A festa da Academia pode ser local e momento de protestos? Há mais de 50 anos, Marlon Brando já era responsável por vaias na plateia e atitudes furiosas nos bastidores da noite mais importante da indústria do cinema

Sacheen Littlefeather recusando a estatueta do Oscar pelas mãos de Roger Moore acompanhado de Liv Ullman. Foto: Getty Images

Por Aline Gomes para Cobertura Colaborativa da Cine NINJA

Se algumas cenas mais recentes da cerimônia do Oscar já têm deixado boa parte da audiência em choque, em 1972 Marlon Brando já havia surpreendido o público da festa mais conhecida do universo cinematográfico. Naquele ano, Brando ganhou a estatueta na categoria de melhor ator por sua atuação em “O Poderoso Chefão”. O ator não foi receber o prêmio, mas enviou uma representante: Sacheen Littlefeather, uma jovem ativista apache. Apesar da noite festiva, Littlefeather se apresenta no palco com um rosto sério e preocupante, postura condizente com sua fala que abordaria os problemas políticos e culturais que atingiam os povos originários. Diante da elite do cinema americano, Littlefeather recusa o prêmio informando que a ausência de Brando representava um protesto pelo tratamento que a indústria hollywoodiana dava aos indígenas americanos. Nesse momento se escutou uma mistura de aplausos, gritos e vaias vindos da plateia. A ativista respira, pede licença e continua seu discurso mencionando o recente confronto entre o governo americano e os nativos da região de Wounded Knee, no estado de Dakota do Sul. Ainda naquela noite, a rejeição à fala da ativista indígena seria reforçada por Clint Eastwood. Momentos depois, ao apresentar a categoria de melhor filme, Eastwood ironiza o protesto dizendo: “não sei se eu deveria apresentar essa categoria, considerando todos os cowboys filmados durante todos esses anos nos faroestes de John Ford”.

A hostilidade com Littlefeather não se finalizou com as vaias recebidas do público e se expandiu para os bastidores. Em uma entrevista para a BBC, em 2020, a ativista relata que foi necessário deixar o palco acompanhada por dois seguranças. Ela explica a necessidade dos seguranças naquele momento: “porque John Wayne estava nos bastidores, com seis seguranças e estava furioso comigo, ele queria me tirar do palco por causa do que eu havia dito.”

Brando não havia sido o primeiro artista que usava a cerimônia para protestar politicamente. Em 1935, Dudley Nichols ganhou o Oscar de melhor roteiro original por “O Delator”. Ele também recusou a estatueta em protesto, dessa vez o motivo era pelo não reconhecimento da Academia dos diversos sindicatos do cinema, inclusive o sindicato dos roteiristas.

Nas décadas seguintes outros artistas também utilizaram o palco do Oscar para dar visibilidade às pautas políticas e sociais. De Susan Sarandon a Sean Penn, abordaram em seus discursos tópicos de guerra a direitos LGBTQIA+, entre outros temas. Na premiação de 2016, Will Smith e Jada Pinkett Smith divulgaram o boicote ao Oscar em protesto pela lista dos indicados serem predominantemente brancos.

Ao olharmos para todos esses atos, uma pergunta é inevitável: eles resultaram em alguma mudança? A resposta é difícil de ser mensurada. Sacheen Littlefeather afirma que seu discurso gerou repercussões. Ainda na mesma entrevista de 2020 para a BBC, Littlefeather ressalta que foi somente após sua participação no Oscar que o bloqueio da divulgação midiática sobre o conflito em Wounded Knee foi rompido. Sua fala chamou a atenção do mundo e outras emissoras, além das americanas, direcionaram o foco para o conflito indígena em Dakota do Sul.

Ian Allison, da etnia Navajo nos Estados Unidos, também vê positivamente as consequências do protesto de 1972. Allison, que apresenta o “Native Film Talk”, um podcast que promove o debate sobre a imagem do indígena no cinema, produziu um episódio dedicado à polêmica de Oscar de 1972. Para Allison, depois daquela cerimônia a representação indígena passou a ter uma vertente positiva. Ele ainda comenta a importância da atitude de Brando, se perguntando se ninguém tivesse se manifestado naquele momento, quanto tempo mais levaria para o debate aparecer na sociedade americana?

É fácil se deixar levar pela festa do cinema com todo aquele glamour protagonizado pelas celebridades e alguns de nossos artistas preferidos, obras sendo aclamadas e histórias sendo reverenciadas. Inevitavelmente a premiação nos induz ao deslumbramento. Essas manifestações políticas podem causar, além do choque, dos escândalos e possíveis repercussões mais concretas, uma reavaliação do papel dessa grande cerimônia. O posicionamento crítico dos artistas nos dão outras perspectivas. Quando Dudley Nichols denunciou o descaso da Academia com os roteiristas, ele demonstrou que esse grupo era mais do que uma instituição que presenteia estatuetas douradas. A academia tem muita influência política na indústria do cinema e a forma como ela atua pode afetar a vida de muitas pessoas. Quando os atores boicotam a premiação para denunciar a falta de diversidade no Oscar, é um sintoma de que a Academia não é uma entidade imparcial e reflete as desigualdades e preconceitos existentes na sociedade.

Se há mais de 50 anos atrás a saída foi dar voz para quem não encontrava espaços de projeção, talvez o caminho atual seja tomar as rédeas da própria produção cinematográfica. Como fez o povo Uru-Eu-Wau-Wau que para mostrar ao mundo a luta em defesa de suas terras, realizaram o documentário “O Território”. Dirigido pelo norte-americano Alex Pritz e com coprodução dos Uru-Eu-Wau-Wau, o filme já está rendendo frutos. A produtora-executiva do filme, Txai Suruí, numa entrevista para a Rádio França Internacional, exemplifica bem como o cinema pode ser instrumento de abertura para o mundo trazendo pautas políticas: “A gente quer que o filme seja um instrumento de transformação e de mudança, não só no Brasil mas no mundo inteiro. A gente está usando o filme para abrir diálogos com outros governos”. Apesar de ser uma produção fora do radar da Academia, o documentário ganhou prêmios no Festival Sundance de Cinema, nas categorias: Prêmio do Público e Prêmio Especial do Júri para Arte Documental. Com o dinheiro arrecadado pelo filme, segundo Paula Carvalho da Revista Quatro Cinco Um, os Uru-Eu-Wau-Wau estão construindo um centro multimídia para realização de filmes, oficinas e outras atividades culturais. Nesse caso, a repercussão cinematográfica promoverá a própria voz dos indígenas, uma vez que são eles que construirão sua própria obra audiovisual e como resultado se tornarão autores das suas próprias histórias.

Texto produzido em cobertura colaborativa da Cine NINJA – Especial Oscar 2023