Foto: Emily Lobo / Mídia NINJA

Por RED.br

Marielle Franco completaria quarenta anos em julho. Ela encarnava a esperança de uma nova geração política no Brasil. Esperança de emancipação, de igualdade e de progresso social. Foi covardemente abatida pelas balas das milícias da cidade do Rio de Janeiro, no dia 14 de março de 2018.

Marielle vinha do complexo da Maré, no Rio, antigo e imenso bairro informal que se estende ao longo da baía de Guanabara. Ela sempre se considerou uma filha da favela, particularmente da Maré, de onde se mudou somente em 2017, poucos meses antes de ser assassinada.

Marielle cresceu num lugar onde nada é de graça e tudo se conquista, como uma verdadeira “flor no asfalto”, figura que utiliza ao ser interrompida em seu discurso do 8 de março de 2018.

Mãe solteira aos 19 anos – quando deu à luz a Luyara –, foi uma das primeiras alunas de um curso pré-vestibular comunitário fundado por uma ONG para atender aos moradores do complexo da Maré, num país onde até há pouco tempo somente a elite branca tinha acesso ao ensino superior. Ingressou então na PUC-Rio para estudar sociologia, graças à bolsa do ProUni, Programa Universidade para Todos, desenvolvido pelo governo Lula, ao mesmo tempo em que criava a filha.

Entre formação acadêmica e política, se tornou uma mulher consciente de suas origens, dos combates que a antecederam e do desafio que representava sua ascensão, numa sociedade segregacionista e desigual. Seu mestrado, defendido em 2014 na Universidade Federal Fluminense sobre as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) encarregadas de limpar a cidade antes da Copa do Mundo de 2014, já ilustrava o duplo envolvimento político e acadêmico. Segundo ela, o Estado policial que deveria “pacificar” se coloca, na realidade, em guerra contra parte da população, pressupondo a existência de um território inimigo.

“O que, de fato, existe ou está indicado é uma política de exclusão e punição dos pobres, que está escondida por trás do projeto das UPPs”, escreve.

O comprometimento social com a defesa dos direitos humanos é algo precoce em Marielle e está intimamente relacionado à morte de uma amiga por bala perdida, quando ela tinha apenas 20 anos. Poucos anos depois, Marielle se associaria à equipe de Marcelo Freixo, líder do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), e a seu combate contra as milícias do Rio. Durante 10 anos, ela foi uma de suas assistentes parlamentares na Assembleia do Estado do Rio de Janeiro, coordenando com ele a ação da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e da Cidadania, antes de se tornar vereadora pelo PSOL em 2016 com mais de 46.000 votos.

A cadeira que passou a ocupar na Câmara Municipal se tornaria a tribuna de onde defenderia os combates que há dez anos vinham orientando seu envolvimento político, ao denunciar violências policiais, defender habitantes das favelas, suas condições de vida, e os direitos da mulher – e das minorias, em particular de gênero. Nesse quadro, propõe a criação de um dia da visibilidade lésbica, que é rejeitada pela bancada conservadora da Câmara Municipal. Em fevereiro de 2018, enquanto o governo Temer entregava a segurança pública do Estado do Rio de Janeiro às forças armadas, ela foi indicada como relatora da comissão da Câmara Municipal, encarregada de acompanhar a intervenção militar.

Marielle se tornaria daí em diante uma das principais vozes que se ergueriam contra as violações dos direitos fundamentais dos moradores das favelas.

Quatro dias antes de seu assassinato, ela denunciou publicamente os abusos cometidos pelos batalhões de polícia militar na favela do Acari. Tudo em Marielle se tornou uma ameaça e ofensa à nebulosa reacionária, securitária e mafiosa que, entre milícias e políticos, fazia a lei na periferia do Rio, com o consentimento escancarado do poder executivo.

Ela desafia por sua própria existência, liberdade, coragem e firmeza de voz, como vimos no olhar que dirige aos homens que ela acusa de fazer apologia da ditadura – militantes de extrema direita, milicianos ou ambos – e que ali estavam para vaiar e desestabilizar sua fala, no local da Câmara Municipal, no próprio dia internacional das mulheres. Seis dias depois, quando saía de um encontro com jovens mulheres negras, foi executada, em seu carro, junto com seu motorista Anderson Gomes.

O assassinato de Marielle foi claramente um assassinato político
Provavelmente o mais importante da história recente do Brasil.

A Nova República nasceu em 1988, do sangue do sindicalista rural Chico Mendes, defensor dos direitos dos seringueiros e da floresta amazônica, assassinado a mando de um coronel grande latifundiário. Trinta anos depois, com o sangue de Marielle, a República é abalada, podendo até vir a sucumbir, ao término de um mortífero processo que começa com o golpe contra Dilma Rousseff, em 2016, o governo ilegítimo de Michel Temer, a ascensão de uma nova direita raivosa e a vitória de um neofascista à presidência da República.

O assassinato de Marielle Franco é político, porque teve como objetivo calar a voz da oposição às milícias da periferia do Rio de Janeiro e ao jogo insano que elas mantêm com o conjunto da força pública e da classe política conservadora. Aterrorizando quem se atreva a seguir pelo mesmo caminho. Ostentando seu poder.

Mas também é político porque Marielle tinha a cor de pele negra, como muitas das pessoas que são assassinadas pelas ruas do Brasil há mais de 500 anos: “a carne mais barata do mercado é a carne negra”, entoa Elza Soares. Marielle é também uma mulher que não estava em seu lugar, por exemplo, ao proclamar que “o lugar da mulher é onde ela quiser”. Era uma mulher LGBT, orgulhosa de sua identidade, enquanto a homofobia assassina e assumida se tornava uma das faces mais abertas da explosão de violência rancorosa no Brasil.

Era, por fim, uma favelada que desafiava a ordem social dos homens brancos.

Seu assassinato é uma das fases da degradação da democracia brasileira que vem ocorrendo há três anos. Ele mostra que o golpe de Estado contra Dilma Roussef em abril de 2016 não foi acidental. Ele corresponde a um projeto, em aplicação há anos: o de criminalizar e, como se isso não bastasse, esmagar, pela violência, todos os movimentos sociais que representam e defendem as reivindicações das populações mais humildes, dos excluídos, das minorias, dos dominados, numa sociedade extraordinariamente segregacionista e desigual como a brasileira. A chegada ao poder da facção heterogênea de extrema-direita representada por Bolsonaro é o resultado perverso desse processo, como numa relação de criador e de criatura típica de um filme de terror.

Marielle foi assassinada. Mas Marielle está presente. Marielle está viva. #MariellePresente, #MarielleVive. Não por acaso esses slogans passaram rapidamente a representar sua memória e a exigência por justiça. Desejamos aqui expressar nossos sentimentos à família de Marielle, à sua filha Luyara, à sua companheira Mônica, aos seus pais Marinete e Antônio Francisco, à irmã Anielle e a todos seus próximos para os quais, de forma desoladora, Marielle não está mais presente. É triste e revoltante. Mas, como disse o presidente Lula a partir da cela para aonde foi ilegalmente enviado algumas semanas depois do assassinato de Marielle: assim como a luta de Chico não morreu com ele, ficou maior, também tem sido assim com a Marielle. “Brasil chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, Malês”, entoa o samba da Mangueira vencedor do último desfile de carnaval. Agora é a vez de ouvir a voz dos rebeldes que falam em nome de todos aqueles e aquelas que a violência e a opressão querem calar: a voz das mulheres, Marias. A voz dos escravos Malês, muçulmanos da Bahia, cujo levante estremeceu a ordem escravocrata em 1835, também personificados na figura da liberta Luiza Mahin, que ainda hoje inspira novos militantes.

É preciso escutar a voz de Marielle, pois ela grita junto com as Marias, as Mahins, os Malês.

A luta pela memória de Marielle e pela identificação de seus assassinos é talvez uma das maiores forças políticas da oposição no Brasil. “Marielle vai derrubar Bolsonaro”, disse recentemente Jean Wyllys. Com efeito, a investigação, como muitos aqui sabem, começou a revelar os laços íntimos entre a milícia encarregada da execução de Marielle e a família do presidente, em particular um de seus filhos, que foi vizinho, amigo e empregador de um dos milicianos assassinos, com os quais, aliás, existe de longa data suspeitas relações de apoio e financiamento. Todos os recursos estão sendo utilizados para sufocar o caso, mas somos milhões, no Brasil e no exterior, decididos a impedir a impunidade e o esquecimento, a nos perguntar: quem matou Marielle? Quem mandou matar?

Impedir a impunidade e o esquecimento por todos os meios possíveis.
Essa é a razão da luta por uma rua. Um combate, no Brasil, que ganha cada vez mais força simbólica.

Muitos aqui sabem, a instalação de uma placa de rua simbólica, na Praça da Cinelândia, no Rio, sede da Câmara Municipal, se tornou uma questão central em conflito político. A placa comemorativa despertou a ira viril e corrompida que Marielle inspirava nos meios de extrema-direita ligados aos milicianos: no dia seguinte do primeiro turno das últimas eleições, ao mesmo tempo em que sua superioridade era confirmada pelas urnas, dois deputados se apresentaram em um comício de campanha do futuro governador do Estado do Rio, também de extrema direita, mostrando a placa quebrada.

Péssima decisão. Uma única placa se tornou milhares. Ela cobriu muros e paredes do Brasil através de murais e pichações, propagando-se nas manifestações, nas universidades. Ela foi colocada em muros e paredes por toda parte, no mundo inteiro, em centenas de lugares no Brasil, no Chile, na Argentina, no México, nos Estados Unidos, em Israel, na China, em Madagascar, na Alemanha. Um site, ruamariellefranco.com.br, cataloga as homenagens simbólicas mundo afora.

Se Paris for a primeira cidade onde oficialmente uma rua receberá o nome de Marielle Franco será um formidável gesto de longo alcance para todos os militantes de direitos humanos e pela democracia no Brasil. Demonstra-se que defender sua memória não é o combate de uma minoria ativa, mas sim uma luta universal e legítima aos olhos de grande parte da comunidade internacional progressista, que a história do Brasil atual não será escrita por aqueles que promovem o ódio, a violência e o esquecimento.

Além disso, Paris representa um maravilhoso símbolo, com sua história de revoltas e resistências populares, de combates pelos direitos humanos, sociais e políticos. Trata-se de um imaginário poderoso, inclusive para muitos brasileiros e brasileiras.

Ainda não sabemos qual lugar será escolhido para receber seu nome. A câmara municipal de Paris ainda deve aprovar a proposta que fizemos com o apoio de diferentes parceiros: A Liga dos Direitos Humanos e a Federação Internacional das Ligas de Direitos Humanos, France Amérique Latine, Inter-LGBT, Amnesty International, Amis des Sans Terre, Autres Brésil, a Coletiva Marielles, Fondation France Libertés, Cimade, Associação para a pesquisa sobre o Brasil na Europa (ARBRE).

Talvez a rua Marielle se situe perto da praça Marie-Claude Vaillant-Couturier, à beira do Sena, à sombra de sua decana, mulher que resistiu ao nazismo, militante, parlamentar comunista, sobrevivente dos campos de concentração. Ou então veremos a placa perto da escola Louise Michel, a poucos metros de onde nos encontramos, perto dessa outra grande feminista, revolucionária e membro da comuna de Paris, que dizia:

“não se pode matar uma ideia com balas, nem algemá-las”.

Mas talvez Marielle preferisse seguir pelo Canal Saint Martin para inscrever seu nome e descansar perto de uma irmã que também fez de sua vida uma luta: Dulcie September, militante sul-africana anti-apartheid, cuja praça se encontra um pouco mais ao norte, ao lado das vias férreas da estação Gare de l’Est. Ou quem sabe caminharemos ao longo das vias, para aproximar a placa Marielle Franco dos lindos jardins Rosa Luxemburgo, uma de suas maiores ídolas.

Mas quem sabe, por fim, a placa parisiense de Marielle Franco não poderia ter melhor vizinhança que o bairro e a estação nomeados em homenagem à memória de Rosa Parks, mulher negra americana, cuja coragem pessoal e a tenacidade na luta pelos direitos civis inspiraram toda uma geração. No norte do 19° distrito de Paris, ela estaria próxima dos bairros populares de Seine-Saint-Denis, periferia de Paris, cuja diversidade, dificuldades e lutas ela teria, sem dúvida, gostado bastante de conhecer.

A rua Marielle Franco se abriria, assim, para o liceu Angela Davis recentemente inaugurado em La Plaine-Saint-Denis como homenagem à militante afro-feminista e comunista norte-americana. Num horizonte infinito, cruzaria a rua Elsa Triolet, em Saint-Denis, que honra a primeira mulher escritora, também engajada na resistência contra a ocupação nazista, que ganhou o prêmio literário Goncourt. A rua Marielle Franco dividiria um espaço geográfico ampliado e simbólico com o centro cultural Clara Zetkin, fundado no município de Villetaneuse, também na mesma região da periferia de Paris, como forma de homenagear a jornalista alemã socialista e feminista que foi a primeira a pensar na existência de um dia internacional da mulher, hoje, o 8 de março.

E claro, nessa cartografia da memória e da resistência, surgirão muitas outras ruas, passagens, parques, praças, escolas, prédios com nomes de outras mulheres guerreiras em todos os lugares do mundo. Como se diz no Brasil : « Marielle é semente » !
Uma rua Marielle Franco em Paris seria um importante símbolo de resistência. Uma resistência que construímos hoje, juntos, contra as violências e o fascismo. Mas também, um projeto para o futuro. Um futuro feminista, de inclusão, de democracia, de respeito e de solidariedade, em Paris e por todo o mundo.

#Marielle presente ! #Marielle vive! #Marielle é semente!

Em nome da equipe da RED.br, obrigada! Anaïs Fléchet, Antoine Acker, Filipe Galvon, Juliette Dumont, Maud Chirio, Rodrigo Nabuco, Sébastien Rozeaux, Silvia Capanema, Susana Bleil.