Breu

Por Marcelo Mucida / @planetafoda*

Um mergulho dentro do corpo.
Dos corpos.
O azul.
Imensidão.

Entre recortes do cotidiano e fissuras de tempo-espaço, as criações propostas por Eduardo Fernandes provocam um olhar de encantamento para múltiplas existências e tudo o que podemos vir a ser, através do movimento.

O artista mineiro é o entrevistado desta semana para a seção do FOdA, a rede de ações LGBTQIAP+ vinculada à Mídia NINJA. Na conversa, ele compartilha alguns processos pessoais que, de alguma forma, influenciam nas obras que desenvolve atualmente.

Confira a seguir a entrevista na íntegra e saiba mais sobre este #ArtistaFOdA.

Apesar de já acompanhar o seu trabalho há um tempo, eu não sei muito sobre a sua história. Gostaria que você falasse um pouco, então, de onde você é, e como você começou a desenvolver essas criações. Quando que você se entendeu produzindo arte?

Eu sou natural de Salinas, que fica no norte de Minas. Uma cidade pequena. Sou formado em gastronomia, morei durante um tempo em Belo Horizonte, e depois acabei indo para Tiradentes, que é uma cidade histórica, para trabalhar com cozinha.

E foi lá que eu tive um momento bastante intenso. Eu falo que foi um reencontro com a arte porque eu acho que, por ser um lugar onde eu estava distante de todo mundo, isso me impulsionou a entrar numa certa crise e eu comecei a me questionar mesmo do porquê e para que estar ali, o que eu queria fazer… E então eu comecei a relembrar da infância e, hoje em dia, eu consigo ver que eu fiz arte durante toda a minha infância. Nessa época, eu comecei a resgatar qual tinha sido o momento em que eu perdi isso.

Mira (Felippe Moraes)

Em 2018, eu decidi comprar uns materiais para começar a pintar. E é engraçado porque foi um momento também em que eu procurei um tratamento alternativo para alguns problemas de saúde recorrentes, baseado na antroposofia, e eles têm uma abordagem que fala muito da psicossomatização. Então, nesse período em que eu comecei a produzir, eu tive uma intenção também de passar a compreender essa dimensão mais sutil, que a gente pode chamar de espiritualidade. E eu não sei o que veio primeiro, se foi o despertar para essa espiritualidade ou se foi para a arte, porque foi tudo tão junto e, pra mim, isso influencia muito na minha pesquisa, inclusive.

Então, eu acho que a minha trajetória até aí reflete bastante no que eu busco no meu trabalho, na poética…

Uma coisa que eu percebo dos seus trabalhos é a questão da escolha das cores. Eu vejo uma presença muito forte do azul, além de uns tons de rosa. Você quer comentar algo sobre isso?

Essa escolha das cores é uma questão que muita gente me pergunta.

No início, era algo muito intuitivo, que vinha muito desse lugar da sensibilidade. E, desde o começo, sempre foi o rosa e o azul, mas antes eu usava tons mais claros e agora eu uso um azul mais escuro, mais fechado, uma coisa mais noturna.

Depois de um tempo fazendo algumas coisas, eu me vi olhando para tudo o que eu já tinha produzido e tentando entender o porquê. Eu acredito que a nível do subconsciente aquilo estava ali por algum motivo…

Hoje em dia, eu vejo que o azul vem muito de uma intenção de lidar com o infinito, com o horizonte, além de ser uma cor que me acompanha desde a infância. Acho que sempre foi a minha preferida, mesmo sem pensar muito sobre isso.

E tem o rosa também que eu acho que causa uma sensação mais puxada para o material, para o carnal, e que também me lembra o entardecer, quando o céu fica rosa e azul.

Ser Fragmentado

Você acha que muito do que você retrata tem a ver com a sua vida, ou são imagens que surgem e que você acaba materializando?

De início, meu processo era muito o de achar uma foto interessante na internet e pintar a partir disso.

Depois, eu passei a produzir as minhas próprias imagens, usando amigos como modelos e o meu próprio corpo, que eu utilizo bastante também…

Mas eu acredito que, mesmo quando o trabalho parte de imagens de terceiros, isso é de alguma forma influência da minha vivência, porque é isso que vai fazer com que algo me chame a atenção. Se aquilo não me afeta, não me chama a atenção. Se me afeta, eu tenho vontade de pintar, de pegar aquela imagem…

Essa questão de retratar o corpo surgiu lá naquela descoberta da psicossomatização, mas hoje em dia eu entendo que ela faz parte da minha construção de trajetória porque eu fui criado numa família evangélica, em que havia muito pudor, e eu sou um menino gay que tinha várias pulsões que foram tolhidas durante muito tempo da minha existência.

Quando eu começo a pintar o corpo, eu acho que é muito um desejo de olhar para essas somatizações que estavam em mim, de encontrar esses traumas e de lidar com eles.

É engraçado porque, assim que eu comecei a pintar, eu li uma fala da Lygia Clark que me atravessou de forma muito forte. Ela dizia: “Se a pessoa, depois de fazer essa série de coisas que dou, consegue viver de uma maneira mais livre, usar o corpo de uma maneira mais sensual, se expressar melhor, amar melhor… Isso no fundo me interessa muito mais como resultado do que a própria coisa em si que eu proponho a vocês”. Então, para mim, era muito sobre isso. Sobre habitar o mundo de uma forma melhor, de uma forma encantada.

Corportal

Você começou a fazer essas produções mais ou menos em 2018. De lá pra cá, quais foram as principais formas de colocar esses trabalhos em troca com o público?

Pra gente que vem do interior, do norte de Minas, é um lugar muito difícil de se ter referências de artistas, de pessoas que conseguem se manter vivendo de arte.

E eu acho também que todo artista tem um processo de se entender enquanto artista e de defender a sua obra…

Depois de algum tempo, eu comecei a postar na internet algumas coisas que eu fiz e comecei a ter retornos positivos de alguns amigos.

Então, o início se deu totalmente através do Instagram. Mas eu sempre tive muita vontade de expandir isso, porque é uma outra experiência estar ali de frente para a obra. Acho que a internet não dá conta de substituir, ainda mais no caso da pintura.

Eu expus pela primeira vez no início desse ano. Foi algo menor por conta da pandemia, com poucas visitações, mas foi bem legal.

Agora, eu estou montando uma outra exposição que acontecerá de 20 de novembro a 20 de dezembro na Casa Guilda (Rua Dom João Pimenta, 243 – Centro), que fica em Montes Claros, onde moro atualmente, e eu estou muito a fim de vir para esse campo material.

Eu acho que o trabalho só finaliza quando ele se encontra com o público. Um trabalho de arte que não chega até o público, pra mim, é um trabalho que ainda não terminou.

Desconectar-se

O que você quer provocar de reflexão com os seus trabalhos, atualmente? Há um foco específico?

Os meus pensamentos sobre o corpo são a fagulha para o que eu tenho produzido até agora.

E, nesse momento, isso se envereda para um caminho que é pensar sobre como o nosso corpo lida com essa experiência contemporânea que a gente vive, colonizada, capitalista, cansada, desatenta, hiperconectada…

Eu tenho pensado muito numa visão desencantada. Acho que o desencanto mora justamente na não pluralidade da existência, dos corpos, discursos…

Quando eu comecei a pesquisar outras cosmovisões para além da cristã, europeia, colonial, eu fui encontrando um saber encantado, um saber que não abdica do corpo para ter contato com esse campo sensível, com essa espiritualidade.

Então, o que eu quero propor é um olhar encantado pra vida, pro cotidiano, diante da morte que é toda essa concepção unilateral da monocultura, da monogamia e de tudo o que pauta essa visão cartesiana, europeia, excludente…

Acho que o que eu quero causar nas pessoas é um espanto. Eu quero causar epifania. Eu queria muito poder mexer com o inconsciente das pessoas. E que isso, de alguma forma, possa virar alguma chave para elas.

O movimento é uma palavra muito presente no meu trabalho e eu gosto muito de pensar o movimento, justamente no sentido de poder mudar o estado das coisas.

Eu quero causar movimento.

Manto

Alguns prints do artista estão disponíveis para venda no site do Barranko Press, coletivo do qual ele faz parte.

As suas criações podem ser conferidas no perfil do Instagram: @eduardomesmo

Clique aqui e acesse todas as entrevistas que já foram publicadas para a seção #ArtistaFOdA.

*@planetafoda é a página de conteúdos LGBTQIAP+ produzidos pela rede FOdA, da Mídia NINJA, junto a colaboradores em todo o Brasil.

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