Iniciativas como da psicóloga Josilene Ferreira da Silva tem feito a diferença para famílias em extrema pobreza nas comunidades da zona leste de São Paulo. Ela faz o alerta: A pandemia, juntamente com a crise política, social e econômica, tem causado efeitos devastadores na saúde mental da população das periferias e a procura por atendimento intensificou.

Ocupação na Zona Leste de São Paulo. Foto: Mídia NINJA

Por Mauro Utida para Mídia NINJA

O acompanhamento psicológico nas periferias do país ainda é um tabu a ser quebrado. Há um certo receio e resistência por parte de moradores pelo tratamento de transtornos mentais por meio de psicoterapias. Quando não acreditam que é frescura de gente rica, outros evitam pois associam a loucura, fraqueza e impotência. Entretanto, iniciativas voluntárias de profissionais em áreas vulneráveis estão tendo uma importância enorme em tempos de pandemia causada pelo coronavírus (covid-19) e desconstruindo preconceitos.

Nas comunidades do extremo leste de São Paulo, o trabalho praticamente invisível da psicóloga Josilene Ferreira da Silva, tem feito a diferença na vida de muitas famílias e com grupos de mulheres. Pela experiência profissional em campo, há mais de dois anos – em comunidades como São Miguel Paulista e Guainazes e nas periferias de Ferraz de Vasconcelos, Poá e Suzano – ela faz o alerta:

A pandemia tem causado efeitos sombrios na saúde mental da população de baixa renda e a procura por atendimento intensificou.

Psicóloga Josilene Ferreira da Silva faz atendimentos nas periferias de São Paulo. Foto: Jana No Hibi

O aviso da psicóloga pós-graduanda em Neuropsicologia pela Universidade de São Paulo (USP) é preocupante. Nas periferias, as poucas opções de tratamento para transtornos mentais estão concentradas nos atendimentos dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), do Ministério da Saúde. Entre janeiro e fevereiro de 2019 foram realizados 2.736.813 procedimentos nos CAPS de todo o país. Nos dois primeiros meses deste ano foram realizados 2.704.604 procedimentos. Dados de março ainda não foram fechados, informou o Ministério da Saúde.

Até o fechamento desta matéria, o Governo de São Paulo não informou os números de atendimentos no Estado.

“Há dois anos dedico meu trabalho nas comunidades do extremo leste e esse cenário ansiogênico e apoca-político tem tido um impacto ainda maior na vida destas pessoas. Elas estão fragilizadas pela incerteza insegurança e medo. Além do mais, o quadro político e econômico do país não tem colaborado para amenizar a saúde mental da população. Nas comunidades – onde algumas famílias se encontram em extrema pobreza – a crise é um gatilho para intensificar transtornos mentais, tais como depressão, síndrome do pânico, transtornos de ansiedade e compulsivos. O uso abusivo de bebidas alcoólicas e demais substâncias psicoativas tem aumentado em grande escala, revelando várias faces da violência. É uma conjuntura que potencializa o adoecimento psíquico, podendo levar a surtos e tentativas de suicídio”, alerta.

A Cruz Vermelha alertou, no início de abril, sobre o agravamento de problemas de saúde mental por causa da pandemia. O secretário-geral da Federação Internacional de Sociedades da Cruz Vermelha e da Crescente Vermelha (FICV), Jagan Chapagain, confirmou que a demanda de apoio psicológico “aumentou consideravelmente”, com base em relatos dos profissionais da saúde que estão na linha de frente no atendimento médico.

Os atendimentos de Josi, principalmente agora nesse momento de pandemia, acontecem por telefone, internet e via whatsapp, porém nos casos de pacientes em surto, o atendimento precisa ser presencial. Segundo ela, toda semana há pelo menos um caso de surto ou tentativa de suicídio.

“Coloco a máscara, as luvas e vou, não nego atendimento a quem está em sofrimento psíquico e nem a quem não tem como me pagar, como profissional de saúde mental tenho responsabilidade com essas vidas, pois sei que não existe apenas a morte física, existe a morte psíquica”

LUTO COLETIVO

Josilene participou do atendimento de alunos, profissionais, familiares e comunidade da Escola Estadual Professor Raul Brasil, em Suzano. O caso ficou conhecido como o “Massacre de Suzano”, ocorrido em 13 de março de 2019, que vitimou cinco estudantes e duas funcionárias da escola, por uma dupla de atiradores, ambos ex-alunos

Ela trabalhou num período de três meses para dar apoio psicológico às vítimas desde o dia do ocorrido, durante o enterro e velório. Ficou junto ao grupo para auxiliá-los no processo de superação do trauma, elaboração do luto e confortá-los para o retorno à vida social. A psicóloga explica que, naquela época, foi realizado um trabalho de luto e trauma coletivo. Para ela, as lições da tragédia de Suzano podem ser utilizadas para combater os danos que o coronavírus tem causado na saúde mental da população.

Professores, estudantes e familiares vão às ruas em marcha fúnebre pela memória das vítimas do massacre de Suzano. Fotos: Marcelo Viola

“Estamos em luto coletivo. O luto não está relacionado apenas à morte, mas também à falta de liberdade de ter uma vida social, a perda de emprego, medo de morrer ou de perder um ente querido. Para uma possível estabilidade psíquica, precisamos identificar que essa é uma situação completamente atípica e que foge ao nosso controle, compreender o que temos condições de lidar e o que não temos já é um começo”, aconselha.

Pensar constantemente nos impactos da pandemia, buscar informações em demasia, podem causar o surgimento ou aumento de sintomas que ampliam quadros de ansiedade, depressão, pânico e transtornos obsessivos, avisa. Diante dessa situação, ela aconselha medidas e soluções de inteligência coletivas, como a solidariedade, o combate às desigualdades e a equidade social, devem ter direcionamento maior em grupos mais vulneráveis, sobretudo os relacionados a gênero, raça e nível socioeconômico.

“O importante agora é perceber o que é realmente necessário, entender que o desnecessário não tem que estar em nós, pois é excesso. Estocar energia psíquica é essencial, afinal iremos precisar para passarmos por esse momento tão difícil”, informa.

QUEBRANDO TABU

Na maioria das comunidades carentes, os moradores têm seus direitos básicos negados, como saneamento básico, saúde, educação e cultura. E como fica a saúde mental dessa população que convive com a dificuldade e no momento a prioridade principal é por um prato de comida? “Eles utilizam o que tem. Cada um na sua condição e no seu tempo”, responde a psicóloga de 43 anos, que mora em São Miguel Paulista.

A resistência ao tratamento psicológico é um desafio a mais para o trabalho de Josi nas comunidades onde presta atendimento. Porém, com muita conversa e amizade e paciência ela vai abrindo seu espaço, ganhando a confiança dos moradores e desmistificando e desconstruindo padrões. Ela explica que na periferia, o profissional de saúde tem que ter o linguajar do povo, nada de linguagem técnica. Segundo ela, é preciso ter acesso à estrutura de linguagem dessas populações para compreender sua percepção de mundo e conseguir realizar um bom trabalho.

“Infelizmente, nas periferias o trabalho de um profissional de psicologia e psiquiatria, ainda é visto com o pé atrás pela população. Muitas famílias ainda têm a ideia de que o acompanhamento por psicólogos é para pessoas loucas. O psiquiatra então, é para quem enlouqueceu de vez. A realidade das comunidades é outra. Aqui a preocupação principal de algumas famílias é com o que vão comer,com o desemprego e falta de recursos, como vão ser tratadas caso adoeçam. Diferentes de outras realidades, que podem ter uma boa alimentação saudável, praticar de exercícios físicos, dedicar tempo a leitura, assistir series e filme com tranqüilidade. Na periferia as pessoas se viram como pode, não há muito com o que se entreter, a realidade é dura, mal conseguem ter um boa noite de sono, a mente e os pensamentos não param, a preocupação, o medo e a ansiedade são bem maiores” relata.