O combate à fome tem sido um dos pilares anunciados pelo governo recém-eleito. Para tratar o tema, conversamos com a presidenta do Consea no momento da sua extinção, a nutricionista Elisabetta Recine

Foto: ANA Agroecologia

O combate à fome tem sido um dos pilares anunciados pelo governo recém-eleito. No dia primeiro de janeiro foi reativado, por meio da Medida Provisória (MP) 1154/23, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), que havia sido extinto pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. Outras ações e pronunciamentos do Presidente Lula têm seguido esta mesma linha, dando esperança aos setores e estudiosos que tratam há bastante tempo do tema. Nesta semana, o país ficou escandalizado com a situação dos índios Yanomami, comprovando situações extremas de fome no Brasil. Com a pandemia e o desmantelamento das políticas públicas, a agenda tornou- se ainda mais urgente. 

Para tratar o tema, conversamos com a presidenta do Consea no momento da sua extinção, a nutricionista Elisabetta Recine. Doutora em Saúde Pública, ela faz partedo Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutrição da Universidade de Brasília (UnB), onde também integra o corpo docente do Departamento de Nutrição da Faculdade de Ciências da Saúde. É a única cientista brasileira no Painel de Especialistas de Alto Nível do Comitê de Segurança Alimentar Mundial da ONU. Na entrevista, Recine fala sobre a importância da reativação de instâncias e mecanismos de combate à fome no novo governo federal e a necessidade de intensificar o diálogo da sociedade civil com os poderes públicos na retomada das políticas para o setor. Segundo ela, temos experiência suficiente para fazer muito melhor do que foi feito anteriormente quando o Brasil saiu do mapa da fome mundial. 

O primeiro ato de Bolsonaro foi extinguir o Consea e, simbolicamente, também foi o primeiro do Lula reativá-lo. Qual a sua avaliação sobre este tema nos últimos anos?

Quando o ex-presidente assumiu no dia 1° de janeiro de 2019, publicou a primeira Medida Provisória (MP nº 870/2019) com toda a reestruturação ministerial e a extinção do Consea. Este Conselho, desde o início do primeiro governo Lula, estava vinculado à presidência da República como uma instância de assessoramento na agenda da segurança alimentar e nutricional. A Medida Provisória editada por Bolsonaro, desconfigurou também a nossa Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional, aprovada em 2006 no Congresso, e a deixou inoperante. Mas, quando essa MP foi publicada e foi para o Congresso, houve uma grande mobilização, com um significado importantíssimo, reforçando o papel do Consea: propor, monitorar e proteger políticas públicas relacionadas ao direito humano à alimentação adequada. Teve mobilização no Brasil inteiro, abaixo-assinado internacional, banquetaço em todas as capitais, publicações na mídia, audiências públicas etc. Derrubamos a MP na primeira votação, só que o presidente não sancionou e não conseguimos derrubar o veto depois no Congresso. 

A partir do golpe de 2016, as políticas públicas já sofriam restrições muito importantes, como a extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e cortes profundos nos principais programas de segurança alimentar e nutricional. Estruturas foram desmanteladas e equipes desmontadas, e a extinção do Consea foi o marco. Já era previsto, porque tinha uma simbologia política muito grande e um papel importante na estratégia de redução da pobreza, da fome, da valorização da agricultura familiar, da transição agroecológica etc. aquele período, não tínhamos condições de avaliar que pioraria tão rápida e profundamente, mas numa reunião ampliada do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN), em março de 2019, fizemos a convocação de uma Conferência Popular de SAN enquanto um processo permanente de mobilização. Nesse coletivo, estão organizações que faziam parte do Consea e muitas outras e o colegiado de presidentes de Conseas estaduais, porque mesmo com o nacional extinto, não há vinculação hierárquica e efeito cascata. Esses conselhos continuam organizados e ativos. A expectativa era que a Conferência Popular realizasse um encontro nacional em 2020.     

Mas aí veio a pandemia e não foi possível o encontro presencial…

No início, ninguém sabia a dimensão da pandemia, mas focamos na elaboração e agendas para que o governo federal e os governos estaduais tomassem medidas urgentes para proteger o Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA), principalmente nos grupos em situação de maior vulnerabilidade. Lançamos uma agenda de prioridades e continuamos incidindo durante a pandemia e em todas as últimas eleições. Realizamos, em 2021, encontros regionais com os Conseas estaduais e organizações afins para fazer uma balanço da situação, um levantamento de experiências da  sociedade civil e lançar uma agenda de futuro. Realizamos também um tribunal popular contra a fome, pois existem duas ações dentro do Supremo Tribunal Federal (STF) para que o governo tomasse medidas urgentes. O governo federal foi condenado nesse tribunal e anexamos essa sentença nas ações, e, simultaneamente, também fizemos incidências no Congresso, porque parte dos retrocessos foram ações referendadas pelo Parlamento. Lançamos uma carta nas eleições nacionais de 2022 com uma série de prioridades, que também foram encaminhadas à equipe de transição do governo atual. Uma das reivindicações bem-sucedida foi a reinstalação imediata do Consea, na Presidência da República, para assessoramento em relação às estratégias de combate à fome e garantia da alimentação adequada e saudável.

Você citou alguns retrocessos, quais são as expectativas agora com a entrada do Lula, mas com um Congresso desfavorável e uma crise econômica?

De um processo de reconstrução e avanço, porque a ideia não é repetir o passado, muita coisa foi conseguida, mas temos condições de avançar muito mais. Lógico que o cenário não é fácil nem será nada automático ou rápido, e a realidade dos novos gestores é muito séria, seja na recuperação de informações e de processos operacionais, assim como recompor orçamentos. Temos perspectivas promissoras em vários sentidos, como a atualização do valor per capita [das refeições servidas aos estudantes da rede pública de ensino por meio] do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). [A atualização orçamentária do Programa integrou as propostas aprovadas na chamada PEC da Transição]. O aprimoramento do  Bolsa Família e a reinstalação de um ministério para a agricultura familiar, que agora também cumprirá uma missão institucional muito importante, com a ida da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) são igualmente promissores. Estamos na expectativa que, finalmente, o país terá uma Política Nacional de Abastecimento como função pública. 

Tem o retorno do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), que agora se chamará  Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social,  Família e Combate à Fome. Nele estão previstas a Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, que também havia sido extinta, que será responsável pelos programas de cisternas, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), e demais ações de promoção da alimentação saudável, agricultura urbana, educação alimentar e nutricional, entre outras. Há também a Secretaria Extraordinária de Combate à Fome e à Pobreza, responsável por toda a articulação e implementação do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan). Com essa secretaria, será possível retomar a articulação interfederativa para fortalecimento das Câmaras Intersetoriais, conselhos locais e instâncias bi e tripartites para negociar orçamentos, responsabilidades, compromissos etc. Na Secretaria Extraordinária também está a Câmara Interministerial de SAN, porque o Sistema tem dois grandes pilares: de controle e participação social, representado pelo Consea, e o da intersetorialidade, que articula os setores de governo. 

As políticas públicas nascem nesses canais, que ficaram inativos nos últimos anos. A única reunião desta Câmara [Interministerial] aconteceu em julho de 2021. Então, há uma expectativa de se retomar toda uma articulação intersetorial dentro do governo. Com a reinstalação do Consea, esse processo de interlocução entre governo e sociedade civil vai se intensificar, e vai fortalecer esse diálogo nos outros níveis da federação. Precisamos trabalhar a agenda emergencial e prioritária do governo federal aliada a medidas estruturais e em diálogo com estados e municípios. Essa articulação é imprescindível para gerar o nível de compromisso necessário para erradicar a fome com acesso à alimentação saudável. Mas, as medidas estruturais necessárias, para não ficar só pensando nas emergências, precisam ser pensadas e implementadas paralelamente, para criar um processo que dê sustentabilidade ao fim da fome. No âmbito do Consea, isso vai ser abordado no trabalho cotidiano, mas também vai culminar na 6ª Conferência Nacional de SAN, que deve ocorrer preferencialmente ainda este ano. É a Conferência que  aprova  as prioridades a serem encaminhadas ao governo federal para a elaboração do 3º Plano Nacional de SAN, que deverá ser o grande articulador das estratégias para combater a fome e garantir uma alimentação saudável para todos. As organizações enfrentaram muitos desafios para manter suas equipes e ações e muitas delas inclusive sofreram ameaças e violências. Apesar disso, a sociedade civil hoje está fortalecida, diversa e representativa. Então, entre as prioridades da  6º Conferência está a definição de um processo democrático de renovação do Consea que espelhe esta diversidade e representatividade

Em termos comparativos, em relação a outros países, qual o cenário da fome no país?

Não só por conta da pandemia, mas também pelo aumento da pobreza, a partir de 2014/15, todo o quadro de evolução no mundo, como na América Latina, começou a piorar. Estudos mostram que, praticamente, 80% da população da América Latina pós-pandemia precisa de algum apoio de política social. É um contingente gigantesco de pessoas. Dependendo da região do planeta, há problemas adicionais como  os conflitos, os refugiados etc. Esse é um processo global, mas no Brasil o retrocesso  foi rápido e intenso, como se tivéssemos caído em queda livre. Para além de acabar com a fome, o que não é pouco, a vida das pessoas está desestruturada, com emprego informal ou desemprego, dificuldades de acesso à saúde, assistência social, previdência, educação. A fome é a ponta de um iceberg de uma desestruturação muito ampla. Mas, é importante ter em mente que, nos últimos anos, perdemos resultados, mas não a experiência e a capacidade de refletir sobre como recompor as coisas e avançar. Conseguindo organizar esse primeiro momento e retomando o diálogo  da sociedade civil com o  governo, temos a capacidade de retomar esse caminho, ainda que não seja rápido. Foram geradas, ao longo dos últimos anos, experiências muito virtuosas pela sociedade civil, que podem inspirar ou mesmo se tornar políticas públicas. Por isso, esse diálogo é essencial e urgente.

Como se materializa isso nos territórios e o que é prioritário e urgente de ser feito nesse primeiro momento de retomada?

Concretizar, por exemplo, o aumento per capita da alimentação escolar, porque isso atinge mais de 40 milhões de crianças. Isso é  fundamental, porque as famílias sabem que suas crianças estão tendo uma alimentação saudável. Outra prioridade é revitalizar a área de provimento alimentar, que dá o alívio imediato, revitalizar as redes de restaurantes e cozinhas comunitárias, que foram fundamentais durante a pandemia. Precisamos reforçar e apoiar essas medidas ligadas à entrega de cestas de alimentos, são articulações essenciais entre os governos nacional, estaduais e municipais. Retomar também, imediatamente, o PAA, para que a  agricultura familiar possa reorganizar e retomar a sua produção com um mercado garantido. Isso faz com que mais alimentos saudáveis entrem nas cidades, mas também atua na redução da pobreza e da insegurança alimentar no meio rural. A pesquisa realizada pela  Rede PENSSAN revelou que mais da metade da população está com algum grau de insegurança alimentar. Mostrou que, em termos relativos, a fome e a insegurança alimentar são maiores no meio rural, e que os agricultores familiares sofreram perda de capacidade de produção e escoamento durante a pandemia. Isso intensifica a vulnerabilidade desses grupos. Então, precisamos intensificar rapidamente as ações para que todo o processo da agricultura familiar retome sua capacidade de produção, comercialização e inserção na política pública. Precisamos ampliar a oferta e o acesso aos alimentos saudáveis nas cidades, principalmente nas regiões periféricas. Precisamos também que todas estas medidas tenham também estratégias para alcançar grupos específicos. Uma cesta emergencial de alimentos, por exemplo, não pode ser a mesma para uma comunidade urbana e para uma comunidade quilombola ou indígena. Isso é muito importante, porque não podemos combater a fome desestruturando as formas de viver desses grupos sociais. É fundamental não só preservar, mas também proteger e fomentar as diferentes formas de vida, organizações e valores culturais. A alimentação é uma expressão disso tudo.  O direito humano à alimentação adequada é inexoravelmente vinculado à questão da cidadania e da integridade das pessoas.