Teatro durante a X Marcha pela Vida das Mulheres e pela Agroecologia. Foto Luciano Silveira AS-PTA

A arte e a cultura têm sido utilizadas como ferramenta de transformação na região do agreste paraibano, território marcado por intensa articulação política das entidades de classe e movimentos sociais do campo. Há algumas décadas, esses coletivos passaram a promover ações por meio do Grupo de Teatro Amador do Polo da Borborema, para conscientizar as comunidades de 13 municípios que integram a região de atuação do Polo Sindical. 

Para resgatar o histórico do projeto e falar como são desenvolvidos os trabalhos do grupo, conversamos com Márcia Araújo, dirigente sindical em Lagoa Seca (PB) e representante da Juventude Camponesa do Polo da Borborema. Segundo ela, é visível a reflexão e os resultados práticos a partir das apresentações do Teatro Amador. Na entrevista, ela conta como surgiu a experiência, como se desenvolveu ao longo dos últimos anos e os principais temas abordados pelas encenações, que são baseadas nas realidades locais.

Por que e como surge o Teatro Amador do Polo Borborema?

O Polo já vem há tempos desenvolvendo um trabalho para fortalecer a agricultura familiar, abordando vários temas de interesse das comunidades, e havia a necessidade de um instrumento pedagógico para facilitar a promoção da agroecologia. Então, o teatro surge para tratar temas complexos, como as desigualdades sociais, de uma forma mais suave e dinâmica, buscando que as pessoas assistam e também se sintam parte daquilo. Já desenvolvemos diversas peças para crianças, adultos, homens, mulheres etc, tudo  inspirado na experiência das agricultoras e dos agricultores. A partir da realidade local, são tratados temas como sementes crioulas, plantas medicinais, diversidade sexual, enfrentamento ao agronegócio etc. Em 2007, por exemplo, falamos sobre as desigualdades de gênero para as famílias. O teatro tem sido esse canal. Estamos na 12ª Marcha Pela Vida das Mulheres e Pela Agroecologia e sempre levando para as ruas essas discussões. O objetivo é fazer as pessoas se sentirem naquele personagem e transformarem a sua realidade. É uma forma também de dar  visibilidade ao trabalho das mulheres.

Em 2002, passamos por um processo de formação sobre teatro com o ator e dramaturgo pernambucano Manoel Constantino, e os roteiros e as falas sempre são construídas coletivamente a partir da ação política do Polo da Borborema nas comunidades. Nos reunimos para criar tudo e temos um momento de escuta, principalmente das mulheres, e, a partir disso, vamos desenvolvendo as apresentações. Na pandemia, a gente fez uma live da última Marcha com o tema “Sem cuidados, não há vida”, para ressaltar a sobrecarga de trabalho que as mulheres estão enfrentando nesta pandemia. É importante sempre levar esses conteúdos para as mulheres se inspirarem e mudarem suas realidades. Nossa metodologia é baseada no Teatro do Oprimido, como uma forma de conscientizar e empoderar as pessoas. Percebemos que há uma transformação na vida dessas mulheres e que elas vivenciam vários conflitos, como a questão do machismo, da divisão injusta do trabalho e da violência. As mulheres começam a se perceber, a participar mais e a construir autonomia e liberdade.

Essa oficina de 2002 originou o grupo?

Não, já trabalhávamos com o teatro desde o final dos anos 1990, mas no início dos anos 2000 sentimos que precisávamos nos aperfeiçoar mais para desenvolvermos esse trabalho. Dessa oficina é que passamos a nos identificar como um grupo de teatro, mas existimos há quase 25 anos e em 2012 tivemos outra capacitação com Therezinha Marçal e Cláudio Ferrario, em 2013. Nosso grupo é composto por agricultoras/es, sindicalistas e assessoras/es técnicas/os. Atualmente, estamos com cinco atores fixos e recebemos a contribuição de novos atores e atrizes para compormos  os personagens de uma montagem. O grupo já chegou a ter cerca de dez integrantes. Desde 2002, levamos nossos espetáculos também para a Ciranda da Borborema, que é um trabalho feito com crianças. São os mesmos conteúdos, mas de forma mais leve para incentivar e fortalecer a identidade delas na agricultura. Percebemos mudanças significativas, porque também é uma forma de as crianças  aprenderem e transformarem realidades. Após a vivência, a criança conversa com os seus pais, fala que não pode jogar lixo no chão, por exemplo, porque pode prejudicar a Mãe Terra. São resultados práticos que a gente observa.

Oficina de teatro com jovens da Borborema. Foto Arquivo As-PTA

Tem uma periodicidade e local permanentes de apresentação? 

A Marcha é o espaço onde mais atuamos, que ocorre anualmente desde 2010. No primeiro ano foi sobre a desigualdade entre os homens e as mulheres e, desde então, os temas vão mudando e aumentando o grau de complexidade. Tem todo um processo de formação, no qual são escolhidos os assuntos junto às comunidades, e a Marcha culmina com a apresentação do teatro. Mas, também já nos apresentamos em outros eventos, realizamos místicas,  jogral, teatro de bonecos etc. Participamos de seminários, atividades em outros estados, encontros, como o Encontro Nacional de Agroecologia (ENA), o Encontro Nacional da ASA (Econasa), o Encontro de Diálogos e Convergências, conferências estaduais, como a do Consea. As festas das sementes da paixão também eram palcos constantes de nossas apresentações, mas com a pandemia nossas atividades reduziram. Continuamos fazendo trabalhos, como a live da Marcha a respeito da sobrecarga do trabalho sobre as mulheres na pandemia.  

Existe um local específico do Teatro ou ele está presente em todo o Polo?

O Polo é composto por 13 municípios. Sou de Lagoa Seca, outro parceiro é de Remígio e por aí vai, cada membro mora em uma cidade diferente. Nos encontramos nos momentos em que somos chamados para construir o debate. A cada Marcha, nos encontramos no mês anterior para ensaiarmos, geralmente na sede do Polo e da AS-PTA. Este mês damos início à construção da próxima Marcha, quando definiremos o tema e como vamos aprofundá-lo junto às mulheres. Ainda estamos nos primeiros passos dessa construção, a certeza é que vamos construir mais uma peça da Vida de Margarida.    

Vocês têm registros dessas apresentações em algum trabalho de comunicação?

Temos dois vídeos importantes que gravamos com as peças “Vida de Margarida” e “Zefinha quer casar”. O primeiro conta um pouco a vida das mulheres que vêm sofrendo com o patriarcado que se reproduz. Os vídeos foram baseados em vários depoimentos de mulheres que vinham sendo oprimidas por seus maridos. O primeiro foi  apresentado em mais de 25 espaços. No segundo, Zefinha sonha em casar e estudar, mas, infelizmente, ao casar não tem a liberdade que imaginava. Em 2021, não fomos às ruas, a Marcha aconteceu por meio de uma live, mas o teatro estava lá para nos ajudar a refletir.

Até hoje, devem ter ocorrido cerca de 27 peças adultas e 30 infantis, e as pessoas se veem no conteúdo apresentado. O próprio racismo e a diversidade sexual, que são complexos e cheios de preconceitos em todo lugar, são levados para as ruas e ajudam as pessoas a se aceitarem. Isso é muito importante, traz muito essa reflexão e as pessoas conseguem assimilar e ir se libertando. Em 2019, na 10ª Marcha, tratamos sobre o racismo e construímos a peça a partir da necessidade de Zefinha ter que sair do campo para trabalhar em uma casa na cidade como doméstica. A partir dessa história, pudemos refletir várias violências do racismo. Na volta da Marcha, uma mulher de Lagoa Seca, que era a patroa, pediu para uma das diretoras da peça entregar um envelope para uma agricultora. Depois soubemos que havia dinheiro e um bilhete de desculpas pelos anos que a agricultora  havia trabalhado na casa da mulher sendo mal remunerada. Não é uma coisa imediata, mas um processo que nasce a partir do teatro. Queremos que as pessoas transformem cada vez mais as suas realidades, e vemos muitas mulheres ganhando sua autonomia e liberdade graças a esse trabalho do Polo. O teatro ajuda muito nessa reflexão e conscientização.  

Grupo de Teatro do Polo da Borborema apresentando a Pamonhada na Casa de dona Nenê durante o II EPA. Foto Arquivo AS-PTA

A cultura e a arte também são processos políticos, então?

É muito politizante, porque não é uma coisa do nada, todas as peças são baseadas na vivência das famílias: seus costumes, conflitos etc. Isso é muito libertador e é algo construído coletivamente, todo o Polo vai desenvolvendo essas ações político-pedagógicas. São várias reuniões e processos de formação para levar conteúdos que sensibilizem cada vez mais as pessoas. Tem o trabalho com mulheres, homens, juventude e  crianças, envolve todos da região.  

O teatro é muito vivo e ajuda a gente, porque é uma mão dupla: tanto para mim que estou atuando quanto para as pessoas que estão assistindo. Nós, que somos lideranças e atuamos nos espetáculos, vamos perdendo a timidez e as pessoas que assistem se veem nas experiências das famílias encenadas nas peças. Aprendemos a falar em público, na Marcha chegamos a encenar para 5 mil pessoas e, às vezes, com temas complexos. Quando tratamos do estrupro, por exemplo, foi algo muito forte, difícil de encenar. O gratificante são os resultados depois, vemos muitas pessoas melhorando suas vidas. Buscamos incidir nas  políticas públicas e várias outras ações para ganharmos espaço, visibilidade e diminuirmos a violência. Nos motiva a contribuir com a luta das mulheres.

Qual política pública foi provocada por esse processo do Polo Sindical e do grupo de teatro, por exemplo?

Já tratamos muitos temas polêmicos e que ganharam novos contornos com o teatro: fizemos reflexões sobre a importância das sementes crioulas e a disputa com as sementes distribuídas pelo Estado; a denúncia do agronegócio; o enfrentamento à chegada do fumo no território até a saída da empresa fumicultora da região do Polo. No caso das mulheres, a peça “Vida de Margarida” vem ajudando na transformação de muitas agricultoras, como o desenvolvimento de  estratégias de enfrentamento à violência e a estruturação de redes de acolhimento, com a participação de equipamentos municipais e estadual. Uma luta que estamos travando atualmente é pela  construção de uma delegacia regional de mulheres, porque elas começaram a correr atrás e ter voz. Tem vários exemplos que retratam essa luta do Polo e, esse processo tem contribuído muito para ter uma incidência nas políticas públicas.     

Grupo de Teatro do Polo da Borborema, e a entrevistada Marcia Araujo ao fundo. Foto Luciano Silveira AS-PTA