Profissionais estão preocupados  com a drástica redução orçamentária

Quilombolas mobilizados. Foto: Mídia NINJA

Servidoras e servidores do Incra que atuam no setor de Regularização de Territórios Quilombola emitiram uma carta na qual se somaram às manifestações de lideranças e organizações quilombolas que apontam o desmonte dessa política, estabelecido nos últimos quatro anos com a transferência da autarquia agrária para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA).

No documento, chancelado pela Cnasi-Associação Nacional e a Confederação dos Trabalhadores no Serviço Público Federal (Condsef), os profissionais manifestam sua “profunda indignação e preocupação com os rumos da POLÍTICA PÚBLICA DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA QUILOMBOLA no INCRA com sua drástica redução orçamentária, alterações normativas que dificultam e ferem o procedimento administrativo atual de regularização dos territórios tradicionais das comunidades quilombolas e repudiar a forma de atuação da Auditoria Interna do INCRA”.

O material, que recebe apoio da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ), da Comissão Pró Índio de São Paulo (CPI-SP), Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), e da Terra de Direitos, tem um recorte histórico, contextualizando com a drástica situação atual do setor.

Fonte: Cnasi-AN

Confira a carta na íntegra:

Nós, Servidoras e Servidores do INCRA que atuam na política quilombola, vimos a público somar-nos às manifestações de lideranças e organizações quilombolas que apontam o desmonte da política quilombola, estabelecido nos últimos quatro anos com a transferência do INCRA para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), e manifestar nossa profunda indignação e preocupação com os rumos da POLÍTICA PÚBLICA DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA QUILOMBOLA no INCRA com sua drástica redução orçamentária, alterações normativas que dificultam e ferem o procedimento administrativo atual de regularização dos territórios tradicionais das comunidades quilombolas e repudiar a forma de atuação da Auditoria Interna do INCRA.

A política quilombola, desde 1988, tem sentido reparatório das injustiças, expropriações, perseguições e constrangimentos a que foram submetidas as comunidades quilombolas desde a colonização. A regularização fundiária executada pelo INCRA opera em uma lógica diversa a de políticas baseadas na propriedade e posse civil e na lógica produtiva e mercadológica da terra. Trata-se do reconhecimento do direito das coletividades quilombolas ao território, constitutivo de seus modos de vida próprios.

A compreensão das diversas situações fundiárias das comunidades quilombolas e das suas dinâmicas de posse, usos, ocupação, organização, produção econômica e reprodução física e cultural, é objeto de um complexo trabalho técnico e de procedimentos administrativos, sobre os quais as servidoras e servidores do INCRA produziram conhecimento e aprimoramento ao longo de quase vinte anos de atuação a duras penas, o que têm sido sistematicamente desacreditado e desconsiderado nas ações em curso no INCRA, principalmente na Auditoria Interna e nas recentes alterações normativas e demais procedimentos institucionais do INCRA.

Em 2019, o INCRA sofreu modificações que impactaram profundamente sua missão, com a edição da MP nº 870/2019, convertida na Lei nº 13.844/2019, que passou as atribuições do INCRA de reforma agrária, regularização fundiária de áreas rurais, Amazônia Legal e terras quilombolas ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), devido à extinção de pasta voltada à agricultura familiar ao qual o Incra era vinculado. Esta alteração passou a existir no regimento interno do INCRA, em 2020, com o Decreto nº 10.252/2020, que mudou a estrutura regimental do INCRA, vinculando o INCRA ao MAPA comandado por lideranças de organizações ruralistas.

O INCRA, nessa nova configuração, ficou subordinado à supervisão da Secretaria Especial de Assuntos Fundiários (SEAF) do Ministério da Agricultura, chefiado também por um ruralista. Com isso, a competência de acompanhamento da regularização fundiária dos quilombos passou ao MAPA, cuja finalidade institucional é fomentar políticas voltadas ao agronegócio, promovendo-se um desvio de finalidade gritante e, potencialmente, um conflito de interesses, tendo em vista que proprietários rurais e políticos representantes do agronegócio, principal público-alvo do referido Ministério, têm historicamente se posicionado contra os direitos territoriais quilombolas e contestam, nas esferas administrativa e judiciária, a regularização fundiária quilombola, causando enfraquecimento da missão do órgão.

O MAPA não dispõe de estrutura nem expertise para lidar com a questão quilombola. O quadro da SEAF é composto por cargos políticos, não técnicos, que nunca realizaram qualquer diálogo com as áreas técnicas do INCRA. A titulação de territórios quilombolas é assunto técnico, que pressupõe expertise acumulada não existente em nenhum outro órgão público federal.

Soma-se a essa mudança regimental e hierárquica, estrategicamente feita com interesses políticos contrários à efetivação da política territorial das comunidades quilombolas, o fato de que, no ano de 2020, o INCRA passou a ser responsável pelo licenciamento ambiental de empreendimentos que afetem comunidades quilombolas, competência antes atribuída à Fundação Cultural Palmares e transferida ao INCRA sem que tenha sido criada uma estrutura organizacional mínima para atendimento desta nova competência, dificultando sobremaneira o acompanhamento desta nova competência. Por mais que a equipe técnica designada pelo Incra atue com seriedade, a falta de estrutura própria para essa temática, somada à alteração normativa provocada pelo INCRA, que cerceia os direitos das comunidades à participação nos processos de licenciamento, agrega dificuldades à condução dessa atividade.

Todas essas mudanças, somadas ao esvaziamento do orçamento do órgão, fragilizaram a atuação do INCRA na política quilombola e alteraram arbitrariamente sua estrutura, sem a participação de quilombolas e servidores(as) que acumulam anos de experiência e conhecimento técnico, desqualificam a política quilombola e impedem que o INCRA cumpra sua missão institucional de promover a titulação coletiva dos territórios quilombolas e proteger os direitos das comunidades.

Em relação ao orçamento destinado à execução dessa política pública, faz-se necessário destacar que, especialmente ao longo dos 3 últimos anos, houve um corte brutal nos recursos destinados para a Ação 210Z (Delimitação, Desintrusão e Titulação de Territórios Quilombolas), do Programa 1040 (Governança Fundiária). Em 2010, o orçamento destinado à Ação 210Z na Lei Orçamentária Anual (LOA) era de R$ 64 milhões (R$ 10 milhões para gastos correntes e R$ 54 milhões para indenizações). Em 2019, esse quantitativo foi de R$ 3,5 milhões (quase R$ 2,5 milhões para gastos correntes e R$ 958 mil para indenizações). Em 2020, o montante da Ação 210Z foi de R$ 2.942.132,00 (sendo apenas R$ 735.533,00 para indenização de imóveis), e, em 2021, o orçamento disponível para a política de regularização fundiária quilombola de todo o país foi de apenas R$ 206.008,00, o que representa uma redução de mais de 90% em relação ao exercício financeiro anterior, sendo que em 2021 não houve montante aprovado para pagamento de indenização de imóveis rurais. Em 2022, a LOA foi apresentada com R$ 405.000,00 na Ação 210Z, sendo R$ 54.000,00 para indenização de imóveis. O projeto de lei orçamentária encaminhado para 2023 mantém o montante de R$ 405 mil para a política pública.

Diante do cenário de redução das atividades do órgão, nos últimos anos ocorreu um aumento significativo de Ações Civis Públicas contra o INCRA, que somam atualmente mais de 300, a maioria sem cumprimento de decisões. Essas ações judiciais têm como objetivo garantir a continuidade da política de regularização fundiária quilombola que tem um grande passivo nacional para cumprimento. Entretanto, com os atuais montantes orçamentários, não se faz possível nem o cumprimento das decisões judiciais que pesam contra o INCRA, tampouco finalizar atividades e peças técnicas de processos administrativos em curso ou dar início a novos processos.

De 1995 até a atualidade foram emitidos 305 títulos de territórios quilombolas em todo o país, sendo 140 deles emitidos pelo INCRA e os demais por órgãos estaduais e municipais de terra. A totalidade de territórios titulados no Brasil representa 1.070.130,1775 hectares (0,125 % do território brasileiro) em benefício de 202 territórios, 352 comunidades e 20.550 famílias quilombolas.

O INCRA possui, atualmente, 1.796 processos abertos, que representam demandas por regularização de territórios tradicionais. Destes, 313 já possuem algum andamento, o que representa 2.430.677,7415 de hectares já identificados, reconhecidos decretados ou titulados total ou parcialmente. Caso todas estas amarras à política de regularização de territórios quilombolas do INCRA fossem retiradas, o total de territórios quilombolas titulados no Brasil poderia ser triplicado em pouco tempo.

Existem 46 Decretos Declaratórios de Interesse Social de territórios quilombolas parados aguardando assinatura presidencial devido à nova exigência da SEAF/MAPA da existência de disponibilidade de dotação orçamentária para a indenização dos imóveis e benfeitorias previamente à edição dos decretos. Ou seja, não há aporte de recurso na ação de indenização e a exigência de recurso orçamentário prévio é colocada como condição para o envio das propostas ao MAPA. E, sem a publicação dos decretos, não se pode proceder às vistorias e avaliações para o cálculo do montante das indenizações e posterior pagamento aos proprietários e titulação em nome das associações representativas das comunidades quilombolas. O atual governo se furta em discutir com as áreas técnicas soluções para cumprimento da legislação.

Apresentamos estes números para demonstrar a dimensão das demandas da política quilombola e o minúsculo orçamento que, na prática, paralisa as ações. A ausência de condições para exercer seu papel institucional nessa política pública tem agravado a situação de inanição do INCRA, assim como a perplexidade e cobrança por parte das entidades de controle e das organizações quilombolas.

Dentre as estratégias, estão a desvirtuação de normativos e descaracterização de políticas públicas, sem que elas sejam revogadas, o estabelecimento de mecanismos internos para paralisações processuais, e medidas para diminuir a participação social, como a dissolução das Mesas Quilombolas, amparada no Decreto nº 9.759/2019.

Nesse sentido, umas das estratégias em curso mais preocupantes são as auditorias internas que visam o revisionismo e reanálises dos processos quilombolas, que passaram a compor o cenário de paralisia da cúpula gestora do Incra, que encaminhou todos os processos em fase de identificação e reconhecimento para a Auditoria Interna, resultando na postergação de seus andamentos. Isso se deu a partir da Resolução nº 444/2020, de 29 de junho de 2020 (endossada e realizada nos anos posteriores), que determinou a inclusão, no rol de atividades da Auditoria Interna, de avaliações e ações de controle sobre a regularização fundiária e titulação de áreas de comunidades quilombolas. O encaminhamento de trinta e quatro processos em etapa de apreciação do Conselho Diretor e de publicação de Portaria de Reconhecimento à Auditoria Interna do INCRA, entre dezembro de 2019 e novembro de 2021, na prática, significou a paralisação desses feitos.

Assim, criou-se uma nova instância de avaliação informal que vem funcionando como espaço de contestação interna ao próprio Incra, além daquelas já prevista na legislação vigente. O encaminhamento em massa de processos para a Auditoria é sugestivo da desconfiança que paira sobre os trabalhos de identificação e
titulação de territórios coletivos.

Ao contrário do trabalho sério estabelecido em normas e manuais pelos órgãos de controle, o agravante dessa situação no INCRA é o fato da Auditoria Interna atuar a partir de conceitos alheios à regularização de territórios coletivos e desconsiderar as manifestações técnicas e jurídicas favoráveis nos processos analisados, repisando argumentos de contestações já superadas, determinando anulação de relatórios antropológicos e de outras peças técnicas de Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação (RTID). Ao retomar argumentos já enfrentados e invalidados técnica, científica e juridicamente oferecidos por agentes políticos, a partir de conceitos estranhos à legislação afeta à titulação de quilombos, fica evidente a influência política sobre os trabalhos da Autarquia. O modus operandi dos trabalhos de auditoria, além do exposto acima, também tem envolvido documentos processuais de ameaça a servidores com a abertura de processos administrativos disciplinares (PAD).

Entendemos que a atuação da Auditoria Interna, tal como vem sendo desenvolvida, tem resultado numa situação de total insegurança para a atuação dos servidores e servidoras do INCRA no exercício de suas funções institucionais, fragilizando a Política Pública de Regularização de Território Quilombolas e a própria missão da Autarquia. Cabe reiterar que o procedimento de trabalho da Auditoria Interna do Incra diverge das orientações formais da CGU sobre condução de trabalhos de auditorias.

Em adição, a recente mudança normativa, materializada pela publicação da Instrução Normativa n. 128/2022, que define critérios e procedimentos administrativos e técnicos para a edição da Portaria de Reconhecimento e de decreto declaratório de interesse social, avaliação de imóveis incidentes em terras ocupadas por remanescentes das comunidades de quilombos, e celebração de acordos administrativos ou judiciais, impõe uma maior burocratização do procedimento de regularização fundiária quilombola. Ao contrário do que foi veiculado oficialmente pela Autarquia , a conclusão dos estudos da cadeia dominial de todos os imóveis incidentes no território quilombola como condição para a publicação do documento que reconhece uma área como sendo de ocupação tradicional (Portaria de Reconhecimento) não acelera a destinação de áreas públicas estaduais ou da União. A falta de clareza e a complexidade da situação fundiária que impera em diversas regiões do país desde o período colonial não podem servir de óbice ao reconhecimento dos territórios quilombolas.

A partir dos quase vinte anos de experiência de execução da regularização fundiária de territórios quilombolas, pode-se afirmar que a realização de cadeia dominial nesta fase acarretará em mora no procedimento e adentrará na esfera de competência das Unidades Federativas. Primeiramente, há uma carência de quadros técnicos do próprio INCRA com qualificação para a elaboração dos estudos de cadeia dominial, portanto, a partir do momento em que se passa a exigir a finalização dos estudos de cadeia dominial de todos os imóveis incidentes no território como condição para o prosseguimento do processo, se cria um grande obstáculo operacional para a sua tramitação.

Ademais, o advento da IN poderá gerar discussões administrativas delongadas sobre validade dos títulos e incidência de terras públicas com as Unidades da Federação, fazendo com que se obstaculize a desapropriação e titulação de imóveis com títulos válidos. Tem-se, como exemplo, o seguinte: nos casos em que apenas um imóvel carece de comprovação do destaque do patrimônio público e demande análise, o processo de regularização ficará paralisado e o INCRA impedido de desapropriar e titular os imóveis cujo domínio foi considerado regular. Tal situação é ilustrativa de como a mudança normativa recente – somada às complexidades fundiárias do país – podem fazer com que nenhum processo chegue à fase desapropriatória.

Ressalta-se que o entendimento anterior da Autarquia era pela necessidade de confirmação da cadeia dominial somente antes do ajuizamento da ação desapropriatória, sem obstaculizar o reconhecimento das comunidades e a declaração de interesse social para fins desapropriatórios, mas evitando a realização de pagamentos indevidos, e, assim, resguardando o erário. A previsão da conclusão da cadeia dominial até a fase do ajuizamento da ação desapropriatória possibilitava o escalonamento do trabalho no tempo, especialmente considerando casos de  territórios quilombolas que envolvem diversos imóveis, de acordo com as capacidades operacionais das Superintendências Regionais. Nesse sentido, a atual norma retrocede a exigência à fase de Portaria Reconhecimento, uma fase processual declaratória, cujo objetivo é o encerramento do contraditório garantido na norma, não a regularização em si.

Assim, vê-se que, enquanto o Estado investe e comemora os louros da titulação de lotes de assentamentos, a regularização de territórios quilombolas sobrevive à míngua de recursos orçamentários e humanos. Os esforços institucionais para titulação de assentamentos contrastam com a burocratização do procedimento de titulação coletiva. O INCRA se furta a propor soluções para tratamento do passivo de Relatórios Técnicos, Portarias, Decretos e Títulos em áreas públicas federais. Tal situação evidencia o racismo institucional persistente no âmbito da Autarquia.

Os elementos acima expostos apontam como, nos últimos anos, o INCRA tem implementado uma política que cabe chamar de anti-quilombola, com a implosão por dentro desta política pública, desconstruindo o direito quilombola ao território e paralisando gravemente a sua execução através de múltiplas estratégias. Assim como vemos ocorrer com a FUNAI, assiste-se à captura e submissão do INCRA a interesses anti-quilombolas, à revelia do cumprimento da Constituição Federal e Decreto 4.887/2003.

Afirmamos, ainda, a importância de registrar a pungente necessidade de enfrentamento do racismo institucional presente na Autarquia. Nossa luta por melhores condições de trabalho, nos territórios quilombolas e fora deles, também é uma luta em defesa das comunidades. Continuamos firmes e focados na missão.

É de interesse dos/as servidores/as do INCRA a elaboração e execução de políticas quilombolas compatíveis com as disposições nacionais e internacionais sobre os direitos humanos intrínsecos das comunidades quilombolas. Para isso, precisamos dar um basta na atual gestão anti-quilombola do INCRA e reunir nossas forças para estruturar mínimas condições de trabalho e segurança para a execução da nossa missão institucional como servidores e servidoras públicas.

Por fim, manifestamos solidariedade e apoio aos familiares dos quilombolas que tombaram na luta. E apoio aos que nela caminham!

Queremos um INCRA Aquilombado e para as comunidades quilombolas, JÁ! O Brasil é Quilombola! Titulação dos territórios quilombolas!

Pelo fortalecimento do INCRA e respeito aos seus servidores e servidoras!

Coletivo de servidoras e servidores lotadas/os nos Serviços de Regularização de Territórios
Quilombolas das Superintendências Regionais e
Coordenação-Geral de Regularização de Territórios Quilombolas do Incra

SUBSCREVEM:

Cnasi-Associação Nacional
Confederação dos Trabalhadores no Serviço Público Federal (Condsef)
APOIO S: – Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ) – Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC) – Terra de Direitos – Comissão Pró Índio de São Paulo (CPI- SP)