Por Pedro Henrique Boaventura

“Retratos Fantasmas” é um filme de cinema. O novo documentário de Kleber Mendonça Filho trabalha com esse tipo de concisão, que consegue ser expansiva invés de redutora por meio de uma linda montagem imagética e falada. É um filme falado, um filme de causos, de contação de histórias, de apontamentos, uma conversa de Kleber com o público.

Desde o início fica claro o grau de pessoalidade desse filme-ensaio dividido em três partes, na primeira parte somos apresentados a um passado geográfico espacial da família de Kleber, a história do apartamento em que ele cresceu e gravou muitos dos seus filmes, o entorno real que inspirou a construção de “O Som ao Redor”, por exemplo. Nessa linha, Kleber poderia ir para um lado mais autobiográfico, da história por trás de sua obra e carreira, mas não, o diretor escolhe seu universo pessoal para tratar de espaço e tempo.

A filmografia de Kleber é caracterizada por um forte olhar geográfico, seja construindo um bairro microcosmo da luta de classes, abordando especulação imobiliária ou o apagamento de populações e seus territórios. Em “Retratos Fantasmas”, esse senso de espaço está mais explícito que nunca, a casa de Kleber é um espaço cinematográfico, cujas reformas, mudanças, internas e externas afetaram diretamente na obra e vida produzida ali, algo exposto e refletido no filme sem vieses naturalistas, que são geralmente apontados em seus filmes. Nesse sentido, talvez o novo documentário do diretor permita uma percepção melhor das vontades e pulsões que ele carrega em seus filmes, buscando panoramas socioespaciais que às vezes são lidos como um tanto deterministas.

O olhar que Kleber trás aqui é herdado de sua mãe Joselice, historiadora e pesquisadora de história oral, que é o que o filme busca ser, com uma narração em off de apontamentos factuais e subjetivos de forma descritiva e pontual num ritmo espaçado e calmo, despidos de variações emocionais nos tons de fala de Kleber, que não surpreendentemente, fala de forma parecida ao vivo. Entretanto, esse tipo de narração não dá uma seriedade ao filme, muito pelo contrário, os apontamentos nunca chegam a ser formais, são como uma conversa despojada, com humor e ironias, como se ele apontasse com o dedo para um álbum pessoal de imagens de arquivo e próprias para nos contar um causo, chamar atenção para algo que ele notou e que pelo conjunto desse roteiro ganha outras linhas de significação e reflexão. Kleber escolhe ser conciso em suas falas para não acabar sendo pretensamente totalizante.

Depois de conhecermos os espaços pessoais da vida do diretor, diretamente atravessados por suas ficções nessa história oral de vida, vamos para o centro do Recife e seus cinemas de rua nas outras duas partes do documentário, que são uma espécie de história oral temática, fazendo comparações com termos historiográficos. Vemos o carnaval, vemos as pessoas, os corpos em movimento nesse centro (ainda cheio) de vida.

Visitamos os antigos cinemas de rua por uma vastidão de imagens de arquivo que valem por si mesmas, muitos vídeos filmados por Kleber em diferentes fases da vida, com isso, conhecemos alguns personagens com histórias singulares e decisivas para Recife e seus cinemas de rua, vemos uma verdadeira cartografia afetiva ser construída pela junção de um grande trabalho de pesquisa com o acervo e o narrar pessoal do diretor.

Foto: Divulgação/Vitrine Filmes

Conforme o filme avança nas relações de passado e presente desses cinemas, o intuito de tratar espaço e tempo se complexifica, a carga histórica na arquitetura reveladora e determinante desses lugares, a aura de poder do espetáculo que atravessa o tempo em espaços quase míticos por virarem cinemas e depois virarem igrejas, as imagens fantasmas que habitam a memória dos lugares.

Senti uma mistura de nostalgia e melancolia, mas no fim me senti esperançoso, talvez pela forma agridoce com que o filme termina ou talvez por sentir que apesar da situação do cinema brasileiro, refém à dinâmica de shoppings e ingressos antipopulares, em alguns centros urbanos se veem movimentos de resgate de cinemas de rua históricos por uma lógica cultural que mescla a prática comercial com a prática de cinemateca, como no Cinema São Luiz em Recife.

Talvez seja pontual, mas é lindo ver as pessoas voltando a lotar os cinemas do Grupo Estação no Rio de Janeiro em sessões de programações fantásticas que alimentam e renovam a cinefilia, criando verdadeiros eventos que nos lembram desse poder de um cinema ritual, mesmo depois de quase fecharem as portas por dívidas na pandemia.

O Cinema não tem mais a potência que tinha numa era pré TV, pré TV por assinatura, pré fita cassete, pré DVD, pré internet e pré streaming, essa potência hoje está em outros lugares, mesmo que às vezes nos mesmos espaços. Entretanto ele ainda tem um grande poder e isso está em disputa. “Retratos Fantasmas” não é uma ode nostálgica ao Cinema, ele não termina como “Goodbye Dragon-Inn”, de Tsai Ming-Liang, Kleber simbolicamente constrói uma espécie de história oral audiovisual. Sabendo que não se historiciza algo só pela memória, só pelo passado, Kleber celebra o centro de Recife e seus cinemas de rua com vontade de resgate, retomada e mudança.

Ao pensar sobre o final do filme, me peguei olhando para espaços de cura, nos que temos e nos que tínhamos, sem idealizações ou rechaçamentos, aquelas imagens me lembraram que no fim tudo isso é produto, o que não tira o encanto da coisa, talvez só um pouco, de toda forma, me prendo à beleza trágica e mítica de virar imagem, virar fantasma.

Assista ao trailer do filme: