Jade no set de “Todxs Nós”

Por Amanda Olbel / @planetafoda

A entrevistada dessa quinta-feira para a seção #ArtistaFoda da Mídia NINJA e FODA é a artista visual Jade Sassará. Nascida no Rio de Janeiro, retorna à sua terra natal após passados três anos de imersão, trabalho e encontros na cidade de São Paulo. Multiartista transgênere, trabalha com design de som, moda e audiovisual, e se percebe estar num ciclo de busca constante a respeito de si mesma e de suas produções. Formada pela Dubspot, escola de produção musical de NY; assinou a direção sonora da peça “Por Favor Venha Voando”, dirigida por Georgette Fadel; participou com três criações no desfile de Vicente Perrotta para Casa de Criadores; e além de personagens na TV, interpretou Juno no seriado “Todxs Nós” da emissora HBO.

“Acho que um ponto de partida importante é o reconhecimento que fui tendo, mais atualmente, da minha necessidade de transmutar os imaginários que me eram impostos. Um desejo de criação de outras realidade a partir do encontro com outras pessoas que também se viam deslocadas em relação aos imaginários coloniais, –  dessa estrutura europeia, branca cisgênera. Uma tentativa de criar espaços onde nós pessoas trangêneras existamos com a nossa justa potência. Onde pessoas pretas e indígenas existam com suas justas potências. Acho que esse encontro, entre corpas dissidentes, seja elas quais forem, é algo que nutre muito meu entendimento em relação ao que eu faço”.

Jade nos conta que o olhar artístico desenvolvido desde criança é muito pautado pela estruturação de sua família, e de como lhe foi ensinada a enxergar o mundo. Sua mãe é psicanalista, e sempre teve uma relação muito forte com a mão, ou melhor, o fazer com a mão, e diz tê-la visto mexer com argila em vários momentos, causando-lhe grande interesse pelo material e sua ação criativa e modeladora. Então desde sua primeira infância já havia em Jade esse desejo de criar com as próprias mãos, buscando também sua identidade através desses contornos que lhe eram externos. Menciona também sua avó paterna, de origem libanesa, que lhe disse recentemente uma frase, – e acredita dizer muito à seu respeito e ao que busca ao longo de sua vida até então: “A vida floresce pelas mãos”.

Foto: arquivo pessoal

“Fui atravessada, busquei na música quando era adolescente, e durante o tempo em que toquei bateria, isso me acabou levando para um mergulho nesse universo sonoro. Por frustrações e traumas, de como esses meios funcionam economicamente, nessa tentativa de se inserir no mercado, acabei me distanciando da música e fui buscar no meu corpo, me descobrindo uma potência criativa.”

Com isso iniciou uma investigação pessoal, através da atuação no teatro, assim como no meio da moda, enquanto modelo. Sassará foi levada para uma outro aprofundamento em relação a que campos poderia explorar para constituir sua identidade, muito pautada nos atravessamentos e cruzamentos afetivos entre pessoas. Enfatiza ser algo de importância na sua trajetória por conta de uma dificuldade de reconhecimento quando jovem, em relação as referências que eram colocadas, quanto uma travesti branca, ser socializada e educada, para ser macho. E por nunca ter se comtemplado com essa padronização de comportamento buscou outras maneiras de poder estar se afirmando, dentro da sua potencialidade múltipla.

Hoje volta a se relacionar com a música, e diz estar sendo um processo de cura muito forte e importante, por conta de um desejo intenso de se desenvolver nesse universo sonoro, e também de como conseguir se estruturar financeiramente. Logo, se percebe entendendo suas frentes, e de como as articula, estando cada vez mais atenta a quais desejos estão pulsando de fato nessa caminhada.

Também nos conta sobre sua enorme pesquisa corporal que teve com durex, fita transparente, em um processo de produzir próteses que sirvam de acessórios, com a ideia de vestimenta como uma extensão de si, pelo que nós entendemos como roupa, assim como da mesma maneira, o que não entendemos como roupa. E assim, ressignificando e expandindo os signos aprisionados pelo sistema cisgênero. Questionada à respeito do paralelo conceitual com o trabalho do tropicalista Helio Oiticica, Jade afirma que apesar de reconhecer as intersecções, percebendo o movimento todo como uma potência muito grande, arrisca a dizer que tem a ver com a ruptura de um imaginário imposto.

Foto: arquivo pessoal

“Acho que Hélio Oiticica foi uma pessoa que rompia, debatia e atritava muito uma relação estética com a estética hegemônica na época. Mas em outro lado vejo uma diferença muito grande com o movimento da Tropicália e o que nós construímos hoje, e eu digo “nós” enquanto corpas dissidentes, porque acredito que essa localização, esse mapeamento em relação a arte, e qualquer possibilidade de expressão, que parte nessa atenção e consciência a que lugar é esse em que estamos ocupando socialmente. Sinto que na Tropicália, questionaram muito um lugar político, num momento de ditadura no país, mas ainda com um olhar distante de quem são esses corpos que estão na mira de uma hegemonia política. E acho que não havia um questionamento em relação a classe, raça e gênero como temos hoje em dia. Acho que os propulsores desse atrito que os trabalhos do Hélio Oiticica geravam, na época, são diferentes dos propulsores que geramos hoje em dia.”

Adiciona ainda em sua fala de que em termos de estética, não consegue pensar em sua construção sem contar as que vieram antes: “todas as travestis que estiveram nessa terra antes de mim e que abriram muito espaço e atritaram muito esses imaginários hegemônicos até eu chegar e desenvolver minha visão a partir do que estava ao meu redor”. Suas inspirações, independente das linguagens, partem desse tecer coletivo, e de outros imaginários, sendo nutrida por eles, e se reconhecendo enquanto uma transmutadora que continua a tecer e mover subjetividades e provocações que vieram antes de si.

Dentre elas todas, cita algumas amizades e referencias que lhe são caras e de muita relevância como Jup do Bairro, Arca, Maria Clara Araujo, Castiel Vitorino, Sabine Passareli e Estileiras.

Revela também uma experiência transformadora que teve durante uma residência na Chapada dos Veadeiros, chamada de “Corpas Liquidas”, em uma oficina ministrada por Meujaela e  Kildery Iara, duas pessoas do recife que estudam movimento, dança e dialogam com performance.

“Foi muito potente justamente por ter uma quantidade enorme de pessoas trans no mesmo espaço, numa terá extremamente viva. O cerrado tem uma coisa de uma secura fértil , que me interessou com aquela vegetação. Muitas das pessoas que se vêem a margem, e fora de um processo de identificação, existe uma secura, e acabamos por ter que encontrar maneiras de conseguirmos nos tornar férteis no meio dessa falta”.

O que acaba por fazer um paralelo bem bonito com a fala de sua avó. Pessoas transgêneres estariam não só florescendo a vida através das mãos, mas também lutando com a ausência de um elemento essencial como água é para as plantas do Cerrado, e dessa forma desenvolvendo uma singularidade, justamente por isso.

Foto: arquivo pessoal

Sassará também participou do seriado “Todxs Nós”, com temática voltada à não-binariedade e comunidade lgbtqia+ num geral, produzido pela HBO, onde interpretou a personagem Juno. Manifesta ter sido uma experiência extremamente forte e potente tanto pela parte de muito tesão e prazer de estar desenvolvendo Juno, assim como os contatos, as pontes e os diálogos com as pessoas maravilhosas com as quais trabalhou. Pra além disso, ao mesmo tempo, perceber as problemáticas de uma serie que infelizmente, ainda tem que ser escrita por pessoas cisgêneras e brancas, por conta de negociações feitas para que essa serie seja veiculada numa emissora como a HBO. Todavia, compreende nos tempos de agora, ser muito importante começarmos por uma algum lugar.

“Fico muito provocada, contemplada e movida pelo espaço que se abre, quando duas pessoas que são a Vera Egito e O Daniel Ribeiro se propõe, tomando um risco de estar trabalhando com uma temática que não é de experiência indenitária deles, mas abrindo essa possibilidade ao se desporem a fazer uma série com uma narrativa não-binária chegando em um canal e numa empresa como essa.  Então eu vejo uma importância muito grande nessa abertura de caminhos, para que possamos criar esses novos imaginários, e se faz necessário ir permeando, ir estourando essas bolhas para que outras narrativas possam ser geradas, e principalmente, acho que quanto mais pessoas trans, periféricas, e racializadas estiverem tendo acesso a criar essas narrativas e criar histórias, mais potente e rico esse imaginário pode ser.”

Acrescenta ainda ter sido uma pessoa que nasceu nos anos noventa, e não teve muitas referências para estar construindo sua identidade, tendo feito muito a partir de uma relação com a rua e com os encontros. “Eu teria sido muito feliz se eu pudesse ter tido referências de pessoas trans, dentro de um discurso não pejorativo, sendo colocadas em cena com seu devido valor”.  Termos esse tipo de representação no audiovisual traz uma interferência positiva, em um cenário de pessoas que estão vivendo a adolescência agora, por exemplo, passando por momentos de descoberta importantes, relativas a nossas possibilidades de criação acerca da nossa identidade, sexualidade, pautada por outras narrativas que não o colonialismo europeu cisgênero patriarcal.

No decorrer da pandemia, perdeu o ateliê ao qual tinha acesso, durante sua estadia em São Paulo, então para ela, esse último ano foi muito sobre como entender a gerar e criar em casa, desenvolvendo em função disso uma performance com amigues, feita online com temporada de duração de três meses. Nos conta ter sido um processo muito e percebeu que nesse período de quarentena voltou a estudar mais, e a mergulhar no que sente vontade de construir e aprender. Entretanto, diz ter esse outro lado da moeda que é essa escassez de trabalho, de trocas e de encontros, e enquanto artista, se reconhece muito através do cruzo e do encontro, portanto adentrou em questionamentos sobre como continuar se nutrindo.  E é justamente dessa forma que esse projeto que desenvolve junto de Joana Castro, Manoela Aderena e Matheus Macena, intitulado de “Território”, nasce, formulando maneiras se viabilizar virtualmente, possibilitando esses encontros e essas provocações que fazem parte da sua carreira.

Jade Sassará compartilha fotos e informações de seu trabalho em seu perfil do instagram @jade.sassara. Para ter acesso e se manter informade aos próximos artistas de nosso mapeamento, siga nossa página @planetafoda, onde estaremos publicando novos nomes da cena artística todas as quintas-feiras.

Foto: arquivo pessoal

Foto: arquivo pessoal

Foto: arquivo pessoal

Foto: arquivo pessoal

Foto: arquivo pessoal

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