Fernando Frazão/Agência Brasil

Criminalizar a interrupção da gravidez quando é inviável a vida extrauterina se torna uma punição dupla, já que a paciente, na prática, seria obrigada a gestar uma vida comprovadamente predestinada ao fracasso, além de agravar riscos para a própria vida.

Foi o que decidiu a 11ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, que autorizou a interrupção de uma gravidez em razão de malformações no feto que inviabilizam a vida extrauterina. A decisão foi por unanimidade.

A Justiça de SP analisou o caso de uma paciente que estava grávida de 26 semanas, no momento da impetração do Habeas Corpus pela Defensoria Pública de São Paulo. O feto foi diagnosticado com agenesia bilateral (ausência de ambos os rins) e anidrâmnio (ausência de líquido amniótico), além de comprometimento do desenvolvimento pulmonar — malformações que inviabilizam a vida fora do útero da mãe. O pedido para realizar o aborto foi negado em primeira instância, mas autorizado pelo TJ-SP.

Para embasar a decisão, o relator, desembargador Tetsuzo Namba, citou perícia médica que confirmou a impossibilidade de vida extrauterina, além de risco psicológico e físico à gestante.

O magistrado afirmou que a hipótese dos autos, em uma primeira análise, não estaria abarcada no rol do artigo 128 do Código Penal, dispositivo que prevê o aborto legal, além de não envolver feto anencefálico, caso julgado pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 54. Porém, Namba aplicou, por analogia, a tese firmada no caso de acéfalos.

“No entanto, o caso é análogo ao referido julgado, no tocante a comprovada inviabilidade de vida longe do ventre materno, uma vez que as malformações do feto gestado pela paciente, agenesia bilateral do feto (ausência de ambos os rins) e anidrâmnio (ausência de líquido amniótico), são incompatíveis à possibilidade de sobrevida”, disse.

Neste caso, segundo Namba, não há vida a ser tutelada pelo Direito Penal, já que “o nascituro está fadado, infelizmente, à letalidade, sem indicação de recuperação por tratamento ou terapia, conforme repisado pelos laudos técnicos já mencionados”.

“De outro lado, estão em cheque os direitos fundamentais da mulher, tais como o direito à vida, à saúde e autonomia. A criminalização da interrupção da gravidez quando inviável é a vida extrauterina de seu filho, constituiria em verdadeira punição dupla, na medida em que a paciente seria obrigada a gestar uma vida comprovadamente predestinada ao fracasso, além de submetê-la aos riscos hodiernos de uma gravidez, como se viu”, completou Namba.

Ele ainda afirmou que, manter uma gestação nessas condições, também seria submeter a mulher à “violência psicológica”. Por fim, o relator falou da importância da dignidade da pessoa humana, “princípio fundante de todo sistema jurídico, o qual deve ser chamado à amparar os direitos das mulheres que se veem em condições análogas ao feto anencefálico”.

Foto: Mídia NINJA

Pelo direito de decidir

1. O aborto é uma realidade na vida das mulheres de todos os credos e classes sociais.

Por mais que a criminalização dificulte sua prática e crie riscos desnecessários para a saúde das mulheres, centenas de abortos são feitos todos os dias no Brasil. Segundo dados do IBGE, estima-se que 7,4 milhões de brasileiras já fizeram pelo menos um aborto. A Pesquisa Nacional do Aborto revela que mais de 500 mil mulheres abortaram apenas em 2015. Uma em cada cinco mulheres até 40 anos já fez, pelo menos, um aborto na vida.

Essas mulheres geralmente são jovens, já tiveram filhos e seguem religiões cristãs. Mulheres comuns que, por dificuldades econômicas, situações de violência ou vulnerabilidade, planejamento pessoal ou qualquer outra razão, decidiram interromper uma gravidez, apesar das condenações morais e do cerco do sistema penal.

2. A criminalização penaliza principalmente mulheres em situação de vulnerabilidade.

“Todos somos pró-aborto. Uns pró-aborto clandestino; nós, pró-aborto legal”, lia-se em alguns dos cartazes levados às ruas por nossas irmãs argentinas. A afirmação diz de uma desigualdade de acesso que se repete por aqui: enquanto algumas mulheres podem pagar caro para realizar o procedimento em clínicas clandestinas, outras precisam recorrer a métodos inseguros – e sofrem graves consequências. A criminalização penaliza principalmente mulheres pobres, negras e indígenas, que são as que têm menos acesso às políticas públicas e estão em situação de maior vulnerabilidade social, perpetuando o racismo institucional.

É por isso que dizemos e repetimos: a legalização do aborto se faz urgente para assegurar a vida e a dignidade das mulheres. Trata-se de uma questão de saúde pública: o aborto clandestino no Brasil é a quinta causa de morte materna. Além disso, internações hospitalares causadas por abortos inseguros são recorrentes, custam caro e poderiam ser evitadas se a legislação garantisse condições dignas de atendimento nos serviços de saúde e acesso ao aborto legal e seguro.

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3. A criminalização é um ataque à nossa liberdade de crença.

Ninguém será obrigada a fazer um aborto caso ele seja descriminalizado, é claro! A legalização permite que cada mulher seja livre para tomar essa decisão de acordo com suas crenças e possibilidades. Não por acaso, em meio à onda verde que tomou a Argentina, viam-se tantas pessoas – homens, pessoas cis e trans, crianças, idosos, mães, pais, avós, religiosos ou não. Defender a legalização do aborto é reafirmar a liberdade de crença em nosso país e o Estado Laico, assegurar que valores de parcela da população não impliquem no cerceamento do direito de decisão de todas as pessoas.

4. A legalização não aumenta e pode até diminuir o número de abortos.

Pode parecer contraditório, mas a legalização não aumenta o número de abortos. Pelo contrário, em países em que o procedimento deixou de ser crime, essa taxa caiu, como apontam dados do Instituto Guttmacher. Entre 1990/1994 e 2010/2014, um período de duas décadas, a taxa anual de aborto nas regiões desenvolvidas caiu, principalmente em países ricos onde a prática é legalizada – passou de 46 para 27 abortos para cada mil mulheres em idade reprodutiva. O mesmo não ocorreu em países em desenvolvimento, porção do mundo em que o procedimento é majoritariamente criminalizado.

É fácil entender por que essa conta fecha: o acesso universal e gratuito ao aborto legal e seguro faz valer direitos fundamentais invioláveis protegidos pela nossa constituição – dignidade, igualdade, liberdade, cidadania, direito à vida, à saúde e, vale destacar, ao planejamento reprodutivo.

5. A legalização é condição para a efetivação dos direitos sexuais e reprodutivos.

Não por acaso, nossas irmãs argentinas reforçam: precisamos de educação sexual para decidir, anticoncepcionais para não abortar e, em última instância, aborto seguro para não morrer. Ao contrário do que diz o senso comum, machista e punitivista, não “engravida quem quer”. Além de a cultura machista fazer recair sobre a mulher quase integralmente a responsabilidade de evitar uma gravidez, o acesso a métodos contraceptivos pelo Sistema Único de Saúde ainda é falho e desigual – os entraves encontrados incluem desinformação, falta de equipamentos e treinamento dos profissionais de saúde.

Para prevenir o aborto, é preciso garantir políticas de saúde acessíveis e universais, que levem em conta os direitos sexuais e reprodutivos de todas as pessoas, a fim de diminuir também o número de gravidezes não-planejadas, mortalidade materna e mortalidade infantil. Forçar que uma gravidez não-intencional seja levada a termo é violar esse direito fundamental.