Outros indígenas ainda continuam morando em situação de vulnerabilidade em bairros da periferia de cidades acreanas, falta de apoio do poder público

Foto: Jardy Lopes

Fabio Pontes

Ao menos 100 pessoas do povo Jaminawa que vivem na cidade de Sena Madureira (distante 143 km da capital do Acre, Rio Branco) voltaram para suas aldeias de origem sem passar por exames que detectassem a presença do novo coronavírus. Com medo de serem infectados, os Jaminawa decidiram fazer este movimento de retorno por iniciativa própria, praticando o isolamento social dentro das comunidades localizadas às margens dos rios Yaco, Purus e Caeté. A única ajuda oficial foi por meio da Fundação Nacional do Índio (Funai), que forneceu recursos para a compra do combustível das embarcações; a verba, porém, foi insuficiente.

O problema é que, sem os indígenas terem passado por avaliação médica ou ficado em quarentena antes das viagens, não se sabe se algum deles está com o vírus, vindo a desenvolver a Covid-19, infectando os demais nas aldeias. Oficialmente, pelos dados da Secretaria Estadual de Saúde, Sena Madureira não tem casos confirmados de contaminação; houve 19 notificações, sendo 16 descartadas; outras três ainda estão em análise. Segundo o IBGE, o terceiro maior município do Acre tem uma populaão estimada de 45,8 mil pessoas.

“A nossa preocupação é que as pessoas estão indo [para as aldeias] sem nenhum diagnóstico, se estão indo com o vírus ou não. Se chegar alguém lá infectado vai atingir as outras pessoas”, diz José Correia Jaminawa, 65 anos, liderança do povo Jaminawa em Sena Madureira. Ele conversou com a reportagem por telefone.

Como a maioria dos indígenas que retornou não tem mais casa nas aldeias por morarem na cidade já há algum tempo, eles vão dividir espaço nas moradias dos “parentes”. Por se tratar de famílias numerosas – com muitos filhos -, manter a regra do distanciamento social para evitar possíveis contágios será quase impossível. Pessoas recém-chegadas das cidades estão dividindo o mesmo espaço de quem escolheu morar nas aldeias.

A liderança diz saber dos riscos que este retorno em massa sem passar por avaliações médicas representa, mas que é a única solução necessária no momento antes que o coronavírus se propague pela cidade. Ao ir ao polo do Dsei pedir ajuda, a única orientação dada foi para que eles fossem embora, ou seja, retornassem para as aldeias.

“A nossa preocupação é essa, mas eu não tenho outra solução. Aqui o polo [do Desei] não tem médico. Já há os médicos em Sena Madureira são poucos para atender tanto o público geral quanto nós. O meu medo é esse, que eu estou carregando esse pessoal para esconder e se no meio for alguém infectado? Aí vai acabar com o nosso povo”, afirma a liderança Jaminawa.

Para agravar a situação, os Jaminawa não terão assistência médica dentro das comunidades neste período de isolamento por o polo do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) do Alto Purus estar praticamente parado. “Só há os enfermeiros que a única coisa que fazem é encaminhar o pessoal para o hospital da cidade”, diz José Correia. Os Deis são coordenados pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), que, por sua vez, está subordinada ao Ministério da Saúde. A liderança Jaminawa também é o coordenador técnico regional da Funai em Sena Madureira, cujo escritório está em processo de fechamento. A região é de responsabilidade da Coordenação Regional do Alto Purus, sediada em Rio Branco.

A situação dos indígenas acreanos que estão sob a coordenação do Alto Purus contrasta com os da Coordenação Regional do Alto Juruá, responsável pelas populações que vivem nos municípios dos Vales do Envira/Tarauacá e Juruá. Além de ter levado os indígenas que estavam nas cidades de volta para suas aldeias, o Dsei obriga aqueles que estavam fora a passar por uma quarentena antes do retorno.

O recurso que ele obteve para levar seu povo de volta às aldeias (R$ 3,5 mil) foi repassado pelo órgão indigenista. O dinheiro não foi suficiente por causa da distância das comunidades, o que demanda uma grande quantidade de gasolina. Em Sena Madureira o preço médio do combustível é de R$ 5 o litro. Nas comunidades ribeirinhas da Amazônia, a gasolina é tão valiosa quanto o ouro. Ter alguns litros – em casos emergenciais – faz a diferença entra a vida e a morte.

Outra demanda apontada por ele é o envio de cestas básicas, já que a produção de alimentos nos roçados não é suficiente para atender toda a demanda. Até o momento não há sinalização para o envio deste auxílio para as aldeias.

Nos centros urbanos, os Jaminawa se encontram em situação de alta vulnerabilidade social, morando em bairros carentes de qualquer tipo de infraestrutura, sobretudo saneamento básico. Outro problema é a violência marcada pela guerra entre as facções criminosas. A maior parte depende de programas de transferência de renda – como o Bolsa Família – ou as aposentadorias do INSS. Outros obtêm renda com trabalhos provisórios (os bicos).

O principal motivo a empurrar os Jaminawa para a cidade é a não demarcação das terras onde ficam as suas aldeias, o que provoca conflitos com invasores. Entre elas está a Terra Indígena Jaminawa do Rio Caeté e a Caiapucá, que se encontram em fase de identificação desde 2007, segundo dados do Instituto Socioambiental (ISA). “Nenhuma terra aqui é demarcada, e com essa política do governo brasileiro de não demarcar mais nenhum pedaço de terra piorou ainda mais”, lamenta a liderança.

O não reconhecimento destes territórios faz com que os indígenas entrem em conflitos com invasores, em especial madeireiros de olho nas imensas áreas de floresta preservada. A região de Sena Madeireira é bastante rica em madeiras nobres. Nos mais de 100 quilômetros da BR-364 até Rio Branco é intenso o tráfego de caminhões com toras.

Os Jaminawa se espalham pela parte leste do Acre e vivem em outras duas áreas já demarcadas. São elas a Terra Indígena Cabeceira do Rio Acre e a Terra Indígena Mamoadate. Esta última é a maior em extensão do Acre, com 314 mil hectares. Eles a dividem com outro povo, os Manxineru.

As duas TIs estão em outro extremo de onde ficam os Jaminawa de Sena Madureira. Mamoadate e Cabeceira do Rio Acre ficam no município de Assis Brasil, fronteira com o Peru. O acesso entre as duas cidade (Sena Madureira e Assis Brasil) se dá pelo rio Yaco, manancial que fica em péssimas condições de navegação nos seis meses de estiagem.

“Os Jaminawa se dividem entre Assis Brasil, Brasileia, Sena Madureira e Rio Branco porque eles têm um intenso trânsito entre os centros urbanos e as suas aldeias. Até já chegaram a ser vistos como problemáticos, viviam em situação de mendicância. Eles não têm a mesma organização dos índios do Juruá, em torno de uma associação como é o caso dos Ashaninka ou dos Yawanawa. Eles têm uma grande divergência interna. Cada aldeia tem uma liderança”, explica a antropóloga Fátima Ferreira, que trabalhou por cinco anos com os Jaminawa.

Historicamente, diz ela, José Correia Jaminawa é a principal liderança do povo, que está em maior quantidade na região de Sena Madureira. Há outras famílias que vivem em bairros da periferia de Rio Branco, Brasileia e Assis Brasil. Em Brasileia, fronteira com a Bolívia, há dois bairros formados pelos Jaminawa.

A principal preocupação dela é justamente com os que ainda estão nas cidades, mais expostos à contaminação pelo coronavírus. Quanto mais tempo eles ficam nos centros urbanos, mais dificultoso será o processo de retorno para as comunidades sem antes fazer os testes da Covid-19.

Apesar da grande densidade populacional indígena em Sena Madureira, Fátima diz que a falta de estrutura do Dsei Alto Purus e o fechamento do escritório da Funai representam a completa ausência do poder público em auxílio a estas populações. “O Estado abandonou os Jaminawa à própria sorte. Eles não têm política nenhuma de assistência na Saúde.”

Com este vácuo do poder público, comenta ela, pastores evangélicos passaram a ser referência para os indígenas. O problema é que os líderes religiosos da cidade negam a existência do coronavírus, enquanto outros dizem ter a cura para doença provocada por ele.

José Correia Jaminawa agora busca ajuda para conseguir comprar combustível e levar as 12 famílias que ainda estão em Sena Madureira, além da compra das cestas básicas. Ele próprio conta os dias e as horas para voltar à aldeia. A liderança espera apenas por recursos para a compra da gasolina e a saída de sua filha de um hospital de Rio Branco. José Correia também quer ter a garantia de que “todos os parentes” possam retornar em segurança para as comunidades de origem.

Desassistidos pelo governo brasileiro, os próprio Jaminawa tiveram que agir para escapar da contaminação do novo coronavírus. Estar longe dos centros urbanos e voltar para as aldeias é, neste momento, a melhor opção. A incapacidade do Estado de realizar um simples exame pode, contudo, transformar uma solução em problema.

A reportagem não conseguiu contato com as coordenações regionais da Sesai e da Funai do Alto Purus.

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