Rosa Luz levou um ano para escrever essa coluna. Entenda por quê
A cantora e Youtuber Rosa Luz dá o testemunho de um cotidiano por trás da visibilidade de uma estudante transexual.
Por Rosa Luz
Há um ano atrás fui convidada pela Mídia NINJA pra escrever uma matéria pro Dia da Visibilidade Trans (29). Na ocasião, estava saindo praticamente forçada de uma quebrada na Santa Maria-DF, numa parte conhecida como Faixa de Gaza (fronteira Goiás – Distrito Federal), para morar de favor na casa de uns meninos burgueses em Taguatinga-DF. A falta de grana estava complicada, mesmo para mim, quase formada em Teoria, Crítica e História da Arte pela Universidade de Brasília.
1.
A Travesti negra da periferia estava sem grana pra continuar seus estudos, estava cuidando de uma mana que tinha tentado se matar duas vezes naquela época, estava procurando emprego. Na sua rua, metade das pessoas são profissionais em assaltar outras pessoas no Plano Piloto (famoso aviãozinho). A outra metade? Vendia drogas.
Ela fazia vídeos, fumava muita maconha e ouvia rap. Queria cantar Rap. Usou 2017 inteiro pra conseguir fazer essa vontade acontecer. Quase encarou a prostituição, mas antes disso com certeza tentaria o tráfico, ou até mesmo outras vidas no crime, porque seu corpo e ideologias eram descolonizado e degenerado suficiente para se submeter de tal maneira, com todo respeito as putas, digníssimas de seus empregos que já passou da hora de ser reconhecido como válido e regular (observem a demanda). Somos dignas, não somente eu, como todas as outras travestis, as negras, as putas, os traficantes e assaltantes.
Ela só queria existir sem estereotipar sua existência, pois a própria sociedade já estereotipava a vivência de pessoas trans há anos. Transfobia é como chamamos aquele que tem preconceito e ódio por pessoas trans.
2.
Após morar três meses de graça com seu companheiro na casa de burgueses viciados em cocaína, conseguiu fazer uns bicos com seu canal no Youtube, começou uma vaquinha online pra pagar seu EP de rap, foi selecionada para um curso de direitos humanos na ONU Brasil, voltou pra faculdade, foi apresentadora de TV na Camara dos Deputados, participou de exposições em galerias importantes, conseguiu trabalho com marcas de beleza, foi e voltou pra são paulo umas 7 vezes fazendo pequenos trabalhos e assim conseguiu se sustentar pelo resto de 2017, enchendo a geladeira e pagando o aluguel. Foi a primeira vez em anos que sobrou uma grana pra comprar um tênis, agora ela pararia de andar só com Havaianas. E a saúde mental? as vezes ficava de lado quando a prioridade é poder se alimentar.
Ascensão social era um direito, e ser tratada com respeito e dignidade também. Foi o que ela aprendeu enquanto parte de seus patrocinadores também a tratavam como objeto.
3.
Depois de anos se tratando de maneira autodestrutiva, fumando todos os dias, se auto-hormonizando, ela conseguiu encontrar um equilíbrio para praticar o auto-amor: parou de fumar, fez esportes, se divertiu no pole dance, continuou fazendo vídeos, começou então a visitar o Ambulatório Trans e focar no autocuidado. Em breve vai se formar. Vai ser uma travesti negra da periferia graduada. É o que espera se a transfobia institucional não assassinar sua vontade de aprender, pois na vida acadêmica é assim: a Travesti tem que matar pra aprender.
E assim continuamos na luta todos os dias pela despatologização das identidades trans. Ser trans não é doença.
Precisamos ser tratadas com dignidade, precisamos que a sociedade cuide e abrace a população trans.
Sou apenas uma, mas somos milhares. E juntos somos mais fortes.
Um ano depois escrevo esse texto para o Mídia NINJA, sem pretensão de agradar ou até mesmo de ser publicada, mas escrevo com a consciência de que estou plena, de que passei altos e baixos em busca de uma vida saudável e sustentável, mas que não passei por cima dos meus processos de auto-cuidado em troca de um close na internet. Ter visibilidade também é mostrar nossa vulnerabilidade causada pelo preconceito para juntos podermos questionar o que a sociedade pode fazer para nos ajudar, independente se você é trans ou não: estou falando sobre lutar para que pessoas marginalizadas possam ter uma vida digna.
Sendo assim, entendo que desde minha transição fui adoecida pela sociedade brasileira simplesmente por eu ser quem sou, e mesmo com tantas tentativas de anularem minha existência subjetiva, no momento me sinto melhor e mais viva do que nunca.