Foto: Daniel Philip Weber

Por Marcelo Mucida / @planetafoda*

Com 26 anos, Alice Marcone é de Valinhos – SP, por onde morou durante a sua infância. Depois, se mudou para Serra Negra, que também fica no interior de São Paulo, onde viveu na zona rural até os 17 anos.

A sua relação com o campo e com a cultura do interior foi o pontapé para que, anos depois, lançasse o seu trabalho no sertanejo. Mas ela conta que passou por um vasto processo de imersão e pesquisa para então entender que poderia sim desenvolver criações dentro deste gênero musical.

Após lançar o primeiro single chamado “Noite Quente” no ano passado, atualmente Alice é uma das expoentes do queernejo no Brasil, sendo a primeira mulher trans a cantar sertanejo no país. O queernejo é um movimento desenvolvido por artistas LGBTQIAP+ para ampliar o universo de possibilidades dentro do cenário musical. Além de Alice, outros criadores como Gabeu têm fortalecido esta ressignificação e desdobramento do ritmo. Os dois lançaram uma parceria no final de 2020, chamada “Pistoleira” (ouça aqui).

Poder ocupar novos espaços é um importante passo na trajetória musical brasileira, levando em consideração o histórico de construção do sertanejo no país. Após o boom do feminejo, que trouxe destaque para cantoras dentro deste ramo, o queernejo é uma ferramenta de representatividade na luta contra o preconceito, mas ainda há muito o que ser explorado.

Foto: Daniel Philip Weber

Além de cantora e compositora, Alice também é atriz, apresentadora de TV e roteirista. No audiovisual, ela integra a equipe de roteiro de projetos como a série adolescente, recentemente anunciada pela Netflix, “De Volta aos 15” – da qual ela também fará parte do elenco – e “Manhãs de Setembro”, série a ser lançada pelo Amazon Prime Video, que tem como protagonista a cantora Liniker. A obra contará a história de Cassandra, uma mulher trans que descobre que teve um filho há alguns anos atrás.

Confira abaixo um rápido bate-papo que tivemos com a artista e aproveite o estímulo para também conhecer mais sobre o queernejo.

Como você começou a cantar sertanejo e como vê o desenvolvimento do queernejo?

Comecei a cantar sertanejo depois de um grande bloqueio criativo por anos na minha carreira musical. Em 2016, eu lancei meu primeiro projeto musical, um EP de um pop meio experimental, mas depois de diversos shows sentia que aquela linguagem já não conversava comigo. Foi necessário um processo de imersão e pesquisa muito profundo na minha própria história e ancestralidade para entender que eu poderia cantar sertanejo. Cresci na roça, cercada de mato, folclore, sertanejo (especialmente o raiz). Mas a heteronormatividade desse gênero musical (especialmente sua variante “universitária”) me afastou demais da possibilidade de me reconhecer nesse contexto.

A vontade de cantar sertanejo agora vem justamente para ocupar esse espaço assustadoramente vazio, de mulheres e pessoas LGBTQIAP+ e também não brancas no sertanejo mainstream da atualidade. E nesse movimento vem todo o queernejo, uma cena de artistas LGBTQIAP+ independentes que estão reocupando o sertanejo, criando uma representatividade, um imaginário e narrativas que antes não estavam nesse gênero musical.

E qual é o retorno que tem recebido desde o primeiro lançamento?

São vários retornos diferentes, justamente porque o que eu e o pessoal do queernejo estamos fazendo é muito diferente dentro do cenário brasileiro. Somos ainda poucos jovens LGBTQIAP+ resgatando o sertanejo, mas estamos crescendo. E estamos começando a despertar a chama de muitas pessoas como nós, pessoas LGBTQIAP+, não brancas, de identidades dissidentes ou mesmo pessoas aliadas a nossas causas que, assim como nós, acham que o sertanejo pode contar histórias diferentes. Estamos também movimentando uma resposta interessante dentro do meio sertanejo, e alguns meios de comunicação, repórteres, radialistas e grandes artistas do gênero estão de olho no nosso trabalho e nos apoiando. Mas também é um trabalho de formiguinha convencer muita gente de que as narrativas tão consolidadas na tradição do sertanejo possam ser outras, então eu também percebo certas resistências, de todos os lados. Tanto de gente que não respeita o sertanejo musicalmente, diminuindo o gênero musical a algo necessariamente conservador, retrógrado ou problemático; ou então de gente do próprio sertanejo que não quer ver nossas narrativas dissidentes dentro do gênero. Mas eu tenho certeza que essas pessoas são minoria, e vão ser cada vez menos, porque eu acredito muito no poder transformador da arte que estamos fazendo.

Foto: Daniel Philip Weber

Como se desenvolveu o seu trabalho com a arte, em geral?

Minha grande paixão e vocação sempre foi contar histórias. Desde a mais tenra infância minha família coleciona VHS com gravações minhas fazendo teatro com meus bichinhos de pelúcia. Fui uma adolescente viciada em escrever webséries no Orkut e hoje, além de cantora-compositora, sou também atriz e roteirista. A música pra mim é mais uma forma de contar histórias: no caso, a história de uma garota um tanto romântica num universo folclórico, rural, sertanejo, latino-americano, do interior do Brasil.

Que discussões você busca promover através do seu trabalho?

Quero construir uma representatividade trans dentro da música sertaneja , falando de temas clássicos do gênero, como amor, sofrência e arrastação de chifre pela perspectiva de uma mulher trans. E quero também resgatar as ancestralidades que foram fundamentais para a construção da música sertaneja e do povo brasileiro, que fazem também muito parte da minha própria história e do entendimento da minha identidade como mulher negra latino-americana. Meu primeiro álbum irá abordar muitos ritmos latinos que foram essenciais pra construção do sertanejo, como bachata, bolero, arrocha, tango, entre outros.

Alice tem um perfil no Instagram (@alice.marcone) e um canal no YouTube, por onde divulga os seus trabalhos. Inscreva-se já para acompanhar as novas criações da artista.

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Assista ao clipe de “Noite Quente”:

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