“Pássaro sem rumo: Uma Amazônia chamada Genésio”, que será lançado terça, mergulha leitor na trama que chamou a atenção do mundo

Por Leandro Chaves

Já era noite quando o velho Darli Alves, o filho Darcy e o pistoleiro Serginho se reuniram, em 21 de dezembro de 1988, em uma mesa na varanda da Fazenda Paraná, em Xapuri, interior do Acre, para acertar os últimos detalhes do assassinato do líder seringueiro Chico Mendes, planejado para o dia seguinte. O que os homens não sabiam é que, deitado em uma cama no quarto ao lado da área, estava um menino de 13 anos a ouvir toda a conversa. O jovem peão de fazenda Genésio Ferreira da Silva nem desconfiava que testemunhara a trama da trágica emboscada cujos tiros ecoaram mundo afora. A partir daí, sua vida mudaria para sempre. Dois anos depois, o menino se tornaria peça-chave na condenação e prisão dos assassinos do ambientalista. E ele conta todos os detalhes dessa história no livro “Pássaro sem rumo: Uma Amazônia chamada Genésio”, que será lançado terça-feira, 19, às 16h, na Livraria Paim, com a presença do autor, que participará de um debate sobre a obra.

A ação é promovida pelo Comitê Chico Mendes e Prefeitura de Rio Branco, por meio da Fundação Garibaldi Brasil (FGB), e tem o apoio do Governo do Estado. O lançamento é parte das comemorações dos 135 anos de Rio Branco e da Semana Chico Mendes, que começou no dia 15, data de nascimento do serigueiro, e vai até o 22, aniversário de sua morte. Editado pelo Instituto Vladimir Herzog, o livro foi organizado pelo jornalista acreano Elson Martins, que acompanhou de perto, trabalhando no jornal alternativo O Varadouro, entre outros veículos locais, os conflitos por terra que vitimaram Chico Mendes e outros líderes rurais da região, como Ivair Higino e Wilson Pinheiro. A obra foi criada a partir de 365 páginas de manuscritos feitos por Genésio a partir de 2002, quando tinha 27 anos.

Muita coisa aconteceu na vida do jovem entre o assassinato de Chico Mendes e a entrega dos manuscritos para o jornalista. E é sobre esses 14 anos que o autor se debruça no livro de 240 páginas. Não sem antes passar brevemente pela sua infância simples, típica dos seringais, quando era criado pela mãe e, após os sete anos, pela irmã, Natália, casada com Oloci Alves, filho do mandante Darli e do assassino Darcy. E é aqui que começa sua história com os membros da família que, anos depois, ele ajudaria a colocar atrás das grades. “Este livro foi escrito com a minha real história de vida. Os textos compreendem crônicas reais e algumas tentativas de crítica social.

Inclui também poesia, medo, fuga, solidão, alcoolismo, amor e paixão”, introduz. “Não tive infância. Minha vida sempre foi uma complicação tanto para mim como para quem me cerca”, lembra o autor, hoje com 42 anos. Para Martins, que escreve a introdução da obra, “Genésio prova com este livro que não foi um menino qualquer pinçado das turbulências amazônicas. Mesmo com os estudos interrompidos na sexta série do ensino fundamental, consegue dar pistas confiáveis sobre o imaginário dos povos da Floresta Amazônica. Na forma como descreve suas angústias e medos, revela sentimentos existencialistas de fazer inveja a pensadores consagrados”.

O todo poderoso
São necessárias poucas páginas para Genésio da Silva mergulhar o leitor em seu atormentado universo nada infantil na pequena Xapuri dos anos de 1980. Segundo o autor, em seringal a infância terminava aos sete anos. E foi justamente com essa idade que ele foi morar com a irmã na Fazenda Paraná, da família Alves, para ajudá-la a cuidar do sobrinho, neto de Darli. Genésio, que nascera na floresta, agora estava fascinado com a vida de peão: os bois e cavalos, o berrante, os geradores de energia elétrica e as represas.

Mas nem tudo era pasto no seio da família Alves. As violências domésticas sofridas por Natália – “o dia mais triste da minha vida, até aquele momento”, escreveu, após presenciar um dos espancamentos sofridos pela irmã -, a forma com que era tratado por uma das quatro mulheres de Darli, Dona Natalina, e o assassinato de dois amigos, Zeca e Raimundo, supostamente a mando do fazendeiro, tiveram forte impacto no amadurecimento precoce do pequeno Genésio, que, aos 13 anos, já andava armado com um revolver calibre 22, bebia cerveja, fumava cigarros e frequentava bares e prostíbulos na pacata cidade.

A lei que proibia menores de 18 anos de frequentar botecos e bordeis não valia para Genésio se ele estivesse com os filhos e peões do “todo poderoso” Darli, que recebia em sua fazenda o prefeito da cidade, Vanderlei Viana, advogados, sócio de jornal e representantes barras-pesadas da beligerante União Democrática Ruralista (UDR). “O Darli é um sujeito que não aceita perder para ninguém e não tem o discertimento de resolver um problema com prudência e raciocínio. Só a proposta dele vale; a dos outros é abuso. Por ter um nome conhecido na região ele se achava no direito de ultrapassar todos os limites. Àquelas pessoas que precisavam trabalhar para sustentar sua família, na hora de receber, ele pagava só a metade. O trabalhador ia embora sem falar nada, porque se alguém falasse alguma coisa que ele não gostasse, ele mandava bater ou então dava um fim na vida de quem dissesse que ele era feio ou bonito”, conta Genésio. “Agora com os pistoleiros ele acertava tudo certinho, sem faltar um centavo, porque tinha medo tanto dos pistoleiros como dos filhos também matá-lo, caso o combinado não fosse cumprido”, continua o ex-peão, ao lembrar do assassinato de dois estudantes bolivianos, em julho de 1988. Segundo o autor, eles supostamente foram mortos por Darcy e Serginho (os mesmos que emboscaram Chico Mendes), sem a devida atenção da polícia.

A ditadura do boi
É nesse cenário de mandos e desmandos que brotou o plano para tirar a vida de Chico, uma liderança comunitária conhecida internacionalmente por defender o fim do desmatamento e da expulsão das famílias que, há gerações, viviam do extrativismo. Essas expulsões, quase sempre violentes, se deram por parte dos novos donos das terras, antes pertencentes aos seringalistas, que, falidos, venderam suas propriedades a preço de banana por intermédio do Banco da Amazônia, que nasceu na 2a Guerra com o nome de Banco da Borracha. O ambientalista e sindicalista representava uma ameaça aos interesses da política vigente no período – e ainda atual na Amazônia de hoje: o desenvolvimento por meio da pecuária, a partir de uma série de incentivos fiscais e infraestruturais iniciados nos anos 70, na ditadura.

Com isso, segundo Elson Martins, em menos de uma década grupos do Sul e Centro-Oeste, entre outros, possuíam 1/3 das terras do Acre. “Assim, pecuaristas, grileiros e agenciadores que vinham de outras experiências em diferentes áreas de colonização do país começaram a aplicar no Estado os mesmos procedimentos ilegais e violentos que deram certo no Sul, Sudeste, Nordeste e Centro-Oeste: grilagem de terras, expulsão violenta das famílias, aliciamento de policiais e imprensa. Foi esse o cenário que, ao encerrar seu governo, em 1975, Francisco Wanderley Dantas entregou ao sucessor Geraldo Gurgel de Mesquita: o Acre em poder dos fazendeiros recém-chegados e dos poderosos simpatizantes locais”.

Chico entrou na mira de Darli quando passou a liderar a insurgência das comunidades do Seringal Cachoeira por meio de empates. Homens, mulheres e crianças arriscavam suas vidas ao se posicionarem na frente dos tratores e motosserras para frear o desmatamento. Mas o ambientalista foi além. Mesmo ameçado de morte, investigou os “rastros de sangue” deixados pelo fazendeiro desde Umuarama, interior do Paraná, e descobriu uma ordem de prisão não cumprida. O documento foi entregue à Polícia Federal, na capital acreana. No livro, Genésio explica que “tudo começou por aí. Chico mexeu em casa de marimbondos. A rede criminosa montada em Rio Branco e Xapuri advertiu o fazendeiro [de que o seringueiro havia descoberto o mandado de prisão]. Quando Darli soube ficou com medo do mesmo modo como ficou furioso. Dez dias depois, o crime foi consumado”.

Vale tudo em Xapuri

“E aí, já está tudo pronto para dar fim na vida do Chico? A vaca já está amarrada e o vinho no barracão para nós comemorarmos a morte daquele infeliz”, teria dito Darli Alves durante a reunião com Darcy e o pistoleiro Serginho, 24 horas antes do crime. Bastou uma fresta na parede do quarto ao lado, no qual Genésio repousava, para que ele ouvisse toda a conversa que mudaria sua vida. Dias antes, o jovem Darcy, com quem o menino sempre teve boas relações, avisou que assassinaria o seringueiro, como conta o autor, no livro. E assim, por volta das 19h do dia 22 de dezembro, enquanto Xapuri e o resto do país finalmente descobriam quem havia matado a personagem Odete Roitman no último capítulo da novela “Vale Tudo”, da Globo, um tiro de escopeta acertava Chico Mendes. Diferentemente da novela, o assassinato no Vale Tudo de Xapuri não era um completo mistério. Todas as atenções logo se voltaram para Darli, que fugiu, mas se entregou tempo depois. Darcy foi capturado na noite do crime, na estrada entre Senador Guiomard e capital.

Genésio e os homens de Darli foram detidos enquanto suspeitos e pressionados a darem informações que contribuíssem com as investigações e a captura do fazendeiro. O menino ouviu demais. E coube a ele, após longo dilema, contar tudo o que sabia. No bang bang amazônico, dedurar peixe grande é pedir para ter a cabeça posta a prêmio, inclusive dentro da própria polícia. Com Genésio não foi diferente. Mas ele sobreviveu graças à ajuda de Elson Martins e Zuenir Ventura, outro experiente repórter que veio ao Acre em 1989 para escrever sobre os conflitos por terra na Amazônia para o Jornal do Brasil. “Para proteger Genésio, o jornalista praticamente sequestrou o menino e o levou para o Rio de Janeiro”, comenta Elson Martins, na apresentação de “Pássaro sem rumo”.

Zuenir confirma tudo no livro “Chico Mendes: Crime e Castigo”, de 2003, que reúne ainda as reportagens sobre o caso, que, na época, lhe renderam o Prêmio Esso de Jornalismo. Escreve também o prefácio do livro de Genésio. “Um belo dia, cheguei à minha casa com um adolescente e disse: Aqui está o mais novo membro da família. Desprotegido e vulnerável em meio a um clima de guerra entre fazendeiros e seringueiros, ia acontecer com ele o que acontecera com Chico: seria assassinado. Questão de tempo”.

Julgamento do século
Finalmente, em 1990, chega o dia do “julgamento do século”, no qual o depoimento de mais de duas horas de duração feito pelo jovem foi decisivo para colocar o ex-patrão Darli e o amigo Darcy Alves atrás das grades por 19 anos. Tudo isso aos olhos do mundo. “Voltei [do Rio de Janeiro] à minha terra natal para fazer justiça em nome de todos os seringueiros e em nome de tudo aquilo que Chico Mendes fazia por aquela terra e por todo o povo da floresta, disse Genésio. Passada a condenação, o menino, então com 15 anos, voltou ao Rio de Janeiro com Zuenir Ventura e passou a viver e estudar, ao longo da juventude, em uma série de cidades, como Goiânia, Belo Horizonte, Porto Alegre e Marabá. Ficou sob sua tutela até os 21 anos, quando pôde movimentar sozinho todo o dinheiro que ganhou com direitos por ter se tornado personagem do filme “Amazônia em Chamas”, da Warner Brothers, sobre a história de Chico Mendes. Do dinheiro, não tirou o proveito esperado – posava de rico nas farras, em Marabá.

Voltou para sua terra, onde encontrou os fantasmas do passado. Caiu no alcoolismo e se envolveu em algumas confusões. O livro, que traz alguns dos manuscritos na abertura de seus 12 capítulos, termina de forma muito melancólica e mostra um autor ainda atormentado pelo que viveu. O Instituto Vladimir Herzog não descarta a publicação de uma versão em inglês para que a história de Genésio Ferreira da Silva possa, novamente, ganhar a dimensão que teve há cerca de 30 anos, quando uma fresta na parede do quarto em que descansava, naquele 21 de dezembro, na Fazenda Paraná, puxou-lhe para um turbilhão do qual jamais vai esquecer. “De todas as histórias de vivenciei profissionalmente, a de Genésio é a mais difícil e sofrida de contar”, conclui o tutor Zuenir Ventura.