Por Marcelo Mucida / @planetafoda*

Do Ceará, Verónica Valenttino é cantora, compositora, atriz e performer.

Um corpo em pulsação que vê a arte como forma de trabalhar com as suas inquietudes e de promover reflexões coletivas.

A entrevistada desta semana para a seção #ArtistaFOdA é integrante do coletivo As Travestidas e uma das vocalistas da banda de rock Verónica Decide Morrer.

Na conversa para a Mídia NINJA, ela contou sobre como se desdobraram os seu trabalhos com a arte, a trajetória da banda, além de comentar sobre projetos atuais, que incluem o lançamento de uma carreira solo.

Confira a seguir a entrevista na íntegra.

Para começar, eu queria que você falasse um pouco sobre como você começou a desenvolver trabalhos com a arte. Como isso se deu.

Eu nasci em Fortaleza – Ceará e fui uma criança evangélica. Dentro da igreja, eu sempre desenvolvi aquilo que eu acreditava ser arte. Eu sempre cantei, sempre trabalhei no meio da dança e com teatro, e depois eu fui estudar artes cênicas. Eu passei no curso de artes cênicas, e inclusive eu cursei artes cênicas com o Silvero Pereira, que foi onde a gente se conheceu e, quando isso aconteceu, ele tinha um trabalho que era “Uma Flor de Dama”, mas num formato mais de esquete. Aí aquilo foi ganhando uma proporção maior e ele tinha o desejo de transformar isso num espetáculo e foi quando nasceu o Cabaré da Dama e daí surge também o coletivo artístico As Travestidas, no qual estamos juntos há 15 anos.

Até então eu não me encontrava, não me enxergava e não me definia como a mulher travesti que eu sou. Então o teatro veio nesse lugar muito especial e importante, que é esse lugar de revelação de quem eu era de fato, de quem eu podia ser e daquilo que eu poderia fazer como trabalho, como profissão. Eu não queria colocar o meu corpo dentro do lugar já esperado e já empurrado por esse sistema e pela falta de oportunidades…

E aí a gente começou esse coletivo e nasceu um outro espetáculo que é o “Engenharia Erótica”, que foi baseado num livro de entrevistas com travestis do Rio de Janeiro, do Hugo Denizart, que é um psicanalista e, dentro desse espetáculo, eu tinha um número em que eu cantava ao vivo, cantava inclusive uma música do Ney, e aí aquilo me engatilhou, aquilo me deu um despertar, porque eu tinha saído da igreja, fui estudar artes cênicas e não cantei mais até esse momento.

Depois, eu fui convidada a fazer um trabalho numa casa lá de Fortaleza, que até então era tida como um espaço hétero, inclusive com casos de barrarem a entrada de travestis, e eu achei aquilo desafiador. Como nessa época já existia a Verónica, mas até então a Verónica borrava a minha vida e eu não sabia se era criatura, se era criadora, eu topei fazer esse número durante um mês, e quando eu vi a catarse das pessoas que estavam vendo aquele show, eu decidi voltar a cantar e é quando nasce a banda Verónica Decide Morrer, com a proposta inicial de seguir com o blues, mas aí o rock’n’roll chegou na nossa vida e a gente percebeu que o que a gente estava fazendo era rock’n’roll.

Foto: Rafael Monteiro – @rafael.mmonteiro

E como se deu, então, esse desenvolvimento da banda?

A Verónica Decide Morrer nasce no Sertão Central do Ceará, num show que aconteceu em frente à igreja matriz da cidade, em cima de um caminhão, e aí quando eu vi em que lugar essa minha arte poderia estar, em que lugar eu estava, e o que ela poderia causar nas pessoas enquanto reflexão – nem falo tanto de transformação nesse caso, porque a gente nunca pode garantir isso – mas essa reflexão era muito perceptível, era muito notório que o fato daquela galera ver uma travesti cantando rock’n’roll era no mínimo espantoso, no mínimo diferente.

Depois disso, a gente fez a Parada da Diversidade em Juazeiro do Norte e só então a gente chegou para estrear a banda em Fortaleza que é a minha cidade natal. E aí, quando a gente chegou em Fortaleza, já tinha um burburinho sobre o show que a gente tinha feito em frente à igreja, e então chegamos na cidade desta forma.

E assim se consolida a Verónica Decide Morrer, e no começo produzíamos as nossas próprias festas para poder tocar e tínhamos um lugar que é bem significativo para nós porque era um cinema pornô, e nós promovemos algumas festas dentro desse cinema e lá tinha um espaço que a gente usava como palco para poder fazer o nosso show.

A banda começou a tomar uma proporção bacana e passamos a adentrar os principais festivais de música do Ceará e, posteriormente, festivais do Brasil, e então começamos a circular com a banda e participamos de um festival que é muito importante no Ceará, o Maloca Dragão, e a gente ganhou esse festival de música autoral e o prêmio era uma quantia em dinheiro. Nós já tínhamos começado a gravar um EP em Fortaleza e aí a gente conheceu uma pessoa que nos proporcionou a gravação desse disco, abrindo o estúdio dele e sendo um super parceiro, que é o Kassin, da Audio Rebel, do Rio de Janeiro. Ele disse: “Peguem esse dinheiro, venham para o Rio de Janeiro, eu abro o meu estúdio e vocês gravam esse disco, pagando só a mixagem” e isso foi um grande apoio, e então arrumamos as malas e seguimos para o sudeste.

Chegamos no Rio e conseguimos um lugar para ficar por lá através de um fã da banda e então tudo meio que foi fluindo e se encaixando e esse tempo que passamos no Rio foi o tempo para a gente se apresentar, então fizemos muita coisa por lá, produzimos muitas festas, essas parcerias foram acontecendo e então fomos convidados para fazer a Virada Cultural de São Paulo. Nós já tínhamos uma pretensão de migrar para São Paulo porque a gente acreditava que a visibilidade por lá era maior e as possibilidades também, por conta da grandiosidade da cidade e pela diversidade de lugares, e por isso a gente achava que seria mais vantajoso para a banda embarcar nessa e desde então estamos por aqui. A banda tem 10 anos e vão completar 06 anos que estamos em São Paulo.

E vocês estão produzindo coisas nesse momento atual?

Agora, com todo esse momento de pandemia, a gente segue produzindo, mas de uma forma mais reservada por enquanto, para a construção de um novo EP, e temos um lançamento para fazer, que é a música “Lolla”, que será a última música desta fase da banda, porque a gente pretende investigar outras coisas, claro que sem sair do rock’n’roll, mas a gente vai dar uma enveredada e uma modificada tanto na estrutura da banda como na produção daquilo que a gente faz.

A gente está agora levantando fundos para poder gravar o clipe da música e então fazer o lançamento e queremos fazer isso até o final de abril. Inclusive, vão acontecer algumas lives da banda, para arrecadarmos dinheiro, porque a pandemia veio e deu uma bagunçada geral nesta estrutura.

As doações para a banda podem ser feitas através do PIX: 660.833.383-87

Dentro da pandemia, também veio o meu despertar para muita coisa que eu tinha engavetado e que não se encaixava na banda e aí eu decidi investir e acreditar numa carreira solo. No ano passado, eu lancei uma música com um clipe feito em casa, pelo festival do IMS, que se chama “Melancolia” e que agora nós iremos subir também para as plataformas digitais, e estamos trabalhando num EP que se chamará “Ressaca”. O EP terá composições minhas e também algumas parcerias com compositores contemporâneos, inclusive lá do Ceará.

Assista ao clipe de “Melancolia”:

E paralelamente a isso você segue desenvolvendo trabalhos no teatro com As Travestidas, certo?

Sim, porque eu também sou atriz, a minha formação é em teatro. O último trabalho que fizemos foi o Festival das Travestidas, completando esses 14 anos em 2020, no qual eu participei.

Também fizemos um festival agora no fim de março, onde realizamos oficinas e faremos uma apresentação do Cabaré de forma remota.

E além disso, eu também desenvolvi trabalhos com outros diretores e outra galera de teatro daqui de São Paulo.

Quando cheguei em São Paulo, eu adentrei em um coletivo que é o Motosserra Perfumada, que é um coletivo de amigos e artistas que são lá de Pernambuco, e aí desenvolvemos alguns trabalhos.

Trabalhei também com a Georgette Fadel, fiz uma substituição numa peça do Felipe Hirsch no Rio de Janeiro… Então a gente vai seguindo primeiramente até onde conseguimos chegar e também atrás dessas parcerias, desses elos.

Ainda falando sobre festivais, um projeto bem importante que aconteceu durante a pandemia foi o MARSHA!, que é um festival feito e idealizado apenas por pessoas transvestigêneres, e foi muito gostoso de participar.

No ano passado aconteceu também o lançamento do documentário AmarElo em que o Emicida menciona uma performance sua e então eu queria saber sobre como foi isso pra você, como isso reverberou por aí.

Primeiro, foi uma puta visibilidade e é legal ter tido essa visibilidade, mas eu ainda tenho que puxar e falar de uma coisa sobre esse lugar de inclusão dos nossos corpos. Como é que a gente de fato e na prática colabora para esses corpos que são mais vulneráveis como os nossos? E então eu percebo que existe toda uma estratégia de mercado de mainstream, mas algumas coisas me incomodam.

Acho importante falar que me incomoda porque esse documentário traz e mostra uma performance que eu fiz há 03 anos atrás num desfile da Casa de Criadores e que foi o único desfile da Casa de Criadores que foi censurado. Então, eu não tinha registro algum, o estilista, que é o Gustavo de Carvalho, também não tinha registros, nem fotos e nem vídeos, e nós fomos censurados. No final do desfile, nós entramos com faixas de reinvindicações e de protestos e isso levou o desfile a ser censurado.

No entanto, o Emicida estava lá na plateia.

Três anos se passam e aí primeiro, uma coisa que para mim é meio que incompreensível é o fato de como que eu, travesti, te toco, te inspiro, te faço refletir e você sequer vai procurar saber quem eu sou? Vai tentar me conhecer?

Num belo dia, uma amiga me manda uma mensagem dizendo que tinha acabado de assistir ao pré-lançamento do documentário e que eu aparecia lá e não tinha comentado nada sobre isso com ela. E foi aí que eu descobri que eu estava no filme e segui com os acordos sobre a liberação de imagem junto com a produção.

Foto: Rafael Monteiro – @rafael.mmonteiro (com Lorraine Dazária)

Então aí eu pergunto e deixo essa inquietude, sobre que inclusão é essa? Já que primeiro, se eu toquei tanto ele, como ele não sabia nem quem eu era, não sabia o meu nome?

Em que lugar você me coloca? É esse lugar de alegoria? Porque se for esse lugar, eu não quero estar nele.

Fiquei feliz com a visibilidade, com o retorno das pessoas, e em ser inspiração inclusive para a criação de um disco, mas ao mesmo tempo eu preciso falar sobre essa inquietude. Porque o que você me oferece é um lugar de visibilidade como se apenas a visibilidade fosse me tirar da marginalidade, mas não é bem assim.

Eu queria que você falasse um pouco sobre como você vê as trocas com a arte atualmente, no sentido de poder gerar reflexões, como você comentou no início da entrevista.

Eu acredito muito que a arte é a única arma que a gente tem e a maior potência, mas eu não acredito na arte feita só por hobby, até porque eu falo desse lugar que é a minha arte.

Acredito na arte como lugar de organização dos nossos ódios e das nossas inquietudes.

Me coloco num lugar de arteira e não de artista, porque vivo de arte.

O meu corpo já é em si empurrado o tempo todo para esse lugar de marginalização e a arte me faz acreditar que é possível sim viver e conquistar minimamente a sua dignidade enquanto profissional.

Eu sou muito feliz porque o meu nascimento e o meu alicerce, por ser da arte, por ser na arte, aliviou muita coisa e eu não precisei colocar esse meu corpo em lugares muito mais vulneráveis porque eu tinha a arte como ferramenta, como arma. Não que eu me coloque num lugar de privilégio, mas penso que a arte me proporciona fugir da linha desse sistema que vai me colocar em direção à marginalização.

Acredito muito numa frase que o Belchior falava que é “sons, palavras, são navalhas e eu não posso cantar como convém, sem querer ferir ninguém” e então é muito sobre isso e sobre esse lugar de causar uma reflexão, mas não sou responsável pela sua transformação, isso é um processo de cada um.

 

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