Foto: Leo Drumond/Arquivo ASA

Nas últimas décadas, movimentos sociais e sindicais do Polo da Borborema, no interior da Paraíba, conquistaram diversas políticas públicas para a agricultura familiar. A Lei N° 206/2014, que dispõe sobre o Programa Municipal de Sementes em Lagoa Seca (PB), é uma dessas grandes vitórias. Mesmo com a estiagem e as mudanças climáticas, além da pandemia e a pressão de grandes empresas para vender suas sementes ao Estado, a expectativa é que em 2022 a colheita ultrapasse 20 toneladas de feijão e fava e 13 toneladas de milho livres de transgênicos. Essa é mais uma experiência identificada pela iniciativa Agroecologia nos Municípios, realizada pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA). 

As sementes da paixão, como são carinhosamente chamados os grãos crioulos no estado, sempre foram preservados pelas/os  agricultoras/es. Hoje, mais de 170 famílias estão inseridas no Programa de Sementes, onde parte delas vende sua produção para a Secretaria de Agricultura e Abastecimento da cidade. São sementes nativas compradas de guardiões e guardiãs dos municípios próximos. Cerca de 1,4 tonelada foi comprada no início do Programa para distribuição, em março de 2021, a agricultoras/es de municípios vizinhos (quatro variedades de feijão, uma de fava e uma de milho), segundo o órgão. Após a produção, a compra chegou a 2,5 toneladas dos agricultores beneficiados pelo Programa, totalizando 3,9 toneladas de sementes.

Em 2007, foi construído no município o Banco Mãe, que teve sua concessão de uso autorizada em 2017, envolvendo 60 bancos de sementes comunitários nos territórios, atendendo mais de 1.500 famílias em todo o Polo da Borborema. Foram catalogadas no ano passado 27 espécies e 120 variedades diferentes de sementes com um estoque de 21 toneladas disponíveis para o plantio nesse banco mãe. Em 2021, o nível de chuva foi bem abaixo da média e mesmo assim o estoque de sementes aumentou, fruto da organização das famílias agricultoras.

Foto AS-PTA.

Sementes no banco mãe em Lagoa Seca. Foto AS-PTA.

O conhecimento secular sobre as sementes nativas é herdado desde antes dos avós das atuais lideranças, explica Nelson Ferreira, dirigente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) de Lagoa Seca. Com a autonomia e domínio delas, complementa, as/os  agricultoras/es não ficam reféns das empresas nem de sementes modificadas, além de garantir a independência em relação aos políticos “que, historicamente, as utilizam como moeda de troca por votos”. A luta do sindicato é buscar políticas públicas para que essas sementes cheguem às famílias de baixa renda, sobretudo para atravessar os períodos de estiagens mais severas.  

“Lutamos pela permanência das famílias no campo produzindo na roça de forma autônoma, e a saída foi a construção de bancos comunitários de sementes. Mas, já existia muita solidariedade, trocas e mutirões. Assim, nasceu a política de sementes, graças à mobilização social. Semente da paixão é o que temos de mais tradicional da nossa agricultura, é o que gera comida de verdade pelas mãos das/os agricultoras/es que plantam, guardam, secam e distribuem fazendo com que esse ciclo se mantenha. Herdamos todo esse conhecimento e manejo dessas experiências”, esclarece Ferreira.

O sindicalista explica que, antigamente, as/os agricultoras/es faziam as trocas e doações de sementes nas feiras livres e outros espaços de sociabilidade, até que os movimentos chegaram, por volta dos anos 1960, e tomaram frente das lutas pelos sindicatos. Todo o conhecimento adquirido ao longo de muitas décadas sobre os sabores, plantios mais rápidos, tamanhos, resistência à seca, e outras características da produção local, foram sendo repassados a partir das experiências testadas por essas/es agricultoras/es . Assim, foi aumentando a diversidade e adaptação dessas sementes ao longo do tempo e repassadas às novas gerações. 

Para as organizações locais, assim como o acesso à água e à terra, o uso da biodiversidade é estratégico, por isso é ponto central  das políticas públicas e na incidência junto ao poder público. Foram mais de 25 anos fortalecendo espaços organizativos do Polo da Borborema, que hoje integra uma rede de 13 sindicatos rurais e mais de 150 associações comunitárias. Nesse contexto, surge a associação EcoBorborema e a cooperativa CoopBorborema, que articulam várias ações e dão respaldo jurídico às experiências de produção e comercialização da agricultura familiar. Tudo isso só foi possível graças à mobilização das entidades sindicais locais junto aos movimentos, como a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA-PB), e a ONG AS-PTA. 

Imagem aérea do banco mãe de sementes com a quadra de secagem no meio. Foto AS-PTA

Trata-se de um processo de diálogo, criatividade e abertura política na relação entre a sociedade civil e a gestão pública, afirma Nelson Anacleto, atual secretário de Agricultura e Abastecimento da cidade. Ele tem um histórico junto às organizações locais enquanto sindicalista, e foi eleito vereador (PT) em 2013 também apoiando esses setores. É o autor do projeto que resultou na lei N° 206/2014 aprovada e ao assumir a pasta ajudou a implementá-la. Segundo ele, conservar e multiplicar as sementes no cenário de estiagem prolongada é um dos desafios para a agricultura familiar, pois nem sempre é possível guardar para o próximo ano e as sementes distribuídas pelo governo do estado não são adaptadas e não chegam no período certo do plantio. 

“Essa realidade foi a base para a construção e o fortalecimento dos Bancos Comunitários de Sementes (BCS), através da ação da sociedade civil e da Lei Nº 206/2014, e é resultado dessa caminhada de parcerias. Nossa proposta apresentada à Câmara de Vereadoras/es, em 2013, foi muito bem recebida pelos colegas e, no ano seguinte, foi sancionada.  É fundamental beber na fonte do conhecimento e das práticas tradicionais de manejo da biodiversidade, de séculos de conhecimento da agricultura familiar e camponesa. Passamos a dialogar com a sociedade e a construir uma compreensão política com a gestão para que pudessemos colocar na prática a lei municipal”, afirmou. 

O secretário também destacou outros programas, como o Lagoa Seca Verde, de arborização com o fornecimento de mudas; o sistema de armazenagem de silagem para a alimentação animal; programas de conscientização para o processo de transição agroecológica, dentre outros. Todas essas iniciativas estão em paralelo ao plano estratégico para a agricultura familiar, que foi elaborado ao longo de quatro meses por meio de um processo de diálogo com as/os  agricultoras/es , com plenárias regionais e uma conferência municipal no último dia 08 de junho. O documento com propostas está norteando a ação do município para os próximos quatro anos. 

Guardiãs de sementes

Passado de geração em geração, as/os agricultoras/es  dão muito valor ao conhecimento adquirido de seus ancestrais. A guardiã Luciclaudia Freitas de Araújo, de 43 anos, por exemplo, conta que esse costume foi transmitido por sua mãe e vem se fortalecendo a cada ano. Ela planta milho, jerimum, feijão macaçar, macaxeira, batata doce, feijão e fava, além de criar animais, como galinha de capoeira. Participa todo sábado de manhã de uma feira agroecológica local, onde vende seus produtos. Também comercializa a macaxeira beneficiada para a merenda escolar. Sua principal preocupação é com o consumo próprio de alimentos saudáveis e a capacidade de estocá-los em períodos de seca mais forte.

O plano municipal de sementes, segundo ela, veio fortalecer ainda mais as/os agricultoras/es agroecológicas/os da região valorizando a semente da paixão, que é muito importante para  todas/os. Ela agora está incentivando um grupo de mulheres a guardar e produzir essas sementes. “Isso faz com que não percamos os nossos costumes e possamos repassar aos nossos filhos e netos uma semente livre de transgênicos e venenos. Muita gente do município está vendo com bons olhos essa política. Esperamos que isso seja replicado em outras cidades para fortalecer a agricultura familiar e promover a alimentação saudável para nós e para as próximas gerações”, afirmou.

Em 2022, as ações do programa municipal estão sendo ampliadas através do estímulo do plantio das sementes da paixão em consórcios agroecológicos. Todo milho que é testado e tem seu resultado livre de transgênicos é vendido com acréscimo de 30% do valor de mercado para a CoopBorborema para produção dos derivados de milho. O algodão é comercializado também com valor acima do mercado. As sementes de feijão são empacotadas e comercializadas nas feiras e quitandas agroecológicas. Os demais frutos dos cultivos são destinados para alimentação das famílias e dos animais.

Desafios do Plano Municipal de Sementes

Existem muitas resistências para avançar em uma política pública de conservação e multiplicação de sementes da paixão. Em meio a várias fragilidades, o Governo do Estado da Paraíba distribui sementes não adaptadas transgênicas causando um grande impacto nas comunidades. A estiagem prolongada, as mudanças climáticas e a contaminação de sementes crioulas , em particular do milho, por transgênicos são problemas graves e que crescem nos territórios.

Nesse sentido, as organizações têm realizado campanhas, como a “Não planto transgênico pra não apagar a minha história”. Os enfrentamentos são diversos, como os com o Governo do Estado, que compra sementes convencionais, além dos embates com o governo do estado que operacionalizam esse programa estadual de distribuição de sementes.

Na primeira entrega das sementes distribuídas em 2021, a prefeitura efetuou a compra de 1.426 kg (23 sacos) de variedades de feijão e 700 kg de milho livres de transgênicos. Em termos de valores de compra aos agricultores e agricultoras, na fase inicial do programa, o custo foi de R$ 11.990,00. A segunda compra da produção foi de R$ 12.344,00, dando um total de R$ 24.334,00 nesse primeiro ano de distribuição.