A atuação exitosa do Ciervos Pampas Rugby Club na contenção emocional, no acolhimento social e na formação política de jovens é um exemplo para o esporte latino-americano

Foto: Acervo do Ciervos Pampas

Por Bruna Andrade Irineu*

Quais corpos podem desfrutar dos esportes? Quais corporalidades são expulsas e rechaçadas dos esportes? E por que, apenas há tão pouco tempo, parte do ativismo feminista e LGBTQIAP+ vem se dando conta de que é possível conjugar esporte, política e lutas sociais? Foi com essas indagações que saí de uma das atividades desenvolvidas pelo Ciervos Pampas Rugby Club, sediado na Cidade Autônoma de Buenos Aires, na Argentina.

Ciervos Pampas é o primeiro clube de rugby LGBTQIAP+ na América Latina, criado em 2012, por um grupo de pessoas com desejo de se tornarem jogadores de rugby. Em função de sua identidade ou orientação sexual, essas pessoas haviam sido excluídas de clubes e organizações esportivas ao longo de suas vidas. De sua origem até sua primeira partida, em 2014, foram dois anos. A indisponibilidade e recusas constantes de outras equipes para jogar contra o Ciervos Pampas é um marcador importante em seus 10 anos de existência.

Em 2016, o clube participou pela primeira vez do torneio oficial da União de Rugby de Buenos Aires, tornando-se assim o primeiro clube de diversidade a participar de um torneio oficial de rugby na América Latina e Caribe. Foi neste mesmo ano, que o Ciervos Pampas participou pela primeira vez de uma Marcha do Orgulho, em Buenos Aires. E acompanhando a evolução política do clube, no ano de 2017, ele se institucionaliza tornando-se um clube esportivo de interesse social e comunitário.

Foto: Bruna Irineu

O presidente do Ciervos Pampas e um de seus fundadores, é o brasileiro Caio Varela, cuja trajetória no ativismo vem de longa data, quando foi um dos coordenadores das primeiras Paradas do Orgulho de Brasília/DF, a partir de 1998. Sua vida também se entrelaça com a história das políticas públicas LGBTQIA+ no Brasil, quando se somou ao grupo de formuladores da Programa Brasil sem Homofobia, lançado em 2014, e quando esteve acompanhando a tramitação do Projeto de Lei da Câmara 122/2006, que visava criminalizar a homofobia, enquanto atuou como assessor parlamentar da então senadora Fátima Cleide. Cabe abrir um parêntese para destacar que já neste período, o atual presidente Jair Bolsonaro, na época Deputado Federal, juntamente com Magno Malta, Silas Malafaia, Marco Feliciano, entre outros, nomeavam este projeto como “Mordaça gay” e já espalhavam fake news através de seus gabinetes e redes sociais.

Vivendo em Buenos Aires há 10 anos, Varela nos conta que há três diretrizes que orientam as ações do Ciervos Pampas: “ocupar, resistir e transformar! Nós ocupamos os campos e quadras, resistimos a homolesbotransfobia e transformamos nosso esporte”. De imediato se pode encontrar semelhanças com muitos coletivos de militância LGBTQIAP+, entretanto, basta ir a um encontro ou treinamento do clube para entender o que há de singular e genuíno neste grupo. A conjunção acolhimento psicossocial, formação política e esporte se transborda e explode em esperança quando vemos em quadra cerca de 20 a 30 jovens, além da equipe diretiva e de trabalhadoras da psicologia e serviço social, que desenvolvem um importante papel no clube.

Acompanhei a equipe em uma partida, desde sua saída de Buenos Aires, até uma cidade próxima onde haveria um jogo amistoso. Entre risos, troca de afetos, uma acolhida a quem chegava há pouco no clube e palavras de importante ressignificação do lugar do esporte nas suas vidas, o grupo vai rodando a palavra e afirmando sua pertença coletiva. Ganhar a partida, torna-se a menor das coisas naquele momento. Com meias na cor arco-íris, camisas e shorts em branco, azul e rosa, cores que relembram bandeiras do movimento trans e do LGBTQIAP+, corpos diversos entram em quadra. São de muitas idades, de distintas nacionalidades, de bairros periféricas e escapam ao padrão de corpos lidos como aptos ao esporte. Atrás de suas camisas, cada pessoa escolheu o nome de um/a atleta ou ativista LGBTQIA+ para estampar, entre esses nomes destaco o de Marielle Franco (vereadora carioca assassinada), o de Jean Wyllys (deputado federal exilado em decorrência de ameaças de morte) e o de Tiffany Abreu (jogadora trans que tem protagonizado a luta contra a transfobia no vôlei). A partida se inicia e o contraste com a masculinidade hegemônica da equipe adversária delineia visualmente aquilo que para mim já estava nítido lá dentro do ônibus: corpos diversos têm direito ao esporte!

Na condição de brasileira, lésbica e pesquisadora do campo das políticas públicas, entendo quase nada de rugby, mas não me falta leitura política para compreender que nos roubaram muitas coisas, nos negaram tantas outras e o esporte foi uma delas. Como disse um participante presente na roda de conversa sobre esporte e diversidade, o trabalho do Ciervos Pampas e outras equipes LGBTQIAP+, em qualquer que seja o esporte, é para que as outras gerações possam desfrutar do que nos foi negado.

Converso um pouco com que quem está na arquibancada vendo a partida, um jovem que assistia seu namorado jogar, me explica que na Argentina o rugby está entre os três esportes mais praticados, perdendo para o futebol e talvez para o handebol, porque este é ensinado nas escolas. Aproveito para ganhar lições básicas do esporte, que nasceu na Inglaterra. Com esforço entendo que a bola só pode ser passada para o lado ou para trás, e em nenhuma hipótese para frente, exceto quando se vai chutar. Só se pode derrubar o jogador com a bola, onde o contato físico deve ser feito unicamente da linha do peito para baixo e essa jogada se chama “tackle”. Depois de dois tempos, o jogo é finalizado e as equipes se cumprimentam e socializam entre comidas e bebidas. No retorno do ônibus, em clima de conversa, cada integrante do Ciervos vai sendo convocado por Varela a pensar sobre a importância daquele coletivo no jogo e na vida. Um deles diz que nunca conseguiu um lugar onde fosse aceito para jogar, ou porque “era gordo” ou porque era “muito bicha”, e que, portanto, estar ali saindo daquele jogo com pessoas que se cuidam e se apoiam mutuamente era mágico.

É esse efeito que quero destacar como inovador no ativismo que o Ciervos Pampas desenvolve. Como destaca Caio Varela, é o desafio de “transformar espaços que originalmente nasceram como espaços exclusivos de contenção (emocional), em espaços que defendam o direito ao esporte para todas, todos e todes”. Para ele, ativismos como o do Ciervos tem “uma missão agregada já de início, que é não simplesmente ter o esporte, senão pensar a contenção, pensar atenção, construir mecanismos de fomento para que nosso coletivo possa desfrutar do esporte”.

Umas das estratégias do clube que expandiu sua atuação é o evento anual que leva o nome “Tackleando a LGBTIfobia”, e iniciou em 2017, “por conta de ataque que um companheiro nosso passou e se juntaram equipes do torneio da União de Rugby de Buenos Aires”, nos conta Varela. A proporção que o evento tomou é destacado como algo que se tornou a maior atividade do clube e um dos grandes eventos do rugby argentino em termos de “visibilidade ao enfrentamento a discriminação e violência contra o coletivo LGBTQIAP+”. Em sua última edição, realizada neste mês de março de 2022, o encontro envolveu, além de outras equipes de rugby, modalidades como vôlei e Quidditch. Na avaliação da Diretoria do Ciervos Pampas, o tackleando ultrapassa o “mundo do rugby” e se transforma num dos grandes eventos latino-americanos, visibilizando o coletivo LGBTQIA+ no esporte.

Foto: Acervo do Ciervos Pampas

O Ciervos Pampas desenvolve uma Escola de Formação em Direitos Humanos desde 2018. Visitas a exposições culturais sobre diversidade, locais de memória e verdade, assim como cursos, palestras, lives e workshops com referências políticas na história das lutas sociais na Argentina e América Latina, são ofertadas aos atletas que se somam ao clube através de convocatórias periódicas ao longo do ano. O pioneirismo deste trabalho relacionando gênero, diversidade, direitos humanos e esporte também impulsionou a Diretoria a criar um protocolo de prevenção e intervenção em situações de violência e discriminação, juntamente com uma equipe de profissionais.

O Protocolo de acción para la prevención e intervención en situaciones de discriminación y violencias en el deporte por género, expresión de género, orientación sexual y características sexuales tem objetivo de “problematizar a discriminação e a violência que nós temos incorporados, ainda que parte do coletivo LGBTQIAP+, e que terminam sendo minimizadas, como preconceito de classe e o racismo e outras formas de discriminação”, afirma Caio Varela. O documento foi elaborado no âmbito da Escola de Formação em Direitos Humanos e tem uma contribuição inegável para que outras equipes de rugby e outras modalidades de esporte se inspirem e repliquem em seus clubes.

Quantos de nós não se encaixaram nos padrões esportivos e abandonaram o sonho infantil de uma medalha olímpica? Eu sou uma dessas pessoas, muitas de nós militantes somos… e talvez por isso, em algum momento, deixamos de olhar o esporte como um lugar de luta e resistência, quase como se fosse uma batalha perdida.

Ciervos Pampas e seu ativismo dentro e fora das quadras me faz lembrar da dor de ser um corpo rechaçado e desprezado especialmente na infância. Como disse Varela: “os corpos LGBTQIAP+, têm uma memória da negação”, o que traz o desafio de falar de “uma educação esportiva para adultos, que tem a memória do rechaço nos seus corpos” implicando assim na “criação de novas tecnologias, metodologias e pedagogias no ensino do esporte com uma perspectiva de diversidade sexual e de gênero”.

Ao mesmo tempo que a trajetória do Ciervos Pampas pode nos afetar rememorando o corpo negado e rechaçado, conhecer sua história e atuação é primordial para ampliarmos as frentes de atuação da luta LGBTQIAP+, ressignificarmos o lugar do esporte nas lutas sociais e reivindicarmos o esporte como um direito de todas, todos e todes!

*Bruna Andrade Irineu tem desenvolvido um estudo sobre as disputas por direitos LGBTQIAP+ no contexto latino-americano e é ativista pelos direitos LGBTQIAP+, feminista, assistente social e professora da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT. Em defesa da ciência e da educação pública, lesbianizando e confabulando revoluções. Para seguir no Instagram e Twitter: @brunairineu

**Para seguir o Ciervos Pampas Rugby Club no Instagram, Twitter, Facebook e Youtube: @ciervospampas