Vitória da cultura brasileira no Congresso Nacional

Texto de Lenine Guevara

No dia 05/07 tomada pelos afetos de afirmação e vida devido à vitória das leis culturais e a derrubada dos vetos impostos por Jair Bolsonaro à Lei Aldir Blanc 2 e Paulo Gustavo, minha comemoração foi assistir ao documentário ‘Radical’’ que conta a história da campanha de Guilherme Boulos à prefeitura de São Paulo em 2020.

O que esses dois momentos têm em comum? São a consolidação de muita luta e acúmulo de inteligências, são a comprovação de que existe outro modo de fazer política, de que é possível acreditar e construir nossos sonhos com engajamento orgânico, coletivo e em rede e que os agentes ligados ao campo da cultura são fundamentais para o novo ciclo de políticas afirmativas no país.

Ação de projeção em Brasília pela derrubada dos vetos das leis culturais promovida pelo Movimento Social das Culturas, uma caravana nacional de artistas, gestores, produtores, técnicos, trabalhadores e trabalhadoras da cultura no dia 04/07. Foto: Mídia Ninja.

Em pleno período de pandemia e no momento mais persecutório à cultura, às artes e sim, ao amor e liberdade, conseguimos convergir o campo cultural em sua imensa diferença para atuar coletiva e em multidões na pressão para as votações das leis Aldir Blanc em 2020 e, nesse último ano, das Leis Aldir Blanc 2 e Paulo Gustavo. Essas leis passaram pelas câmaras dos deputados e do senado, conseguindo imensa maioria de apoio nas casas mais conservadoras da história política do último ciclo. Vetadas na íntegra por Jair Bolsonaro, a vitória foi histórica não apenas pelo avanço de direitos, mas porque depois desses tantos rounds nas casas legislativas brasileiras compreendemos na práxis a força da união pela cultura. Depois de 3 rounds, também senadores e deputados de diversos partidos do campo progressista e conservador, já estavam letrados nas leis e defenderam com fervor a sua aprovação no dia 05/07. Motivados por uma mobilização com poucos precedentes, de gestores, fazedores de cultura, artistas renomados em diversos campos que acompanharam a votação, entraram em contato, procurando-os para conversar, em tratativas firmes, em ocupações e caravanas, os parlamentares chegavam à emoção durante a sessão. A vitória não foi apenas de leis salutares e que possibilitaram permanência de fazedores da cultura no campo de trabalho, foi o próprio reconhecimento da arte e cultura como campo de trabalho e de produção de experiências significativas para toda a sociedade brasileira. 

A vitória é a mudança simbólica sobre o valor do campo no país. A cultura é tudo isso, é o que perdura como narrativa e fundo do pensamento/afetividade comum para uma coletividade, incluindo também  a cultura do ódio. Sabemos que nos anos seguintes temos o dever de vencer não apenas a figura de Jair Bolsonaro, mas o bolsonarismo como prática cultural.

Essa consciência de que precisamos derrotar o bolsonarismo foi amplamente difundida na campanha de Guilherme Boulos e Luiza Erundina à prefeitura de São Paulo e atuou como uma mensagem mostrando como funciona o próprio processo cultural: não é por passe de mágica nem o avanço de um direito, nem a parada de um retrocesso. Para que uma cultura se estabeleça ou se modifique, leva tempo. 

A campanha de Boulos e Erundina viralizou com uso de tecnologias construídas em torno do diálogo e de uma escuta radical,  valores comuns aos dois candidatos que carregam o afeto e o compromisso social como prática. Essa campanha, assim como os ganhos do campo cultural são um exemplo de virada, que foi literalmente o jargão simbólico escolhido para mover corações e mentes de apoiadores em todo o país em 2020. 

Arte do cartaz do documentário ”Radical” de Gabriel Gallindo e Clarice Lissovsky, que está disponível no youtube da Mídia Ninja.

O documentário ”Radical”, coproduzido pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto e pela Mídia Ninja expõe o arco narrativo da campanha eleitoral, como também as tecnologias de uma campanha fundada alegria, no dialogismo e na escuta radical para a promoção de encontro com o público de interesse. No filme podemos acompanhar as táticas de chamado à participação de público e à tomada de parte de vários artistas e fazedores da cultura que cooperaram para um crescimento exponencial da campanha, que começou com 3% de intenção e finalizou no segundo turno com a chapa Boulos e Erundina, ganhando mais de 40% dos votos da capital paulista. 

Essa campanha não encarou apenas objetivo eleitoreiro centrado na vitória, mas esteve interessada em mover os corações de uma geração e os valores culturais do país, para um projeto de avanço dos direitos sociais. 

Boa parte do trabalho envolvido em gerar visibilidade e taxa de conhecimento de um candidato é serviço expressivo, ligado diretamente às técnicas de comunicação narrativa e audiovisual, aliadas à cultura. Nos últimos anos, temos acompanhado uma série de projetos vitoriosos, ligados a campanhas políticas orgânicas e à participação-chave de fazedores culturais que vem burlando o sistema produtivo eleitoreiro: aliança com as grandes mídias e empreiteiras, contratação de grandes produtoras e marqueteiros como condição para atingir a viabilidade e êxito no sistema eleitoral.

O resultado da campanha Boulos e Erundinal representou um momento de culminância de avanço simbólico e cultural que está operando em muitas campanhas políticas ligadas a setores historicamente apartados dos pleitos eletivos como mulheres, lgbtqis, indígenas, movimento negro, além de coletivos culturais. O que essas campanhas têm em comum são as técnicas de democratização dos meios e modos de se fazer mobilização, o investimento em ciclos de formação e da própria campanha como processo de formação para a ocupação e reformulação dos espaços de decisão e poder do país. Esses movimentos que evocam metodologias de escuta e convívio com a diversidade para o reconhecimento de que a maior operação desejável passa por uma mudança na cultura política e acontece pela participação ativa de artistas, ativistas, comunicadores, movimentos sociais e agentes culturais.

Boulos  toma a defesa da massa de trabalhadores sem teto, nicho que sofre tanto ou mais  preconceito que os trabalhadores da cultura. A genialidade da campanha foi assumir “a alegria como a prova dos nove” como diria Oswald de Andrade no Manifesto Antropófago’’’, ou seja, de devorar e deglutir os clichês socialmente construídos para apartar sua figura, rebocada com a fissura de radical e invasor de propriedade privada, devido a sua liderança junto ao MTST.

 Ao invés de tentar apagar esse perfil de luta de Guilherme, o investimento da campanha foi na alegria, na ironia e principalmente no cuidado da escuta que sim, foi radical, foi na raiz da audição das comunidades e periferias paulistas onde passou conversando e “invadindo a casa das pessoas”, convidando para o espaço íntimo de sua casa, construindo um sentido de pertencimento que foi motor para todo o país sentisse que dá para mudar, dá para acreditar na política. Essa campanha, devido a toda a conjunção dos tempos e atores, culminou em um processo educativo do próprio caráter dinâmico da cultura.

A aprovação das leis culturais Aldir Blanc 2 e Paulo Gustavo em 05/07 foi também um processo de culminância. Espero que após os ciclos de vitórias políticas e simbólicas do ano de 2020 iniciado pela aprovação da Lei Aldir Blanc, que essa aprovação dê mais motivo para que o Movimento Social das Culturas se organize com tudo para ocupar mais e mais os espaços decisivos e as campanhas para a mudança simbólica e material e os avanços sócio-culturais para a população brasileira.