Atmosfera ficcional da narrativa dos irmãos Duffer oferece metáforas que contribuem para a compreensão dos traumas e fobias. A consciência humana, quando bem estruturada desde a infância é capaz de construir uma sociedade mais empática

Imagem da 4ª temporada de Stranger Things Netflix/Divulgação

Por Dione Afonso

Você já se perguntou o porquê do Mundo Invertido? De onde surgiu o Devorador de Mentes? Demogorgon? Que mistérios rondam o laboratório de onde “veio” a Eleven, personagem de Millie Bobby Brown? Por que Hawkins foi amaldiçoada? Por que os traumas e as mortes são direcionados especificamente aos jovens? Essas perguntas sempre rondaram nossas cabeças desde o primeiro episódio de Stranger Things, exibido no streaming em 15 de julho de 2016. Ambientada nos anos 1980, a história se passa em Indiana, EUA e homenageia a cultura pop da época, com referências desde o cinema, a televisão até os sucessos musicais.

Criada pelos gêmeos Matt e Ross Duffer, norte-americanos, a temporada final (que já teve sua primeira parte lançada) preocupa-se com duas coisas: primeiro, justificar seu passado. Engana-se quem acha que a narrativa se limitará a flashbacks. Não, não. Ela faz mais que isso. A história não volta. Ela segue em frente dando respostas por um passado sombrio, marcado pela rejeição, ignorância, sede de conhecimento, poder ambicioso, trabalhos mal sucedidos, preconceito, bullying. Depois ela se preocupa em dar, no presente, a cada personagem, a sua redenção. Não é uma jornada do herói com seus feitos sobrenaturais e derrotadas dos vilões. Não. Mas é a sua trajetória de vida, sua superação. Seu desapego, novos ciclos de convivência, o amadurecimento, a passagem da adolescência para a juventude, o tempo de descobertas, as novas influências, tanto sociais, como de pessoas que entram e saem de nossas vidas.

Por fim, há também o arcabouço sociopolítico. A série também referência o estilo de vida da época. Indiana é um dos estados mais populosos dos Estados Unidos. Tem forte presença na agropecuária e o solo fértil da região fez o lugar ser ícone na agricultura. As casas são bem construídas, imitando o estilo fazenda de casas do interior. Portanto, assistimos a sistemas políticos, conjunturas internacionais, planos operacionais e de gestão que usam da fraqueza e do momento de dor e desamparo do povo para fortalecer as ideologias que podem reger o mundo. Amparar o outro nos momentos difíceis é dar a eles um ídolo que possam se assegurar, confiar e depositar suas esperanças. Esperanças de um mundo, de um futuro melhor? Depende pra quem… (ATENÇÃO: o texto pode conter spoilers a partir daqui).

Quando a mente é fraca…

Os elementos do horror com suas referências majestosas ao cinema gore de 1980 voltam com tudo na quarta temporada de Stranger Things. Desde de cenas que remontam a O Exorcista (1973), Possessão (1981), A Hora do Pesadelo (1984), Jovens Bruxas (1996), até a referências de O Chamado (2002), A Maldição da Residência Hill (2019). A cidade de Hawkins é definida como lugar amaldiçoada e casa do pesadelo. Toda a perspectiva da série se volta para seu dilema inicial e foca onde o mal pode se instalar e destruir cada sistema e cada pessoa de dentro pra fora: as mentes. Uma mente fraca, ou uma consciência que não teve a chance de se desenvolver pode resultar num ser humano adulto mal formado, que sempre se perde em sua fraqueza e que não seja capaz de se restabelecer. Os dilemas sociais como o racismo impregnado nas estruturas econômicas, o machismo que insiste em dominar o mundo, o preconceito que mata, a homofobia que tenta exterminar o outro que pensa, vive e ama diferente, danificam a formação estrutural humana a ponto de estabelecer na mente humana um trauma irreversível. Enfraquecendo-a e tonando vulnerável para que outros elementos a invadam.

Nisso, a pergunta sobre o Devorador de Mentes, o vilão Vecna nessa temporada, ganha seu sentido narrativo. Os Duffer são consagrados com seus roteiros e criações da ficção de suspense e terror, por isso, em Stranger Things, não é o simples fato de causar medo que vale, mas é definir de onde esse medo vem. Qual a origem do trauma, do medo, do assombro, das forças do mal que invadem o nosso mundo. O Mundo Invertido pode ser uma realidade paralela à nossa, e a maldade que presenciamos hoje na concretude da vida, ser as “coisas estranhas”, que diariamente invadem a nossa ordem social assassinando pessoas, desligitimando valores, ferindo a ética humana e desestabilizando a política. O Mundo Invertido é uma metáfora à psicologia aplicada e à formação integral humanossocial e psicológica.

O vilão Vecna e os vilões anteriores atacam adolescentes e jovens. Uma metáfora que nos leva à reflexão sobre a formação humana e profissional que nossa geração recebe hoje. A consciência humana, em constante processo formativo, bebe, no início da vida (infância e adolescência), dos principais valores humanos: amizade, amor, acolhida, respeito… Nessa etapa da vida, se for uma formação bem estruturada, completa, ética e que respeite a diversidade, o resultado será uma mente bem formada e uma pessoa adulta madura e mais forte. Caso contrário, estaremos vivendo com mentes fragmentadas porque não tiveram um processo inicial formativo humano e integral. Infelizmente, essas pessoas adultas podem estar governando um país, lecionando numa sala de aula, operando num centro cirúrgico, constituindo família…

O mal do mundo real

Talvez, a pergunta que fica é se um dia será possível acabar com o mal pra sempre. Quando a Eleven e seus amigos Will (Noah Schnapp), Mike (Finn Wolfhard), Dustin (Gaten Matarazzo), Lucas (Caleb McLaughlin) e “sua família” Joyce (Winona Ryder) e Hopper (David Harbour) fecharam o portal no laboratório, em Hawkins anos mais tarde, o grupo, agora mais maduro, jovens, descobrem que novos portais são abertos entre as duas realidades. Toda vez que o mal se instaura em nosso mundo, quando uma consciência fragmentada é atacada pelo medo, culpa, pecado pelo passado, erro cometido ou um trauma, a loucura se instala naquela pessoa – que é sempre um jovem – levando à morte.

O último ano da série abre com Hopper preso numa espécie de operação russa onde ele é escravizado e forçado ao trabalho braçal. Lá ele descobre que os russos mantêm um demogorgon preso. Essa simbologia é o que responde até em que ponto um poder ou uma ideologia política consegue dominar uma comunidade, depois um país e depois o mundo. Os maiores líderes de grande poder da história da humanidade se serviram de um momento de fraqueza do povo. Quando os acolhe em “braços quentes e maternais”, os escraviza e os convencem que sua política de governo é a correta e que vai salvar o mundo. Olhe para a narrativa bíblica e veja se não é assim. Olhe para a história das Duas Grandes Guerras e veja se não é assim. Libertar Hopper dos russos é mostrar o lado resistente do povo, o valor da manifestação popular em não alimentar uma estrutura que segrega, mata e aniquila inocentes em favor da purificação de um grupo.

Sem a pretensão em dar uma resposta definitiva à existência do mal no mundo, se olharmos para a obra fictícia dos Duffer, o time que é formado por Max (Sadie Sink), Nancy (Natalie Dyer), Robin (Maya Hawke), Steve (Joe Keery) e Eddie (Joseph Quinn) que, entrando no Mundo Invertido percebem que as forças do mal nos ludibriam, alucinam e nos leva onde quer se não formos capazes de lutar contra. Stranger Things é sobre essa luta constante contra o que é ruim, desonesto, mal, antiético e perverso. É sobre valorizar a boa educação, a conscientização humana, o desenvolvimento de cada pessoa, a educação integral que cuide do corpo e cultiva a mente. A parte final da última temporada chegará em 01 de julho e os jovens de Hawkins terão que lutar contra seus medos, vencer seus erros, superar os traumas e restaurar a ordem social, recuperar a paz e devolver a tranquilidade para suas mentes.