Escrito a partir de um encontro com Marcia Rachid, cofundadora, médica infectologista e autora do livro Sentença de Vida, Marcio Villard, coordenador de projetos e ações estratégicas, e Maria Eduarda Aguiar, advogada e duas vezes eleita presidente da ONG

Foto: Arquivo GPV-RJ

Por Kaio Phelipe

Em 1980, na cidade de São Paulo, foi registrado o primeiro paciente portador de hiv no Brasil e, logo após, outra ocorrência foi confirmada no Rio de Janeiro. Porém, foram necessários mais dois anos para que o diagnóstico fosse classificado como aids. À semelhança de qualquer epidemia, essa também provocou uma reação na sociedade civil, que desta vez escolheu mulheres trans, travestis e homens gays como culpados, desencadeando o preconceito sorológico que é visto até os dias de hoje.

A ONG foi fundada no dia 24 de maio de 1989, dentro de uma sala na sede da ABIA (Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS), no Jardim Botânico, pela ideia inicial de Herbert Daniel, sociólogo, intelectual, escritor, integrante da luta armada contra a ditadura militar e um dos principais ativistas do movimento de hiv/aids. “O objetivo era criar um grupo com portadores do vírus, seus familiares e amigos, profissionais de saúde e quem mais quisesse enfrentar o preconceito” (Marcia Rachid, Sentença de Vida, p. 23).

O primeiro projeto criado foi o Disque Aids, ainda em seu ano de fundação, com a proposta de oferecer informações e orientações. Herbert defendia o direito à vida para os portadores de hiv e os doentes de aids, naquela época tratados de forma negligente como sujeitos prestes a morrer. De sua concepção, surgiu o nome Pela VIDDA (Pela Valorização, Integração e Dignidade dos Doentes de Aids) e a frase Viva a Vida, ecoada em todo o país quando a discussão gira em torno do tema.

“O termo utilizado hoje é “pessoa vivendo com hiv” ou PVHIV. Reduzir estigmas é importante e as pessoas ainda têm medo da palavra aids. Mas não se deve parar de falar sobre ela. O Pela VIDDA – RJ possui um nome carregado de história, totalmente associado ao Herbert Daniel. Se mudasse o nome, viraria outra ONG e contribuiria para o apagamento sociocultural dessa narrativa”, afirma Márcio Villard.

De acordo com os dados da UNAIDS (Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS), de 2015 a 2022, caíram os orçamentos destinados à causa. “Essa situação afeta, principalmente, aos municípios pequenos. Desde 2021, não há distribuição, por exemplo, de gel lubrificante, que é fundamental para a redução de danos e prevenção combinada”, também afirma Marcio. Se não houver retomada de investimento, a epidemia pode reverter e começar a subir. O Brasil lidera a expansão do hiv na América Latina. “E os dados oficiais não são confiáveis, são subnotificados e os números podem ser muito maiores”, complementa Maria Eduarda Aguiar.

*Redução de danos e prevenção combinada são estratégias que usam simultâneas e diferentes abordagens de prevenção.

Jornal do Brasil

Pela experiência que o GPV-RJ tem com a testagem gratuita de hiv, sífilis e hepatites B e C, os números certamente não caíram. Uma característica desse crescimento é o aumento do número de pessoas em situação de rua, causado pela pandemia da covid-19. Por viverem em extrema vulnerabilidade, estão mais expostos ao vírus e vincular pessoas nessa conjuntura se torna mais difícil pela falta de moradia, privacidade, contato e documentos.

O Pela VIDDA – RJ muitas vezes cumpre o papel que o Estado não faz, tendo enorme responsabilidade pela adesão ao tratamento na cidade do Rio de Janeiro e priorizando e acolhendo a pessoa que vive com hiv. Não é possível levantar os dados desde o ano de sua fundação. Somente em 2014, com os testes rápidos feitos por amostra de fluído oral, se tornou possível mensurar dados reportados.

A primeira testagem por fluído oral foi feita em 2014, na Boate 1140, voltada para o público LGBTQIAP+, em Jacarepaguá. A testagem, desde então, é feita por educadores de pares, os facilitadores responsáveis por apresentar os testes e transmitir informações essenciais, como prevenção combinada e janela imunológica, e encontrar pessoas que ainda não sabem o próprio status sorológico. Geralmente, os educadores de pares pertencem ao mesmo grupo social da população-chave com o intuito de tornar informal e  popularizar o ato de testar e tirar o peso que as pessoas supõem que seja, compreendendo que muita gente nunca se testou, sobretudo os mais jovens.

No início da epidemia, a população-chave era formada por pessoas escolarizadas e de classe média-alta. De meados dos anos 90 para cá, o cenário começou a mudar, tornando pessoas sem escolaridade e pobres como o grupo prioritário. Mas vale lembrar que todos estamos expostos ao vírus e uma relação sexual é o suficiente para reverter o status sorológico negativo para positivo. As pessoas vêm tentando desassociar sexo e hiv, quando deveria ser feito o oposto.

“Jovens sempre se infectaram mais justamente por serem jovens. Jovens se consideram invulneráveis”, ensina Marcia Rachid. “Seria simplista dizer que é pela irresponsabilidade ou por não terem visto o auge da epidemia. Essa estratégia não os traz para a discussão, ao contrário, afasta todos eles. Isso poderia ter sido diferente, se houvesse tido investimento em prevenção, mas agora falar sobre PrEP e PEP pode ser muito mais eficiente, não cria bloqueios, faz com que eles se interessem pelo assunto”.

*PrEP (Profilaxia Pré-Exposição): uso preventivo de medicamentos antes da exposição ao hiv. PEP (Profilaxia Pós-Exposição): medicamento utilizado após uma exposição sexual com indicação de prevenção ao hiv.

 O GPV-RJ circula por festas, áreas boêmias, pontos de prostituição, empresas, eventos e demais locais com grande fluxo de gente. Além dos testes, o grupo também oferece camisinha interna e externa. A recepção é sempre positiva. Os pós-testes, tanto para resultados negativos quanto para resultados positivos, são feitos com a mesma seriedade. Em todas as ações promovidas pela ONG, estão presentes profissionais qualificados da área da saúde para acolhimento e vinculação. A assistência é feita do pré-teste à adesão ao tratamento.

*Divulgar o status sorológico de alguém é crime. O sigilo é um direito da pessoa vivendo com hiv.

Além da testagem, o Pela VIDDA – RJ trabalha com outros projetos. “A população trans vinha para o grupo procurando retificação civil, a gente fazia a assessoria, mas não tinha nenhum projeto exclusivo sobre isso. Hoje temos um trabalho de acolhimento para pessoas LGBTQIAP+, com foco em pessoas trans, e fazemos encaminhamento para serviços de advocacia, assistência social, psicólogos, centros de acolhimento”, afirma Maria Eduarda.

“Temos também uma pesquisa de empregabilidade e um banco de dados para pessoas trans e não-binárias para encaminhamento de trabalhos. Nosso propósito é fazer com que o Ministério de Direitos Humanos entenda que combater o estigma é uma ação de direitos humanos, não só de saúde pública”. Outras atividades de convivência promovidas são o Café Positivo e a Reunião de Mulheres, existentes desde o ano de 1990, e o Juventudes e Atitudes, que acontecem mensalmente na sede do grupo, desde 1993 localizada no Centro do Rio de Janeiro.

Herbert Daniel faleceu em 29 de março de 1992. Atualmente, existe um movimento para que o dia de seu nascimento, 14 de dezembro, seja considerado o Dia Nacional do Orgulho LGBTQIAP+.

Viva a Vida!

* As siglas hiv e aids foram grafadas em letras minúsculas seguindo o manifesto de Herbert Daniel, na intenção de diminuir seus protagonismos frente à vida do indivíduo.

* Somos o único país latino-americano a usar a sigla AIDS em inglês, ao invés de SIDA. Há relatos que diziam temer a confusão com o nome Aparecida.