Os Daniels apresentam de uma maneira nova o conceito de multiverso para narrar a história de uma família migrante chinesa que vive nos Estados Unidos. Evelyn e Waymond enfrentam uma crise conjugal e a dificuldade de acolher a filha Joy e sua relação com a namorada, enquanto a lavanderia que administram vive à beira da falência

Foto: Divulgação

Por Dione Afonso

Atenção: o texto pode conter spoilers

Segundo os The Daniels, os diretores americanos Daniel Kwan e Daniel Scheinert, Tudo em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo é uma história que estava em desenvolvimento há 12 anos. A dupla de cineastas é responsável pela boa obra Um Cadáver para Sobreviver de 2016 com Paul Dano e Daniel Radcliffe. Lançado nos Estados Unidos em abril, o longa é aclamado pela crítica considerado o melhor trabalho de 2022. No Brasil, filme chegou aos cinemas na segunda quinzena de junho e as opiniões continuam afirmando que o filme pode se tornar a maior aposta para o Oscar 2023 

Completamente “fora da caixa”, Tudo em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo extrapola limites conceituais e entrega, literalmente, tudo. Tudo o que há, vive e existe em todo lugar, respirando, acontecendo, existindo ao mesmo tempo. Os Daniels apresentam a história de uma família chinesa imigrantes nos Estados Unidos. A matriarca Evelyn, vivida pela Michelle Yeoh é quem protagoniza a narrativa. Evelyn se revela aquela mulher cansada da vida, que junto do marido Waymond, vivido pelo ator vietnamita Ke Huy Quan, administra uma lavanderia que está à beira da falência, a família tenta lidar com as dificuldades migratórias, dificuldades na língua e os preconceitos que assistem todos os dias. Entediada com o casamento, desinteressada pelo marido, Evelyn vive fugindo da filha Joy, vivida por Stephanie Hsu, que vive uma relação LGBT e que nunca consegue a acolhida da mãe e ainda tem de lidar com um pai ranzinza, que não consegue abraçar a nova geração com seus avanços e opções de vida. O filme traz tudo isso e ainda apresenta o multiverso como algo muito mais perto de nós. Algo bem diferente do que o que os filmes de heróis nos trouxeram.

É sobre multiverso, mas não só

É sobre família também. Sobre família e suas relações. Relações entre o casal, entre os filhos, e na sociedade também. É literalmente sobre tudo, em todo lugar e ao mesmo tempo. O longa apresenta a vida de uma família que vive em conflito no qual a filha se distancia da mãe, sente-se abandonada e esquecida pela família por não entenderem suas escolhas e o casal perde o interesse entre eles. O casamento não caminha mais e os sufocos do trabalho, a situação da Receita Federal Americana toma conta de um espaço que deveria ter sido usado para o diálogo e o encontro entre eles. Como que o multiverso entra aqui? Simples. Mas não tão simples assim. O multiverso pode ser lido, neste filme, de muitos pontos de vista. Um deles é o de encarar esse conceito como um recurso de fuga ou de libertação. De enfrentamento ou de decepção. Fuga porque Evelyn, Joy e Waymond preferem se esconder a enfrentar o que os incomoda. Evelyn foge se atolando no trabalho; Joy, como toda adolescente de sua idade, em sua rebeldia e Waymond, cansado daquela vida, pede o divórcio. E ao mesmo tempo isso pode se tornar uma libertação. O roteiro do Daniels é perfeito, redondo, inteiro e com diálogos emocionantes que nos fazem rir e chorar numa mesma cena. O multiverso, mesmo sendo um recurso da ficção- científica, é abordado aqui como um instrumento confuso, real e muito concreto. Os cineastas não temem beirar o ridículo e fazer do desconexo algo que se conecta, escrupulosamente à nossa existência. Se em Doutor Estranho no Multiverso da Loucura (2022, Sam Raimi) eu poderia existir numa realidade de tinta guache, porque que eu também não poderia existir numa realidade onde eu teria dedos de salsinha? Ou ainda, sermos bonecos de fantoche para as crianças baterem com seus bastões? Não é só sobre o multiverso, mas é sobre cada um de nós nos perguntarmos quem nós teríamos sido, caso não tivéssemos optado pela vida que temos hoje? Se eu não tivesse me casado, quem eu seria hoje? Se eu não tivesse viajado pra outro país, quem eu seria hoje? Se eu não tivesse me formado, onde eu estaria hoje? As múltiplas possibilidades de quem eu teria sido e se eu teria sido mais feliz ou não, é o que o multiverso dos Daniels nos apresenta em Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo.

É sobre família, mas não só

É sobre perdão também. Para falar de multiverso, os diretores recorreram à clássica jornada do herói. Para isso, temos a definição de uma ameaça global e de um vilão. O vilão é Joy, a filha – de outra dimensão multiversal – que, não compreendida pela mãe, decide aniquilar todas as suas versões de todos os universos. Uma versão paralela de Waymond invade a realidade de Evelyn afim de recrutá-la para salvar o multiverso. Ao mesmo tempo que a jornada do herói nos entrega lutas perfeitamente coreografadas, embates emocionantes, diálogos muito bem desenvolvidos, Evelyn percebe que outras vidas ela teria tido se não tivesse optado pela a que vive hoje. Por um instante, ela percebe que teria sido feliz, por exemplo, se não tivesse saído de casa e casado e constituído uma família. Contudo, não é só sobre família, mas é sobre se autoperdoar também. É sobre aprender a viver aproveitando cada instante da vida. É sobre perdoar a filha e acolhê-la na diversidade e na importância que ela ocupa nesse mundo. O multiverso, nesse caso, para dar conta da ameaça que o coloca em estado de possível destruição, é uma porta aberta afim de nos aperfeiçoarmos e descobrir que outras habilidades nós podemos adquirir para melhorar nossa condição de vida. Assim como Evelyn se aprimora na medida que visita suas outras versões em outras realidades, ela nos mostra que nós também podemos nos aprimorar, quer dizer, diante do novo, de algo diferente que surge em nosso caminho, nós também podemos abraçar com respeito e acolhimento esse novo. Por exemplo, quando Joy e Debbie são apresentadas como namoradas para o pai de Evelyn e, este acolhe a nova situação com um sorriso no rosto.

Apostas para o Oscar?

Afirmar que Tudo em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo é um filme de Oscar não é uma assertiva muito positiva de se dizer. Todo filme é digno de Oscar. Toda produção do audiovisual merece seu reconhecimento e admiração, pois todo filme tem uma história pra contar e pode influenciar vidas de diferentes aspectos. O que é significativo apontar aqui é que o trabalho dos Daniels foi algo feito com baixo orçamento pelos estúdios da A24, com um elenco incomum, e, que mesmo assim, tornou-se grandioso nas telas. Um filme que, literalmente, está ganhando o mundo de boca a boca, sua divulgação não é algo tão grande assim. No Rotten Tomatoes, a obra possui 95% de aprovação dos críticos e 89% do público; o IMDb deu 4 de 5 estrelas para o filme. Se o Oscar pretende inovar, de fato, como anda proclamando entre os membros de sua Academia, Tudo em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo é a chance de mostrar essa inovação. E se vale aqui uma aposta: o longa pode ser indicado a Melhor Filme; Melhor Roteiro Original; Melhor Direção; Melhor Som e montagem; Melhor Fotografia; Melhor Figurino; Melhores Efeitos Especiais e ainda arriscaria a papeis de melhores coadjuvantes para Stephanie Hsu e Ke Huy Quan, que teve sua estreia como ator em 1984 com Indiana Jones e o Templo da Perdição quando tinha 13 anos. O ator já havia desistido da profissão de ator quando foi convidado pelos Daniels. Enfim, todo o filme transmite para nós uma lição muito relevante diante dos tempos modernos de hoje e a vida corrida que socialmente levamos: aquele que luta vivendo de aparências, escondendo quem é, de fato, ou, maquiando suas fraquezas, tenta se sobrecarregar no trabalho ou se afunda numa solidão sem fim. Enquanto isso, a vida passa, os filhos crescem, os amigos vão e vem. Não dá pra dar conta de tudo em todo lugar e ao mesmo tempo. Tente dar conta de quem você é e de quem está ao seu lado nessa vida.