Imagem: “Sereia-me”

Por Amanda Olbel / @planetafoda

Thia Sguoti  é artista plástica e performer, não-binarista, e possui uma conexão fortíssima com o elemento água e o universo fantástico. Isso se reflete em seu trabalho, onde representa as imagens hibridas entre os mundos do real e do imaginário mitológico, fazendo alusões com sentimentos de pertencimento social e as dificuldades de um corpo LGBTQIAP+, através de autorretratos.

A artista se considera alguém que gosta de buscar soluções a partir de suas próprias criações, isso desde criança. Se não tinha o dinheiro para investir em um estojo, um brinquedo, uma roupa, ela mesma inventava uma forma de materializar aquilo. O mesmo foi com sua primeira cauda de sereia, feita em látex, que a princípio eram encontradas somente em sites estrangeiros para comprar por preços exorbitantes.

“Eu pensava, ‘nunca vou conseguir comprar uma para mim, então eu mesma vou fazer’. E assim eu executei, num dos meus maiores trabalhos que me rende muito até hoje. […] Me considero uma pessoa meio multifacetada, quero fazer um pouco de tudo, então não me contento só com o corpo: quero fazer desenho, pintura, vídeo… e gosto de explorar todas as possibilidades do meio artístico”

A Sereia, como qualquer pessoa que tiver acesso ao trabalho de Sguoti, pode perceber que é protagonista em suas obras, e diz se sentir até “doente” quando tenta fazer algo sem a presença dessas figuras fantásticas. Já investigou o porquê de ter essa ligação espiritual afetiva, cheia de fascinação, e acredita em ser pelo fato de também se apresentarem como metáfora – e símbolo -, para uma questão de identidade, transgeneridade, e até possivelmente como uma transespécie, como podemos ver em sua série de fotografias “Transições”.

Imagem: Arquivo pessoal

Faz citações ao conto da “Pequena sereia”, em que a personagem deseja conhecer um outro mundo, mas tem medo de descobrirem a verdade sobre ela, e de acordo com a artista, isso conversa muito com as identidades trangeneras, até por essas lendas serem contadas de forma pejorativa.

“O popular da sereia é conhecido pelo que se tornou popular delas dessa forma pejorativa, como acontece com qualquer LGBT, quando falam da gente sem ter propriedade. Vemos tanta coisa falando a respeito de nós, mas não são pessoas como nós falando da gente. Acho que é daí minha conexão com elas”.

A sua fascinação pela inversão da hibridez da sereia, é um tanto análoga a do artista Renè Magritte, um dos primeiros a representá-las com a cabeça de peixe e as pernas de mulher. Lógico que não tiveram esse contato, mas acredita que a sacada possa ter sido a mesma, como exemplo em sua pintura “Cara de Trans”. E quando ocorre essa mudança na figuração da quimera, surge o questionamento:  ela continua sendo uma sereia? Se a resposta for negativa, o porque disso? Por ter se tornado feia? Partindo desse pressuposto, o que é então Beleza? O que é Grotesco?

Imagem: “Cara de Trans”

Quando começou a fazer essas inversões, a artista também esbarrou em pesquisas sobre espécies de peixe e pássaros que nascem inteiramente fêmeas ou macho e passam por uma mudança de sexo. E o que é muito interessante do meio animal é que não tem o dimorfismo sexual, ou seja, externamente continuam sendo a mesma coisa. Não se vê tanta diferença. Precisa-se até de um especialista para conseguir designar e descobrir o sexo do animal.

“O que ilustra mais ainda de que o gênero não existe e é alguma coisa humana, ou pelo menos não precisa ser regrado do jeito que é:  o gênero também é arte. É uma ferramenta incrível de expressão de personalidade e corporação. E não tem que estar relacionado e associado ao seu sistema reprodutor. Os animais fazem essa dinâmica, mas nada relacionado a gênero, a cortejo ou coisas assim. Eles têm ouros métodos da maneira deles que vai além da nossa compreensão. Então foi uma maneira de fazer alusão às identidades e fluidez de expressão de gênero e corporeidade”.

Imagem: “Transições”

No começo de suas pesquisas sentia uma necessidade de falar sobre saúde mental, e inconsciente, com bases de pensamento freudiano. E de uns tempos para cá vem aderindo pensamentos mais exotéricos. Revela ter durante muito tempo, romantizado transtornos de personalidade que não tinha, mas foi levada a crer que sim. Somente após, foi entender que isso era um reflexo de sua identidade não binária sendo incompreendida, permitindo com que se olhasse de maneira muito mais cuidadosa para si mesma. Logo, seus trabalhos foram ressignificados a partir desse momento.

“Me senti como se tivesse sendo uma expectadora da minha própria obra, mesmo tendo eu mesma gerido ela. De qualquer forma me senti no lugar do público. Num espaço de público –autor.”

A poética de Thia permeia o que é presente no dia a dia; questões na pauta de gênero e identidade, como formas disruptivas de existir nesse mundo fora dos padrões de beleza. Passando um pouco pelo que é ou não considera belo, se deslocando do sistema hétero-cis-branco-normativo, que nos impossibilita de acessarmos a verdadeira essência de praticamente tudo.

“Não diria que ela mudou, mas foi se redescobrindo. Acredito que a poética de um artista caminha muito com a própria vida e biografia da pessoa. Quando comecei meus primeiros trabalhos autorais, usei minha maior fonte de inspiração e conhecimento, que seria minha própria vida. Acho que explorando esses caminhos posso ser mais fiel ao que eu quero passar; parece que se estou em cena fico muito mais satisfeita com meu trabalho. É uma coisa até meio Frida Kahlo”.

Essa ligação com os seres da água tem a ver com um inconsciente profundo e de todas as propriedades simbólicas que ela tem como um elemento que compõe quase 80% do nosso corpo.   E até a água salgada que limpa e energiza. A água pode ser esse lugar de encontro e intimidade. E a série do chuveiro, por gostar muito de se autor retratar, surgiu de forma intuitiva, por considerar essa relação do banho com a água um momento ritualístico, nesse espaço de dissolução de si mesmo, com a possibilidade de regeneração.

Imagem: MasQUEERada

Imagem: MasQUEERada

Percebemos também uma presença da cor vermelha com uma certa preferência nas pinturas e fotografias da artista. Seja na composição geral, em que ela ocupe o quadro todo, seja por um detalhe pequeno no batom.

[Pergunta]: Quais suas intenções ao fazer uso dessa paleta?

[Resposta]: “O vermelho para mim, como boa aquariana, vem de um desejo de sempre tentar trazer uma versão alternativa de tudo, assim como nas sereias. E quando a gente pensa nelas, logo vem o mar azul, mas decidi que as minhas seriam de um mar vermelho. Acho que é uma cor muito dual, e acho que esse dualismo me interessa muito. Que é uma cor que pode remeter paixão e perigo, sensualidade ou tensão. Vida ou morte. Eu gosto muito dessa dualidade.

Em outros sentidos, como na moda por exemplo, o vermelho é um ponto que na composição da roupa, se torna uma liga. Engraçado como algo monocromático fica tão bem ao lado de um vermelho. E também trabalha bem com outras cores com uma paleta, como nos meus trabalhos, que é mais desbotada e terrosa, até um pouco mais clara. De qualquer forma, ele tem uma vibração que me interessa”.

A série da MasQueerada é um retrato artístico decorrente da pandemia, que muitos artistas compartilharam do sentimento urgente em falar sobre. Durante esse período, Sguoti começou a estudar mais sobre gênero e identidade e junto a isso, ter algumas experiências em relação aso uso obrigatório da máscara. Situações como ir ao mercado ou aos correios, o uso da máscara provocava uma leitura diferente a cada momento de sua identidade.

“Às vezes, que eu não estava afim de me arrumar e colocava um moletom que não sugere nada, a máscara (por obrigação e cuidado), e meus cabelos soltos, – que acredito que como estão grandes, tenha uma influência na leitura da minha identidade. Por esse elemento da máscara esconder praticamente 50% da nossa face, percebia as pessoas me chamando de “ela” com naturalidade.  E para uma pessoa trans não binaria, a gente pode estar com todos os artifícios que a gente espera que vá gerar a leitura certa da nossa identidade, no caso de uma feminina. Mas só pelo fato desse olhar escaneador da sociedade perceber um pelinho no nosso rosto que seria um resquício de barba, vai ignorar tudo para se direcionar a gente de acordo com o gênero que ela assimila a barba (que seria o masculino). Então percebi o como a máscara meio que até de certa foram estava protegendo a gente porque escondia essa parte do rosto”

Imagem de Fishy (vídeo/cor 4’35’’ 2019)

Por conta de no mesmo período estar estudando Buttler, Foucault e Lacan, nessas suas leituras esbarrou com o conceito de “Mascarada”, principalmente a versão lacaniana, bem literal nesse momento em que estamos usando máscaras em ordem mundial.

Logo, se sentiu inspirada para desenvolver aquarelas sobre o papel, com parte do rosto de pessoas de seu convívio, focado em trans masculinas, trans femininas e não binarias, que foram importantíssimas para o meu processo de descoberta.

Ressalva ainda que o projeto não se encontra finalizado, e no presente momento está em fase de estudo. As aquarelas serviram como protótipo, e agora está trazendo para a materialidade do objeto através de máscaras de pano, saindo assim do bidimensional da pintura e se transformando em objeto, que pode ser lido e ativado.

“O fato de ver um objeto de arte vai despertar a vontade de experimentar, ver como fica, e isso pode gerar reações cômicas, vestir um rosto que não é seu. E pruma pessoa que não teve acesso prévio ao conteúdo do tralho, vai se perguntar de quem é o rosto. Isso entranha nas questões de passibilidade com pessoas trans, e enfatiza o conceito de mascarada. Que seria essa performatividade que a gente tem que fazer: passar uma imagem e não sofrer uma retaliação. Desses rostos, alguns tem uma passibilidade grande, outros não. E eu quero que as pessoas pensem de quem são as pessoas que usam essas máscaras diariamente, mesmo antes da pandemia, para se proteger de uma lgbtfobia que nos mata há anos”.

Imagem Sem Título

Thiago ‘Thia’ Sguoti vive e trabalha em São Paulo, e é formada em licenciatura em Artes Visuais pelas Faculdades Metropolitanas Unidas. Já participou de exposições coletivas e individuais como 69º Salão de Abril e o 25º SAV, e o MUTHA primeiro Museu Transgênero de História e Arte do Brasil. Há um ano faz parte de um dos grupos de acompanhamento de artistas do Ateliê397.

Para acompanhar seu trabalho siga o perfil @Sguoti, onde compartilha fotos pessoais e de suas obras. E para os próximos #ArtistasFOdAs, nosso perfil @planetafoda, frente de mobilização LGBTQIAP+ da Mídia NINJA.

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