Estudo sobre Comunidades de Fundo e Fecho de Pasto, na Bahia, aponta impactos da produção de energias solar e eólica e as disputas territoriais no interior do estado

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O Grupo de Pesquisa GeografAR, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), realizou nos últimos dois anos e meio uma pesquisa para mapear as associações das comunidades tradicionais de Fundo e Fecho de Pasto (CTFFP) no interior do estado. O estudo foi executado por meio de convênio de cooperação técnica celebrado entre o Grupo e o Governo do Estado da Bahia, através da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (SEPROMI). Historicamente, essas comunidades sofrem ameaças pela disputa de seus territórios que se acentuaram muito, atualmente, diante do interesse de implantação de parques de geração de energias solar e eólica, além da mineração. Apesar da resistência das organizações, a situação tem sido muito difícil e, muitas vezes, os processos dividem famílias e comunidades.

Foram identificadas pela equipe do mapeamento – composta por mais de 50 integrantes, entre pesquisadores, articuladores de campo e organizações parceiras –  quase 600 associações de comunidades tradicionais. Este é mais um resultado da produção coletiva do conhecimento realizado pelo GeografAR, que, há mais de 25 anos, acompanha a situação fundiária do campo baiano. Em todas as oito regiões da área pesquisada, foi possível verificar que a grande maioria das famílias está há mais de 200 anos nos territórios. Algumas chegam a ter documentos de 1720, mas a grande maioria não tem registros nem a regularização fundiária. Com um conhecimento profundo sobre a convivência com os seus biomas, passado de geração para gerações, as posses de terras foram transmitidas ao longo do tempo, sem registros ou escrituras.

Para tratar do assunto, conversamos com Guiomar Inez Germani, doutora em Geografia pela Universidade de Barcelona, Espanha, e uma das coordenadoras do GeografAR. Com um vasto conhecimento sobre pluralidade cultural, territorialidade e identidade, ela destaca a importância dos modos de vida locais articulando áreas individuais e coletivas, que estão sendo fragmentadas com a chegada das frentes de expansão do capital. Ao invés de o Estado intervir em defesa das populações tradicionais que têm, há séculos, um modelo de desenvolvimento sustentável, segundo ela, as empresas têm sido favorecidas no processo de regularização fundiária. É uma situação dramática que, apesar das resistências de entidades locais, muitas famílias estão recebendo valores irrisórios pelos arrendamentos, expulsas ou impedidas de terem a regularização de suas terras/territórios de forma justa.

Como foi realizado o estudo e quais as constatações?

Terminamos a pesquisa e apresentamos o relatório final – que está disponível em www.geografar.ufba.br. Agora, é preciso dar continuidade à análise dos indicadores e  desse vasto material coletado. O nosso universo de pesquisa foi definido pela relação das associações com processos/registros de regularização abertos na Coordenação de Desenvolvimento Agrário (CDA), da Secretaria de Desenvolvimento Rural (SDR), em 2018.  Identificamos e georreferenciamos 585 associações, mas, como cada uma delas é formada por uma ou mais comunidades, não retratam o universo real de todas as existentes. As comunidades tradicionais assumem, em geral, suas identidades diante de situação de risco de perder seus territórios. Passam a se reconhecer e autoidentificar como Comunidades Tradicionais, como condição para acionar os marcos legais que garantem seus direitos coletivos. Por isso, entendemos que a identidade é, em primeiro lugar, política. Defendem os seus direitos territoriais, base da garantia da reprodução da vida, da cultura, de suas manifestações etc. Se não tiver garantido o seu pedaço de chão, onde projetaram vida e trabalho, não garantem mais nada.

Onde são encontrados e quem são os atores sociais do Fundo e Fecho de Pasto?

São Comunidades Tradicionais encontradas no semiárido baiano, e suas denominações estão  vinculadas às estratégias de constituição de seus modos de vida nesses locais. Os Fundos de Pasto se localizam mais na Caatinga, onde há mais escassez de água, e os Fechos estão no Cerrado ou em sua transição, em regiões mais úmidas, com muitas veredas onde tem mais água. Muitos se denominam, também, geraizeiros e reivindicam uma identidade diferenciada. A grande maioria dessas comunidades ocupa terras devolutas, embora algumas tenham título de compra e doações. Cada uma tem a sua narrativa sobre sua história, mas em geral alguém chegou em terras desocupadas, foram chegando outros parentes, criando os filhos e fincando raízes. Estudiosos atribuem suas origens históricas à crise da cana-de-açúcar no litoral, que redefiniu o manejo da criação de gado para atender à mineração. Quando esse atrativo acaba, os sesmeiros (tinham o direito de usufruir assegurado por meio de cartas de doação durante a colonização) abandonam o criatório de gado e a terra que passa a ser ocupada pelos antigos vaqueiros e suas famílias. Criam laços de parentesco ou de compadrio com outros que chegam, através de casamentos e batismo, que é  uma das suas características.

Mesmo no Cerrado, onde há mais água, tem o tempo das estiagens e na Caatinga a escassez é muito grande. Aprenderam a conviver com essa limitação e conhecer as características do solo, a vegetação, criando uma relação com a natureza e um saber muito grande adquirido no cotidiano do trabalho e da vida.. A partir daí vai sendo definida a sua organização social, espacial e da produção e, como decorrência disso, há uma enorme diversidade impossível de generalizar.. Mas é possível identificar características comuns, como a articulação de lotes individuais com áreas de uso comum: uma apropriação para o uso e não para a troca como propriedade. Os limites entre lote individual e área de uso comum – definidos por uma árvore, uma pedra, ou marcações denominadas de variantes, etc. –, são muito tênues. As cercas não definem propriedade, são usadas para proteger a roça dos animais e outras funções.

Nos Fundos de Pasto são criados animais de pequeno porte, as casas são distantes e servem para proteger e observar os animais, que pastejam pelas áreas comuns e individuais  incorporadas ao uso coletivo. Eles têm uma espécie de alfabeto para marcar as orelhas dos animais (sinais, furos, cortes, etc), que os identifica em caso de sumiço, doença, roubo, etc. Os animais  andam o dia inteiro atrás de comida e voltam no fim da tarde. No semiárido chove, mas a chuva não é uniforme, então só floresce a vegetação onde a água cai. A sabedoria da terra de uso comum, construída nessa convivência com uma situação adversa, possibilita aos animais encontrarem sempre algum alimento. Nas áreas de Fecho de Pasto, tem uma vegetação nativa mais densa do bioma Cerrado, plantam mais pela presença de água, criam animais de maior porte e na época de estiagem os animais são levados aos refrigérios, que ficam nos vales das montanhas. É a  articulação do lote individual e a área coletiva que permite a sustentabilidade dessas comunidades.

Guiomar Inez Germani

Quando você se refere ao crédito que entra na década de 1970, é política pública influindo nesse modo de vida a partir do Estado?

A partir da década de 1970, esses agricultores, sertanejos, catingueiros, vaqueiros etc., foram atingidos pelo avanço do capital e toda a reformulação produtiva que ocorreu no Vale do São Francisco. Isso ocorreu através das políticas de incentivo fiscal implementadas pelo governo federal no Nordeste pela Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) e do Departamento Nacional de Obras contra as Secas (DNOCS), sob o nome de “desenvolvimento”. Como parte dessa intervenção do Estado, houve a construção de infraestrutura, em especial da malha rodoviária, que contribuiu para a conexão de regiões bastante isoladas e a valorização das terras e a sua disputa de várias formas. Esta situação se torna muito perversa e violenta pelo fato de que a grande maioria das terras ocupadas não estava, e seguem não estando, regularizadas.

O Estado é chamado a intervir nas situações de conflitos. Na Constituição baiana, de 1989, as Comunidades de Fundo e Fecho de Pasto, pela pressão de suas organizações e das entidades de apoio, tiveram reconhecidos os seus direitos territoriais. Porém, o seu território foi fragmentado e a articulação, historicamente construída entre o lote individual e a área de uso comum, foi rompida por  força de lei. O Art. 178 diz que a área de uso comum é reconhecida, através de uma associação, como direito real de concessão de uso, por tempo a ser determinado. O lote individual é regularizado como propriedade definitiva e plena. Teve início a um processo lentíssimo de reconhecimento e de regularização fundiária. Em 2013, com a Lei nº 12.910, foi determinado o prazo de 90 anos para Concessão Real de Uso, podendo esta ser renovada. As comunidades têm que encaminhar o pedido de certificação de sua autoidentificação como Comunidades Tradicionais para a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial  (SEPROMI) do Estado. Após isto, encaminham a  solicitação de regularização fundiária da área de uso comum para Coordenação de Desenvolvimento Agrário (CDA).  Mais uma vez, a unidade do território foi rompida, É um processo muito complexo e verificamos na pesquisa que mais da metade das comunidades não está certificada, que é o pressuposto para regularização. E essa mesma Lei n º 12.1910 estabeleceu um marco temporal para esses pedidos de certificação  até 31/12/2018. Apesar de todo o esforço da Articulação Estadual das Comunidades Tradicionais de Fundo e Fecho de Pasto, por força desta lei, muitas já teriam perdido  seus direitos. A Articulação deu entrada com a Associação dos Advogados Rurais (AATR) numa ação de inconstitucionalidade contra o Estado da Bahia, que está no Supremo Tribunal Federal (STF).

Mas voltando aos créditos, além do incentivo às frentes do capital, também há um esforço do Estado em inserir estes camponeses no modelo de produção hegemônico, cuja lógica do mercado cria linhas de créditos individuais voltadas para a produção. Incentivar cultivos e/ou a criação de animais em outros moldes implicava em cercar o lote individual e tirar a área incorporada também ao uso comum. Muitos conflitos internos ocorreram devido a aplicação dos créditos individuais, que exigiam uma nova organização do espaço. Hoje a produção das comunidades tem se organizado em cooperativas ou várias associações, nas quais muitas mulheres têm se destacado. É uma produção pequena, mas tem muito dinamismo e importância na relação das comunidades com outros espaços. A juventude está dando continuidade a  seus estudos nas Escolas Famílias Agrícolas (EFAs) e nos cursos de Educação no Campo, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), que oferecem  cursos voltados às tecnologias de alimentos, para produção entre outros. Essa meninada está valorizando e voltando para suas comunidades, incorporando práticas e técnicas aos seus modos de vida para aumentar a produtividade, garantir a reprodução dos animais e aumentar a renda, com respeito ao modo de vida tradicional.

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Essa Articulação atende as quase 600 associações identificadas?

A Articulação Estadual é uma longa caminhada dessas comunidades para se organizarem, saírem da invisibilidade e terem projetos que fortaleçam seu modo de vida, como o “Fundo de Pasto que queremos”, desde 2001. Inicialmente, as  comunidades passaram a se organizar através das assessorias e das organizações populares (Comissão Pastoral da Terra – CPT, Fundação de Desenvolvimento Integrado do São Francisco – FUNDIFRAN e outros parceiros) e hoje tem uma organização própria. Passaram a realizar encontros estaduais onde vão se conhecendo, identificando suas diferenças e pontos comuns, e se articulando na defesa de seus territórios. Cada regional tem sua orientação política, mas, desde 2008, no III Seminário, em Senhor do Bonfim, houve a constituição da Articulação Estadual de Fundo e Fecho de Pasto, que unifica a luta na diversidade.

A Articulação atua em várias frentes e tem tido uma posição firme e clara com relação aos enfrentamentos à política energética do Estado. A Bahia tem uma situação privilegiada para geração de energia eólica e solar, e as terras nos corredores de vento estão mapeadas e disputadas por grandes empresas. Com a corrida da crise energética, o estado passou a dar todo o apoio e incentivo para implantar esses parques. Fica entre as empresas e as comunidades atingidas, em especial as que não têm seus territórios regularizados. Prova maior é a Instrução Normativa 01/2020, emitida conjuntamente por várias secretarias de Estado, que favorece as empresas ao dispor “sobre os procedimentos de regularização fundiária em terras devolutas estaduais com potencial de geração de energia eólica”. Não atende a reivindicação histórica das comunidades, mas das empresas.

No início, as empresas estavam agindo livremente e são inúmeros os relatos de pressão, violência e atrocidades para entrarem nas terras, em especial nas áreas que não tinham título e ficavam numa situação de fragilidade. As empresas forçavam as famílias a abrirem mão de suas posses e depois davam entrada a processos de regularização através de usucapião. O Estado passou a proibir a compra de propriedades por parte das empresas e colocou condições para o arrendamento que, mais uma vez, esbarra na não regularização fundiária das propriedades. Com a IN 01/2020, as comunidades ficam sob dupla pressão: das empresas e do Estado.

Além do valor baixo do contrato, as condições são quase de confisco da terra e a implantação dos aerogeradores pode coincidir com áreas de uso comum – no caso a Associação recebe o valor do arrendamento –, ou nas áreas individuais – quando o valor é pago diretamente para o proprietário do lote. Então, acontece de tudo, desde comunidades resistindo, pois sabem que haverá interferência, na natureza e no seu modo de vida e , até situações de pessoas ou associações se dividindo e aceitando. Essas comunidades, mesmo que estejam preparadas para enfrentar uma seca no sertão, não dominam essa papelada fundiária e envolvendo dinheiro muda tudo, é outra lógica. As comunidades tradicionais de FFP não são comunidades isoladas, não estão paradas no tempo, se relacionam e têm uma dinâmica e importância econômica e também suas contradições. Estão se reproduzindo com seu modo de vida há muito tempo e a atuação da Articulação contribui para isto. São uma riqueza que temos na Bahia, com uma base de conhecimento e sabedoria que conhecemos muito pouco. Toda intervenção deveria ser muito delicada, no sentido de fortalecer e não romper sua lógica de reprodução e sustentabilidade.

Quando começou esse processo de conflito com as empresas de energia eólicas?

Desde 2012, no município de Brotas de Macaúbas, começaram a implantar parques eólicos nos territórios de comunidades. O estado tenta controlar a ação das empresas, o que é positivo, porque seria um massacre total. Os relatos são assustadores, pois, as empresas, para terem acesso à terra, utilizam de todos os mecanismos legais e ilegais. Mas o estado intervém, dentro da sua contradição, priorizando as frentes do capital, pois para ele são as empresas que vão fazer o esperado desenvolvimento. Sem dúvida, trata-se de “racismo ambiental”. Nas negociações, é uma miséria o que as empresas pagam às comunidades. As empresas têm um lucro exorbitante, mesmo com o custo altíssimo de implantação. Estão fazendo agora os parques híbridos, com energias solar e eólica, e as comunidades começam a entender mais e a discutir os valores dos contratos. Começam a perceber que, se a fonte de energia é “limpa”, os métodos de implantação são “sujos”, pois produzem um estrago muito grande. Abrem estradas para passarem caminhões enormes para transportar os aerogeradores; acabam com muitas nascentes:  a poluição sonora constante interfere na produção, no criatório entre outros problemas. É muito difícil, porque a possibilidade de receber pelo arrendamento acaba fascinando as pessoas. É uma correlação de forças muito desigual e, com a crise hídrica e energética, o estado está vindo com tudo. Temos, hoje, na Bahia, aproximadamente, 196 parques eólicos em operação, 206 em implantação e 284 com requerimento de outorga, distribuídos em 56 municípios.