas veias, não durou muito para que esse diferencial começasse a despontar dentro das quatro linhas. Aos quinze anos foi levada a um teste pelo seu amigo Eduardo Gomes na Juventus, charmoso e tradicionalíssimo time da Mooca em São Paulo. Ali, mal sabia, faria uma das amizades que levaria para toda a vida.

Ludmila se destacou no teste não por sua habilidade ou por ser taticamente a melhor entre as demais meninas. O atletismo fez diferença e a velocidade chamou a atenção da avaliadora Emily Lima, ex-treinadora da Seleção Brasileira de Futebol Feminino, naquele dia.

Foto: Elvelson de Freitas/ Allsports

Passou no teste, e Emily iniciou então um intensivo de fundamentos técnicos com a nova atleta. E isso lhe rendeu frutos e uma grande amizade com a então treinadora. Após a Juventus, Ludmila rodou por São José, Portuguesa, Santos, Rio Preto e São José (onde novamente foi treinada por Emily).

O ápice de sua carreira em solo brasileiro, foi a conquista da Taça Libertadores da América em 2014 com o time de joseense, mas conquistou também o Campeonato Paulista e foi vice-campeã da Copa do Brasil de Futebol Feminino em 2014.

O salto aos obstáculos

Após as conquistas e grandes atuações, Ludmilla foi convocada para vestir a camisa canarinha da Seleção Brasileira Feminina pela primeira vez para um amistoso contra a Alemanha em 2017.

Ludmila que iniciou no Atletismo,fazendo gesto que eternizou Usain Bolt nas Olimpíadas. (Divulgação / Fifa)

Coincidência, ou não, a treinadora da equipe na época seria uma velha conhecida da atleta. Novamente, Emily Lima apareceria em sua vida e impulsionaria a atleta ao sucesso. Na carreira futebolística, toda vez que Emily cruzava a história da jovem paulistana, algo bom ocorria. E não demorou muito para que mais uma vez a sina se concretizasse.

Com o destaque da atleta, foi contratada para atuar do outro lado do Atlântico, mas especificamente na cidade de Madri na Espanha, pelo Atlético de Madrid. Foi bicampeã da Liga Espanhola Feminina nas temporadas de 2017/2018 e 2018/2019. Na última temporada espanhola, fez incríveis 15 gols pela equipe e já contabiliza 45 desde que chegou a equipe madrilena.

Ludmila recebe o prêmio de melhor jogadora iberoamericana das mãos de Mario Gómez, subdiretor do Marca — Foto: Pablo Garcia (Marca)

Em um esporte machista, onde os homens recebem mais em relação às mulheres, Ludmila da Silva é patrocinada pela Puma, empresa mundialmente conhecida de materiais esportivos. E é um exemplo para milhares de jovens periféricos brasileiros que crescem atualmente em busca de oportunidades para concretizarem seus mais diversificados sonhos.

O garimpeiro da periferia

“Professor de educação física e treinador de futebol”. É assim que se descreve Eduardo Gomes Hipólito ou Du para os mais íntimos. Eduardo foi o grande incentivador e primeiro treinador de futebol de Ludmila na periferia de São Paulo.

Eduardo e Ludmila no campo de futebol onde tudo começou. Arquivo/Eduardo Gomes

Ele relembra os momentos iniciais da atleta em um projeto social da comunidade. “Velocidade, pegava a bola da zaga e saia driblando todo mundo e fazia o gol”. Aquilo despertou o tino de garimpeiro de Eduardo, que viu na menina de 15 anos uma possível pedra preciosa que ainda deveria ser lapidada.

Com contatos na Juventus, o professor viu ali a oportunidade perfeita para o talento de Ludmila alavancar. Mesmo sendo um dos responsáveis diretos pelo pontapé inicial para uma história que vem demonstrando ser de muito sucesso, Du não esmorece e continua a procura de novos talentos nas periferias paulistas.

“Aqui a gente não ensina só futebol. É disciplina, é saber chegar nos lugares. Pra quando estiver numa equipe profissional saber de onde veio, seguir com a educação e ser um cidadão ou uma cidadã de verdade”, diz.

Algumas novas promessas do futebol feminino brasileiro podem despontar também pelas mãos do treinador ou por outros tantos anônimos que seguem fazendo o trabalho de garimpeiro do ouro olímpico em todos os cantos do país.

Japão dourado

A seleção feminina de futebol, comandada pela sueca Pia Sundhage, estreou hoje diante da China e tem no mesmo grupo a Holanda, vice-campeã mundial em 2019, e a seleção africana de Zâmbia. 

O sonho do ouro olímpico das meninas do Brasil segue vivo pelo Japão e um sonho ainda maior pode ser constatado em cada atitude e gesto das atletas que fardarão a tão temida e pesada camisa canarinho: Que o país do futebol, seja verdadeiramente o país do futebol, sem desigualdade de gêneros e exclusões no esporte e quiçá, em um breve dia, em qualquer setor de todos os cantos da pátria de chuteiras.

Mais que uma medalha olímpica, o sonho de todas as mulheres brasileiras é ter nada mais, nada menos, que os mesmos direitos que qualquer cidadão e que essa luta jamais seja simplesmente relevada por discursos rasos de um país machista em sua raiz. Só assim, a estrela de diversas novas Silvas poderão brilhar no céu da Pátria.